O Banco dos BRICS mostra o seu potencial de amparo a países em situações excepcionais de crise ou calamidade, como se encontra uma parte do Brasil.
Já é notícia internacional a situação periclitante em que se encontra o estado mais austral do Brasil, o Rio Grande do Sul. 417 dos 441 municípios do estado foram afetados, com 69 estando em estado de calamidade pública.
O número oficial de 147 mortos não conta toda a história. Ele não só segue sendo atualizado e aumenta diariamente, como a realidade é que na maioria dos lugares afetados nem mesmo se começou a contabilizar porque as águas ainda não baixaram totalmente. Estima-se que o total de mortes possa chegar a algumas centenas, pelo menos.
Para além disso, fala-se em pelo menos 500 mil pessoas desalojadas de seus lares. Os danos materiais, por enquanto, permanecem não calculados, mas considerando a amplitude do fenômeno, bem como a sua intensidade (dois municípios simplesmente desapareceram, por exemplo), pode-se falar em pelo menos 10 bilhões de reais (2 bilhões de dólares) de prejuízo, por enquanto, com o potencial de cifras muito maiores.
Quanto à responsabilidade pela tragédia temos visto todo tipo de explicação e, infelizmente, a sensatez parece ter se esvaído do debate.
Ao que tudo indica, as chuvas torrenciais foram provocadas pelo fenômeno climático irregular popularmente conhecido como “El Niño”, que consiste na oscilação de temperaturas nas águas e ventos em determinadas regiões do Oceano Pacífico que acaba alimentando as nuvens que se dirigem à América do Sul, provocando chuvas intensas e/ou fora de época. Não há evidências, segundo o consenso científico atual, de que o “El Niño” é afetado pelo fenômeno chamado de “aquecimento global antropogênico”.
Não obstante, não vimos nos discursos políticos de porta-vozes da esquerda brasileira nenhum comentário sobre o evento que não estivesse centralizado ao redor dessas narrativas das “mudanças climáticas”, passando por todo o espectro de clichês dos últimos anos, do espectro do “racismo climático” até o oportunismo da defesa das “cidades de 15 minutos” para solucionar o problema – sem esquecer os que estão aproveitando a situação para defender a liquidação da agropecuária brasileira (basicamente, o único setor econômico que, hoje, sustenta o nosso país).
A única exceção foi o Presidente Lula que eventualmente finalmente se pronunciou sobre o problema de falta de investimentos e de manutenção dos sistemas de controle das águas no estado do Rio Grande do Sul.
Naturalmente, na direita brasileira vimos narrativas tão delirantes quanto as da esquerda (ou até piores) atribuindo responsabilidade a coisas tão estúpidas quanto um “rito satânico no show da Madonna”, ou então ao “Projeto HAARP” – além daqueles que alegaram se tratar de uma conspiração para matar cidadãos de um estado supostamente “bolsonaristas”.
Na verdade, de fato, devemos lamentar fundamentalmente o fato de que essas enchentes não foram as primeiras pelas quais o Rio Grande do Sul passou, a segunda maior em nossa história tendo se dado em 1941, concentrada em Porto Alegre. Nesse sentido é de se questionar o motivo pelo qual não houve suficiente prevenção quanto ao risco de enchentes.
É necessário reconhecer que o estado, como um todo, está propenso a esse tipo de risco. Naturalmente, um problema é o fato de que o assentamento do estado deu-se de modo arriscado, sem levar suficientemente em consideração os riscos de cheia dos rios e do Lago Guaíba, com a ocupação e urbanização das margens desses amplos espaços de água.
Não obstante, o estudo da história demonstra que a engenharia hidráulica possui soluções suficientes para gerenciar e conter os fluxos de água, para o benefício do habitar humano, bem como das atividades econômicas fundamentais.
Quanto a isso, podemos apelar ao exemplo histórico da Holanda. O país, todos sabem, enfrenta um problema endêmico com a água por estar situado em grande medida abaixo do nível do mar. Mas as enchentes de 1953, que mataram quase 2 mil pessoas, representaram para os holandeses um ponto de inflexão na maneira como eles lidavam com esse problema.
A partir de 1953, convictos da necessidade de preparar o país para futuros eventos semelhantes, os holandeses iniciaram um projeto infraestrutural de longo prazo chamado Delta Works, cujo ponto central foi a construção de uma série de represas, comportas, eclusas e barreiras contra tempestades, projetadas para controlar os níveis de água e evitar inundações futuras.
Esse projeto teve suas obras iniciadas nos anos 50 e concluídas apenas nos anos 90, para que se tenha em mente de que se tratou de uma ação de longo prazo.
Ora, podemos retornar ainda mais longe no tempo para pensar como a China tem lidado historicamente com as frequentes ameaças de enchente em seu território. Para a Tradição chinesa, a gestão das águas e a proteção do povo contra as enchentes eram tarefas primordiais do Imperador e de sua burocracia estatal e estavam vinculadas ao “Mandato Celestial” (tianming) – de modo que a incompetência ao lidar com esses problemas era vista como marca de ilegitimidade de um governante.
Para evitar, portanto, “desagradar o Céu”, as várias dinastias do Estado chinês sempre fizeram grandes obras de engenharia hidráulica para prevenir problemas, do Grande Canal até o Canal Zhengguo, passando por um constante esforço de construção de sistemas de irrigação, represas, alargamento de rios, etc. Estes métodos são usados até hoje pela China, que a elas acrescentou novas maneiras de lidar com as enchentes.
Entre as novas metodologias chinesas para lidar com enchentes, pode-se ressaltar a ideia das cidades-esponja, construídas de maneira a absorver água da chuva, por causa dos materiais empregados; e também um sistema avançado de alertas baseado em big data e monitoramento por satélites.
Em outras palavras, não é por estarmos lidando com um fenômeno natural que se pode escusar a falta de preparo de longo prazo.
O sistema de comportas que protegia Porto Alegre, por exemplo, data dos anos de 1970, mas desde aquela época não foram expandidos e receberam pouca manutenção. Nenhuma nos últimos anos. Ademais, as barreiras que protegiam a cidade foram ameaçadas de derrubada por prefeitos que queriam “revitalizar” a zona portuária, ou seja, gentrificar a região. Entenda-se, a tragédia só não foi pior porque, pelo menos, havia um muro erguido apto a segurar pelo menos parcialmente as águas.
Tudo isso é fruto de uma mentalidade neoliberal popularizada na América Latina ao longo das últimas décadas, e que basicamente condena o investimento público e a própria concepção de que os serviços públicos devem ter como finalidade o bem comum, e não deveriam ter fim lucrativo. No lugar da tutela do bem comum, a política é pensada como “gestão financeira” de curto prazo, voltada mais para o atendimento dos interesses de acionistas e investidores estrangeiros – os quais substituem o povo nas prioridades dos “gestores”.
Daí a importância do Novo Banco de Desenvolvimento, também conhecido como Banco dos BRICS. Dirigido atualmente pela ex-presidente brasileira Dilma Rousseff, o Banco ofereceu pouco mais de 1 bilhão de dólares para ajudar na reconstrução do estado do Rio Grande do Sul. Desse valor, 200 milhões de dólares irão diretamente para o estado do Rio Grande do Sul, enquanto o resto estará distribuído entre o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), o Banco do Brasil e o BRDE (Banco Regional de Desenvolvimento do Extremo Sul), para aplicação em projetos específicos ligados ao estado atingido pelas enchentes.
O Banco dos BRICS, nisso, mostra o seu potencial de amparo a países em situações excepcionais de crise ou calamidade, como se encontra uma parte do Brasil.
Considerando que a situação continua calamitosa, naturalmente, é necessário seguir acompanhando os desdobramentos da enchente, bem como esses e outros recursos serão aplicados. O que fica, porém, de lição é o papel fundamental do Estado no planejamento de longo prazo em oposição à mentalidade imediatista e neoliberal, bem como o papel potencial dos BRICS como suporte para situações críticas e emergenciais nos países-membros.
Fonte: Strategic Culture.