“Seria infantil, no entanto, supor que “quando apanhamos, ficamos mais fortes”. Ainda que tenhamos de fato fortalecido a soberania nacional na esfera econômica sob a influência das sanções dos EUA, mas não a ponto de não prestarmos atenção a elas. O dano causado pelas sanções, é claro, existe e é significativamente aumentado pela política passiva das autoridades monetárias.”
Na imagem de Capa: Países que aplicaram sanções econômicas contra a Rússia em 2022, devido à operação especial na Ucrânia. Em roxo, a Federação Russa. Em verde claro, países que aplicaram sanções individualmente. Em verde-escuro, países da União Europeia que introduziram sanções coletivamente. Fonte: Wikipedia
A intimidação permanente sobre a Rússia com novas sanções “infernais” há muito deixou de excitar a opinião pública russa. Lembro-me de como em 2014 eu, juntamente com outras primeiras pessoas sujeitas às sanções dos EUA, fomos entrevistados e todos garantimos aos jornalistas que estávamos orgulhosos de tal reconhecimento de nossos serviços à Rússia. Desde então, o número de pessoas físicas e jurídicas sancionadas pelos Estados Unidos e seus satélites aumentou muitas vezes e não teve nenhum impacto perceptível em nosso país. Por outro lado, as medidas de retaliação introduzidas pelo nosso governo no sentido de restringir a importação de alimentos desses países contribuíram significativamente para o crescimento da produção agrícola nacional, que substituiu quase totalmente a importação de aves e carnes. As empresas de defesa e energia aprenderam a contornar essas sanções abandonando o uso do dólar e, ao mesmo tempo, dos bancos americanos em favor de moedas nacionais e bancos de países parceiros. O próximo passo é o desenvolvimento de instrumentos de moeda digital que possam ser usados sem recorrer aos serviços de bancos que têm medo de serem sancionados. O povo acompanha com interesse o retorno ao país do capital retirado pelos “oligarcas”, e por eles próprios, que temem o confisco e as prisões nos países da OTAN.
As sanções dos EUA não afetaram muito a Rússia, mas países terceiros que estão sob pressão de Washington. Em primeiro lugar, os nossos vizinhos europeus, que restringiram a maioria dos projetos de cooperação nas esferas científica, técnica e energética. Elas também afetaram os bancos comerciais chineses que operam na zona do dólar, que preferiram parar de atender clientes russos. O volume de negócios da Rússia com a UE e os EUA diminuiu naturalmente, enquanto que com a China aumentou. No período 2014-2020, em termos monetários, o volume de negócios da Rússia com a China aumentou 17,8%, passando de US$ 88,4 bilhões para US$ 104,1 bilhões. A participação dos países da APEC [Asia-Pacific Economic Cooperation ou Cooperação Econômica Ásia-Pacífico. Trata-se de um bloco econômico formado por 21 membros — nota dos tradutores] e SCO [Shanghai Cooperation Organisation ou Organização para Cooperação de Xangai. Trata-se de uma organização política, econômica e militar da Eurásia, fundada em 2001 em Xangai pelos líderes da China, Cazaquistão, Quirguistão, Rússia, Tajiquistão e Uzbequistão — nota dos tradutores.] no volume de negócios do comércio externo da EAEU [Eurasian Economic Union ou União Econômica Eurasiática: uma união econômica dos Estados localizados principalmente no norte da Eurásia — nota dos tradutores] aumentou de 29,6% para 36,4% e de 16,3% para 24,1%, respectivamente. A participação da UE no volume de negócios do comércio externo da EAEU, pelo contrário, diminuiu de 46,2% em 2015 para 36,7% em 2020. O volume de negócios com os Estados Unidos durante o período em análise diminuiu 18,1% de $ 29,1 bilhões para $ 23,9 bilhões.
De fato, com a ajuda de sanções, os Estados Unidos estão tentando expulsar os produtos russos dos mercados de seus satélites, substituindo-os pelos seus. Isso foi mais pronunciado no mercado europeu de gás natural, onde a participação dos EUA aumentou acentuadamente, embora ainda não tenham conseguido expulsar a Rússia.
O principal resultado das sanções EUA-Europa foi uma mudança na estrutura geográfica das relações econômicas externas russas em favor da China, a expansão da cooperação que compensa totalmente a redução das relações comerciais e econômicas com a UE. Os consumidores europeus precisam mudar para fontes de energia americanas mais caras, e os fabricantes simplesmente perdem o mercado russo. As perdas totais da UE com as sanções anti-russas são estimadas em US$ 250 bilhões.
Outro resultado importante das sanções norte-americanas foi a queda da participação do dólar nos pagamentos internacionais. Para a Rússia, como para outros países que sofreram sanções dos EUA, o dólar se tornou uma moeda tóxica. Ao rastrear todas as transações em dólares, as autoridades punitivas nos Estados Unidos podem bloquear pagamentos, congelar ou até confiscar ativos a qualquer momento. Durante 8 anos após a introdução das sanções, a participação do dólar nos acordos internacionais diminuiu 13,5 pontos percentuais (de 60,2% em 2014 para 46,7% em 2020).
As sanções tornaram-se um poderoso incentivo para mudar para pagamentos em moedas nacionais e desenvolver sistemas nacionais de pagamentos. Assim, no comércio mútuo dos estados membros da EAEU, a participação do dólar diminuiu mais de 6 pontos percentuais (de 26,3% em 2014 para 20,0% no final de 2020).
Lembro-me de como, dez anos atrás, ao discutir os riscos para o sistema bancário russo no Conselho Nacional de Bancos, perguntei ao então chefe do Banco Central:
O risco de desconectar os bancos russos do sistema internacional de transmissão de mensagens bancárias SWIFT é considerado, como os parceiros ocidentais fizeram em relação ao Irã?
Ao que recebi uma resposta:
“Não podemos considerar o risco de uma bomba atômica atingir o Banco da Rússia.”
Seria infantil, no entanto, supor que “quando apanhamos, ficamos mais fortes”. Embora tenhamos de fato fortalecido a soberania nacional na esfera econômica sob a influência das sanções dos EUA, mas não a ponto de não prestarmos atenção a elas. O dano causado pelas sanções, é claro, existe e é significativamente aumentado pela política passiva das autoridades monetárias. Desde 2014, quando, com a conivência do regulador, especuladores cambiais por meio de manipulação de mercado derrubaram a taxa de câmbio do rublo, este último é usado pelas sanções como um fusível à prova de falhas para a estabilidade macroeconômica. Ao mesmo tempo, foi em 2014, às vésperas das já anunciadas sanções dos EUA, que o Banco da Rússia mudou para um regime de câmbio flutuante. E só depois disso, os EUA as apresentaram, tendo a certeza de que os especuladores multiplicariam seu efeito negativo. Quando o valor do rublo quase caiu pela metade, Obama disse com satisfação que “a economia russa está em frangalhos”. Como resultado dessa manipulação do mercado de câmbio russo, a renda e a poupança em rublos foram desvalorizadas, e os especuladores receberam mais de 35 bilhões de rublos de lucro. Mas isso aconteceu não por causa de sanções, mas por causa da conivência do Banco da Rússia, que deu informação cambial a especuladores internacionais por recomendação de organizações financeiras de Washington.
Somente pessoas muito ingênuas podem acreditar na formação de uma taxa de câmbio de equilíbrio do rublo no modo de flutuação livre. A autoexclusão do Banco da Rússia de regular a taxa de câmbio do rublo significa que os especuladores internacionais de moeda estão fazendo isso. À medida que o rublo, que se tornou uma das moedas mais voláteis do mundo, com uma oferta 3 vezes maior em reservas cambiais, está oscilando, os especuladores internacionais estão obtendo lucros multibilionários em dólares, enquanto os russos estão vendo suas economias e rendas de rublo se depreciarem com os aumentos da inflação. Ao mesmo tempo, o clima de investimento deteriora-se irremediavelmente – a instabilidade da taxa de câmbio do rublo gera incerteza nos principais parâmetros dos projetos de investimento que usam equipamentos importados e estão focados na exportação de produtos.
Assim, os danos causados pelas sanções financeiras dos EUA estão inextricavelmente ligados à política monetária ideal do Banco da Rússia. Sua essência se resume a uma vinculação estrita da emissão do rublo às receitas de exportação e da taxa de câmbio do rublo ao dólar. De fato, cria-se uma escassez artificial de dinheiro na economia, e a política rígida do Banco Central leva a um aumento no custo dos empréstimos, o que mata a atividade empresarial e dificulta o desenvolvimento da infraestrutura no país.
As restrições de sanções levaram a uma demanda extremamente alta por financiamento corporativo no mercado doméstico. No contexto de uma taxa básica relativamente baixa e acesso a financiamento mais barato, os grandes bancos mantêm consistentemente uma margem de juros líquida acima da média do mercado: 5,4-6%, enquanto para os maiores bancos na China, Estados Unidos, Alemanha, França, Grande Grã-Bretanha e Japão, a margem de juros líquida varia de 0,8% a 2,3%. No entanto, esses ganhos inesperados não são usados para financiar projetos de infraestrutura, mas para adquirir negócios não essenciais díspares que são integrados a ecossistemas. A maioria destes negócios permanece não lucrativa mesmo ao nível do EBITDA [Earnings Before Interest, Taxes, Depreciation, and Amortisation ou Lucros Antes de Juros, Impostos, Depreciação e Amortização – nota dos tradutores]. Apesar disso, bilhões de rublos ainda são gastos em seu desenvolvimento. Esses números são bastante comparáveis ao volume de investimentos em um grande projeto de infraestrutura no setor real da economia, que pode trazer tanto o crescimento do emprego quanto a contribuição para o desenvolvimento da economia. Mas esses projetos (além de encher o orçamento) ainda são deixados para as empresas de matérias-primas, enquanto as maiores corporações financeiras preferem direcionar suas receitas para a criação de quimeras.
Na verdade, foi a conivência do Banco Central que levou ao fato de que a Rússia, sua indústria, estava sem sangue e incapaz de se desenvolver.
Se o Banco Central cumprisse seu dever constitucional de garantir a estabilidade do rublo – e tem todas as oportunidades para fazê-lo devido ao excesso de 3 vezes das reservas cambiais da base monetária – então as sanções financeiras seriam inofensivas para nós. Elas poderiam até ser revertidas, como em outros setores da economia, em benefício do setor bancário, se o Banco Central substituísse os empréstimos sacados pelos parceiros ocidentais por suas próprias ferramentas especiais de refinanciamento. Isso aumentaria a capacidade do sistema bancário e de crédito russo em mais de 10 trilhões de rublos e compensaria totalmente a saída de financiamento de investimentos estrangeiros, evitando uma queda no investimento e na atividade econômica sem consequências inflacionárias.
Avaliando as consequências das sanções anti-russas, não se pode ignorar as consequências do rompimento dos laços econômicos com a Ucrânia. O cancelamento mútuo do regime de livre comércio e a introdução de um embargo a uma ampla gama de mercadorias levaram a uma ruptura nos laços de cooperação que garantiram a reprodução de muitos tipos de produtos de alta tecnologia. Bloquear o trabalho dos bancos russos resultou na depreciação de investimentos russos multibilionários. A recusa das autoridades ucranianas em pagar sua dívida para com a Rússia causou vários bilhões de dólares em perdas. No total, seu volume é estimado em cerca de US$ 100 bilhões para cada uma das partes. Trata-se de um dano real realmente significativo e, em muitos aspectos, irreparável, que nós mesmos agravamos com sanções de retaliação.
Até à data, as consequências econômicas das sanções anti-Rússia foram resumidas da seguinte forma. As maiores perdas em relação ao PIB foram sofridas pela Ucrânia, e em termos absolutos, pela União Europeia. As perdas russas do PIB potencial, a partir de 2014, totalizam cerca de 50 trilhões de rublos. Mas apenas 10% delas podem ser atribuídas a sanções, enquanto 80% delas foram resultado da atual política monetária. As sanções anti-russas beneficiam os Estados Unidos, que substituem a exportação de hidrocarbonetos russos para a UE, assim como a China, que substitui a importação de bens europeus pela Rússia. Poderíamos mitigar completamente as consequências negativas das sanções financeiras se o Banco da Rússia cumprisse seu dever constitucional de garantir uma taxa de câmbio estável do rublo, e não as recomendações das instituições financeiras de Washington.
Considere as ameaças dos russófobos americanos e europeus contra as novas sanções “infernais”. Já foi mencionado acima que a ameaça de desconectar os bancos russos do sistema SWIFT, amplamente discutida na mídia hoje, embora interfira nos pagamentos internacionais a princípio, beneficiará o sistema bancário e de pagamentos russo no médio prazo.
A ameaça de banir as operações com títulos russos também nos beneficiará, pois sua emissão em superávit orçamentário nada mais é do que uma fonte de lucro para especuladores estrangeiros. E sua lucratividade é superestimada três vezes em relação à avaliação de risco do mercado. Acabar com a política vira-lata das autoridades monetárias, que estão emprestando dinheiro objetivamente desnecessário para o orçamento a três vezes o preço, nos permitirá economizar bilhões de dólares. Se os sancionistas tentarem proibir a compra de títulos em moeda estrangeira de empresas russas, será possível compensar a falta de financiamento para a compra de equipamentos importados comprando-os de volta à custa de parte do excesso de reservas cambiais. Se eles forem cortados dos empréstimos externos, o risco de inadimplência recairá sobre os próprios bancos europeus e americanos.
Existe também o risco potencial de apreensão de bens estatais russos. Mas podemos responder a isso simetricamente impondo um embargo ao serviço das obrigações da dívida aos credores ocidentais e também confiscando seus ativos. As perdas das partes serão aproximadamente iguais.
Resta, de fato, uma ameaça – tirar ativos estrangeiros dos oligarcas russos. Apesar de sua popularidade entre as pessoas comuns, incentiva o retorno do capital exportado do país, o que também terá um efeito positivo na economia russa.
Ao mesmo tempo, precisamos nos proteger o máximo possível da esperada escalada das sanções EUA-Europa. O lugar mais vulnerável para nossa economia é sua excessiva terceirização. Até metade dos ativos industriais russos são de propriedade de não residentes. Há mais de um trilhão de dólares de capital exportado do país para o exterior, metade dos quais está envolvida na reprodução da economia russa. O congelamento simultâneo desses ativos pode, de fato, piorar drasticamente a situação de várias empresas estrategicamente importantes que dependem do mercado externo. Os americanos mostraram como isso é feito usando o exemplo da Rusal, estabelecendo seu controle sobre ela sob a ameaça de interromper as atividades de comércio exterior. Poderíamos responder a isso nacionalizando pelo menos as gigantescas usinas hidrelétricas transferidas para esta corporação por uma bagatela, e por motivos duvidosos, em cuja operação se baseia a maior parte de seus lucros. Mas, por alguma razão, não protegemos esse setor formador de estrutura de nossa economia da invasão do Tesouro dos EUA.
Decorre do exposto que são necessárias medidas eficazes para descentralizar eficazmente a economia, bem como para alinhar a política do Banco da Rússia com as suas responsabilidades constitucionais. As medidas para apertar a regulação cambial a fim de impedir a exportação de capital e expandir os empréstimos direcionados a empresas que precisam de financiamento de investimentos e capital de giro também não serão prejudicadas. É aconselhável introduzir a tributação da especulação cambial e das transações em dólares e euros no mercado interno. Precisamos de investimentos sérios em P&D [Pesquisa e Desenvolvimento – nota dos tradutores] para acelerar o desenvolvimento de nossa própria base tecnológica nas áreas afetadas pelas sanções — em primeiro lugar, a indústria de defesa, energia, transporte e comunicações. Precisamos concluir a desdolarização de nossas reservas cambiais, substituindo o dólar, euro e libra com ouro. No contexto atual do crescimento explosivo esperado no preço do ouro, sua exportação em massa para o exterior é semelhante a alta traição e é hora de o regulador pará-lo.
Precisamos introduzir um rublo digital o mais rápido possível, que possa ser usado para operações de pagamento e liquidação transfronteiriças, contornando o sistema bancário que está sujeito à pressão das sanções. Devemos nos apressar com a criação de nosso próprio espaço de troca e mecanismos de precificação em rublos para as matérias-primas produzidas em nosso país em excesso. Convide parceiros na Ásia para introduzir uma moeda global de pagamento e liquidação com base no índice de moedas nacionais e commodities negociadas em bolsa. É possível levantar unilateralmente as sanções das empresas ucranianas, ao mesmo tempo, facilitando a situação da população russa empregada nelas. Poderá ser possível lançar mais uma vez a iniciativa do Espaço Econômico Único de Lisboa a Vladivostok, incentivando uma parte saudável da elite empresarial e política europeia. Tente criar uma ampla coalizão internacional para restaurar as normas do direito internacional, incluindo as da OMC e do FMI, que os oficiais de sanções ocidentais estão violando descaradamente com suas sanções e guerras comerciais.
Em geral, ainda há muito a ser feito para fortalecer a soberania nacional na economia. As sanções dos EUA são a agonia da saída da ordem imperial mundial baseada no uso da força. Para minimizar os perigos a ela associados, é necessário acelerar a formação de uma nova ordem econômica mundial integrada, que restaure o direito internacional, a soberania nacional, a igualdade dos países, a diversidade de modelos econômicos nacionais e os princípios de benefício mútuo e voluntário, e cooperação econômica internacional.