Usualmente entende-se o liberalismo nos termos de uma doutrina ou práxis econômica, perdendo-se de vista não apenas a sua amplitude como a sua profundidade. Nos últimos anos, o único pensador universal que conseguiu apresentar uma visão geral do liberalismo, inclusive demonstrando como o liberalismo confunde-se com a própria modernidade, foi o filósofo Alexander Dugin. Aqui apresentamos os elementos gerais da crítica duginiana do liberalismo.
Ensaio apresentado sob a forma de aula no Curso de Quarta Teoria Política da Universidade Popular “Daria Dugina” de Moscou.
O Liberalismo ocupa um papel especial no pensamento de Alexander Dugin. Trata-se de um papel que é único para o Liberalismo e que ele não compartilha com as outras teorias políticas.
Como sabemos, Dugin interpreta a história da modernidade como a história da guerra entre as teorias políticas. Essas teorias políticas guerreiam entre si pelo privilégio de, por meio da própria atualização na história, plasmar na concretude a Modernidade enquanto tal.
O que é peculiar ao Liberalismo é o fato da sua vitória sobre o Comunismo e o Fascismo. O fato da vitória do Liberalismo não significa um mero resultado em uma disputa qualquer, mas possui uma implicação dupla. Por um lado, ele significa a conquista do monopólio pela construção do horizonte futuro nos marcos da Modernidade. Pelo outro, essa vitória atua como a confirmação de uma legitimidade que já estava inscrita, por assim dizer, “geneticamente” no Liberalismo.
Na medida em que a guerra entre as teorias políticas se dá, em primeiro lugar, no plano noológico, esse conflito é antes de tudo um conflito pela realização e esclarecimento das teorias, cuja régua é o grau de alinhamento ou desalinhamento das teorias políticas com a essência da modernidade.
Assim, a vitória do Liberalismo é a prova fundamental de que, desde o início, Liberalismo e Modernidade sempre estiveram vinculados, sendo possível até mesmo pensar ambos como sinônimos.
O segundo elemento que torna o Liberalismo único no pensamento de Dugin, é que é o Liberalismo que passa por uma transmutação após a sua vitória, convertendo-se no complexo de ideias e realidades que constituem o “pensamento hegemônico” e que Dugin chamou de Pós-Liberalismo.
O “Pós-“ do Pós-Liberalismo serve, simultaneamente, para apontar que se trata de uma espécie de superação do Liberalismo, mas uma superação que se dá através do próprio Liberalismo, como um deslizar rumo às últimas consequências das próprias premissas, princípios e raízes do Liberalismo.
É duvidoso que um triunfo do comunismo ou do fascismo poderia ter levado precisamente ao mesmo resultado. A tensão interna no comunismo e no fascismo, tensão provocada pela coexistência neles de elementos modernos e elementos tradicionais, e que poderíamos chamar de “arqueomodernidade”, se resolveria na direção da Tradição ou, simplesmente, ou na direção da Modernidade.
A transição do comunismo e do fascismo no sentido da Modernidade, porém, significaria precisamente a sua liberalização, a sua adoção gradual de aspectos do liberalismo, de modo que, derradeiramente, acabar-se-ia chegando ao Pós-Liberalismo por uma via indireta.
Não é casual que as “crostas vazias” do neofascismo e do neocomunismo contemporâneos carecem de qualquer tipo de autonomia, não sendo senão paródias instrumentalizadas pelo Liberalismo como um escudo dirigido contra ameaças antiliberais internas ou externas. A essas crostas vazias poderíamos nos referir por termos como “liberal-fascismo” ou “liberal-comunismo” sem medo de nos equivocarmos.
Ainda assim, é importante pontuar que o Alexander Dugin considera taticamente viável uma aliança com os representantes do primeiro Liberalismo contra o Pós-Liberalismo; o que não é muito diferente da defesa duginiana de aproximações táticas com comunistas e fascistas contra o Liberalismo.
Para Dugin, a característica definidora do Liberalismo, ou seja, o seu sujeito, é o indivíduo.
Em um comentário paralelo no que concerne a noção de “sujeito político”, o mesmo pode ser interpretado no sentido de “figura paradigmática” ou “motor da história”, caso a nossa intenção seja nos distanciarmos ainda mais da chamada “metafísica da subjetividade” que está, ela própria, também vinculada à aurora da Modernidade e, portanto, do Liberalismo.
Quando Dugin aponta para o indivíduo como característica definidora do Liberalismo ele está dizendo que é a centralidade do indivíduo que distingue, de forma específica, o Liberalismo das outras teorias políticas modernas. Liberalismo é toda construção teórico-ideológica organizada ao redor da figura do indivíduo. O indivíduo é a figura que jaz no núcleo do Liberalismo, o que significa que por meio de uma práxis de desconstrução, é possível também transferir essa figura do Liberalismo para as outras teorias políticas – operação que constitui o próprio sentido dos híbridos já mencionados do liberal-comunismo e do liberal-fascismo, as formas comumente assumidas pelas teorias políticas derrotadas quando elas reaparecem na pós-modernidade.
É importante analisar essa figura do indivíduo e as suas implicações, bem como as fontes dessa construção.
Uma maneira interessante pela qual Dugin percebe o surgimento do indivíduo enquanto possibilidade conceitual pode ser encontrada nos escritos duginianos sobre platonismo político, especificamente em sua análise das hipóteses do diálogo “Parmênides” de Platão.
Sem pretender apresentar toda a tese, podemos nos limitar a comentar sobre o fato de que no Parmênides Platão apresenta 2 teses e 8 hipóteses, a Primeira Tese fundada na afirmação do Um, acima dos Muitos; a Segunda Tese estando fundada na afirmação dos Muitos, acima do Um.
Nos interessa aqui especificamente a Segunda Tese, bem como as hipóteses que repercutem dessa Tese. Aquilo que une todas as hipóteses da Segunda Tese é que todas elas partem da multiplicidade como fundamento, de modo que essa multiplicidade não seria o resultado de uma transição, manifestação ou emanação do Um, sendo, ao contrário, plenamente autônoma e formativa de qualquer suposta Unidade. Subjaz a essa Tese a ideia de que qualquer concepção de Um não passa de uma construção artificial a posteriori carente de essencialidade.
Essa multiplicidade da Segunda Tese implica pensar o mundo como um espaço nivelado em que entes autônomos se movimentam e se chocam, construindo a totalidade a partir dessa movimentação “de baixo para cima”.
É necessário observar que tudo isso que estamos comentando sobre as teses e hipóteses metafísicas apresentadas por Platão no Parmênides diz respeito também à política por causa do fundamento metafísico de todas as doutrinas e ideias políticas, uma noção eventualmente formalizada tardiamente pelo filósofo alemão Carl Schmitt na frase: “Todos os conceitos significativos da teoria do Estado moderna são conceitos teológicos secularizados”. Essa verdade enunciada pelo jurista alemão, na verdade, sempre foi tomada como dada no mundo da Tradição como um princípio de harmonia cósmica que vincula o pessoal, o comunitário e o universal.
Nesse sentido, de imediato, já podemos concluir que a Segunda Tese do Parmênides aponta para configurações políticas baseadas nas interações entre indivíduos, construídas de baixo para cima.
Nesse sentido, pode-se pensar as hipóteses em questão.
Quinta hipótese: A quinta hipótese aponta para a inexistência do Um e a existência dos Muitos, e que o Um pode ser alcançado artificialmente a partir da reunião dos Muitos. Trata-se, aqui, do fundamento do coletivismo individualista, ou seja, da ideia de uma totalidade criada a partir das individualidades. Isso tanto fundamenta certas variações da Segunda Teoria Política quanto da Primeira Teoria Política em sua lógica do “contrato social”, e ainda mais na era das massas.
Sexta hipótese: A sexta hipótese aponta para a inexistência do Um e a existência dos Muitos, e a desnecessidade de concretização de qualquer Unidade. O Um não existe e não deve existir. Os Muitos devem subsistir por conta própria, individualmente. Esse é o fundamento metafísico clássico da democracia liberal da Primeira Teoria Política.
Sétima hipótese: A sétima hipótese aponta para a inexistência do Um e a existência dos Muitos, com as livres interações entre os Muitos gerando outros Muitos. Não há qualquer Unidade, apenas a geração do Múltiplo pelo Múltiplo, mas um Múltiplo que permanece não sendo nada além de átomos em movimento. Essa hipótese fundamenta as concepções de democracia liberal que enfatizam a comunicação, o diálogo e a ativação dos átimos humanos a partir da esfera da chamada “sociedade civil”.
Oitava hipótese: A oitava hipótese nega o Um, afirma os Muitos, mas nega também a possibilidade ou necessidade de constituição de qualquer Unidade, bem como nega a possibilidade de geração de outros Muitos a partir dos Muitos. Trata-se de um atomismo solipsista que afirma a singularidade absoluta do átomo como única realidade, e que serve como fundamento metafísico para uma concepção da realidade fundada no individualismo radical – remetendo ao libertarianismo e ao anarcocapitalismo.
Essas quatro hipóteses da Segunda Tese, segundo a leitura duginiana de Platão, seria os fundamentos metafísicos das várias formas políticas do Liberalismo (com alguma influência e repercussão, também, sobre outras teorias políticas modernas em suas variações mais próximas ao Liberalismo).
A falsidade metafísica dessas hipóteses não as impede de repercutir e influenciar a realidade objetiva, especialmente em suas expressões sociopolíticas.
Os mesmos temas são abordados por Dugin a partir de outra perspectiva e com outra metodologia, especificamente através da noologia, uma disciplina multidimensional desenvolvida pelo próprio filósofo russo. Sem pretender aqui apresentar os fundamentos da noologia, podemos não obstante passar por alguns comentários que Dugin faz e que podem nos interessar, especificamente no que concerne o atomismo.
Como foi possível perceber a partir das Teses e Hipóteses do Parmênides, estamos diante de uma crítica platônica do atomismo de Demócrito, cujas implicações políticas são mais claramente demonstradas por Dugin.
A partir da noologia, é possível distinguir os paradigmas fundamentais de todo pensamento (do nous) como sendo o Logos de Apolo, o Logos de Dioniso e o Logos de Cibele, o primeiro representando a verticalidade pura, a transcendência absoluta, a luminosidade, o segundo representando presença na horizontalidade, ritmo, manifestação, a transcendência imanente, a penumbra, e o terceiro representando uma vertical invertida, a espiral descendente, imanência sem transcendência e escuridão total.
Segundo Dugin, Demócrito seria um dos patriarcas filosóficos do Logos de Cibele. Precisamente pela negação da ordem vertical platônica e pela direcionalidade de sua filosofia estar apontada de baixo para cima, dos átomos aos entes, com os processos de formação e destruição se dando por um choque cego e aleatório entre essas partículas, sem a intervenção de qualquer ordem intencional. Assim, no pensamento atomista de Demócrito, não haveria harmonia ou eternidade, tudo seria sem sentido e aleatório, nascendo do Vazio e voltando ao Vazio.
Se compararmos essas reflexões noológicas às hipóteses do Parmênides, perceberemos como as hipóteses da Segunda Tese, particularmente a sexta, a sétima e a oitava encarnam muito bem diferentes caminhos do pensamento atomista de Demócrito como fundamento do Liberalismo.
Nesse sentido, portanto, em uma leitura noológica, o Liberalismo (que como já apontamos é a própria encarnação metapolítica da Modernidade) se revela indissociável do Logos de Cibele e da escuridão cibelina e anticósmica que está engajada há eras em um esforço para devorar a luminosidade. O Liberalismo seria a forma política do Logos de Cibele nas condições da Modernidade.
Nós conseguimos enxergar a atualização ontológica da Segunda Tese do Parmênides, bem como do atomismo de Demócrito, no nominalismo medieval. Esse nominalismo medieval, nascido no século XII e alcançando a sua formulação mais completa no franciscano Guilherme de Occam no século XIV, afirmava a existência exclusiva dos entes individuais e singulares, em alguns casos negando completamente a realidade das ideias, em outros casos aceitando as ideias como conceitos puramente formais construídos para organizar os entes individuais.
Essa concepção, que não tem como não levar à negação de Deus, do espírito, do Céu, do povo, etc., pode ser facilmente rastreada até à Segunda Tese do Parmênides, com as várias variações e interpretações ou atualizações do nominalismo se dividindo entre as hipóteses da Segunda Tese. Ademais, quando se percebe a implicação do nominalismo como a de um “apagamento do Céu” e de um “esquecimento” ou “fuga dos Deuses” – ou seja, a exclusão de todo horizonte vertical e transcendente – percebe-se facilmente o caráter cibelino do nominalismo, mesmo enquanto ele era gestado no próprio seio da Cristandade.
A descrição permite saltar imediatamente para o “Reino da Quantidade”, descrito por René Guénon, como a era da horizontalidade absoluta, em que tudo é massificado e impera a matéria privada de seu sustentáculo transcendente. Na Modernidade, segundo Guénon, teria havido um divórcio radical entre a multiplicidade da materialidade manifesta em relação ao próprio princípio fundacional da matéria, uma substância que poderíamos chamar de “espiritualizada” e que seria a própria condição necessária de toda pluralidade material.
O processo metapolítico liberal descrito por Dugin é precisamente este, o que, novamente, confirma o vínculo fundamental entre Modernidade e Liberalismo, indicado na Quarta Teoria Política.
Em um adendo, poderíamos também apontar para alguns ajustes oferecidos por Dugin ao pensamento evoliano no que concerne o processo de decadência das formas políticas, associado à regressão das castas. Dugin, em seu trabalho dedicado à etnossociologia, critica a associação feita pelo filósofo italiano Julius Evola entre castas tradicionais e classes sociais, bem como às ideologias que supostamente corresponderiam a essas classes.
Essa associação teria levado Evola, durante a maior parte de seu período produtivo, a consideração o comunismo como sendo a forma política mais vinculada ao Reino da Quantidade e à Modernidade, por sua suposta correspondência como chamado “Quarto Estado”, ligado à casta dos shudras, os servos. Dugin demonstra, porém, em uma espécie de genealogia etnossociológica das classes que a correspondência entre castas e classes não é linear, e que aquilo que se tornou a “burguesia” não é a adaptação moderna da casta tradicional dos vayshas, e sim em grande medida uma “evolução” dos párias, dos sem-casta, as camadas nômades e parasitárias que existiam às margens das sociedades tradicionais.
Para uma hegemonia do tipo de modelo político vinculado à cosmovisão dos párias nós nos referiríamos ao “Quinto Estado” e, de fato, em artigos tardios e esparsos o filósofo italiano se refere à possibilidade de um “Quinto Estado” como um estágio ainda mais decadente, involuído e material em comparação com o “Quarto Estado”.
Evola se refere à hegemonia da “ralé” como tratando de “uma substância informe, inimiga de toda ordem própria, associal, manifestando-se precipuamente em fenômenos epidêmicos de uma delinquência típica”. A ideia transmitida aqui corresponde perfeitamente tanto ao Reino da Quantidade de Guénon em sua fase mais sombria, como aos fundamentos do Liberalismo encontrados por Dugin na crítica platônica e nas teorias de Demócrito.
É possível, ainda, encontrar algumas outras raízes e influências que desembocaram na construção do Liberalismo. Fazendo uma leitura crítica dos direitos humanos a partir da Filosofia do Direito, o francês Alain de Benoist recorda a passagem de um direito natural objetivo, de origem platônico-aristotélica, para um direito natural subjetivo, influenciado pelos trabalhos da Escola de Salamanca. Nesse sentido, passa-se de uma ordem jurídico-social fundada na natureza dos entes para uma ordem estruturada a partir da razão individual que deve, necessariamente, entrar em acordo com outras razões individuais.
Naturalmente, seria equivocado colocar a Escola de Salamanca no mesmo patamar que Guilherme de Occam (ou de Demócrito), já que Francisco Suárez de Francisco de Vitória estavam razoavelmente mais próximos da posição realista do que Occam, mas também é perceptível que a sua reformulação do direito natural contribuiu para o enraizamento de uma tradição intelectual individualista na Europa, especialmente em sua influência sobre René Descartes e sobre a metafísica da subjetividade como um todo.
Essa metafísica da subjetividade a qual, segundo Heidegger, teria raízes antigas, reunindo todas essas referências já indicadas, como Demócrito e os outros atomistas antigos, o nominalismo, a Escola de Salamanca, encontra em René Descartes o veículo de formulação do que já podemos considerar uma filosofia liberal em sua fase inicial, com a sua construção de uma ontologia baseada em um sujeito observador isolado do mundo exterior, tornado objeto puro, meramente instrumental e apropriável.
Essa metafísica da subjetividade eventualmente torna-se a moldura mental basilar a partir da qual todo o pensamento moderno e liberal tentará empreender o processo complexo de desenraizamento, desconstrução, homogeneização e dominação do mundo e dos povos, como processos necessários para libertar o homem de todos os vínculos, relações e pertencimentos supostamente irracionais ou pré-racionais, e que limitariam o potencial de sua própria subjetividade individual.
É a partir daí que podemos melhor compreender o indivíduo enquanto sujeito, bem como o fato de que essa subjetividade do indivíduo é, por natureza, mais subjetiva que a subjetividade dos sujeitos do Comunismo e do Fascismo, quais sejam, Classe e Raça/Nação. E essa subjetividade mais intensa do sujeito do Liberalismo traça as suas raízes precisamente aos problemas metafísicos já previstos e descritos por Platão no Parmênides, nas hipóteses que poderíamos chamar de “mais radicais” da Segunda Tese, e que se expressam na história da filosofia especialmente nas contribuições intelectuais de Demócrito, dos nominalistas e de Descartes.
Essa metafísica, que se torna a marca fundamental de toda a tradição iluminista, encontra a sua atualização prática especialmente a partir da Revolução Francesa, apesar do próprio Estado Absolutista já ser, em boa medida, uma expressão protoliberal dos pressupostos da Modernidade, com a sua substituição do Império pelo Estado-Nação e o seu esforço por centralização ou homogeneização.
O “indivíduo”, portanto, pode ser descrito como sendo a desconstrução atomista do homem. É o homem pensado como pura subjetividade individual, privada de todas as relações, vínculos e pertencimentos que lhe dão concretude como parte de uma pluralidade de comunidades humanas sobrepostas, que o fixam por meio de compromissos e deveres.
Em um sentido mais claro, o “indivíduo” é o que resta quando você retira do “homem” a religião, a pátria, a raça, o ethnos, a família, a vocação, a profissão, as características físicas mais básicas e, finalmente, até mesmo o sexo e o gênero. Afinal, o indivíduo nem mesmo é, realmente, um homem, ainda que em seus primórdios burgueses tivesse como paradigma antropológico a ideia de um “homem médio” ainda não completamente desconstruído, como Dugin demonstrou em sua análise do gênero à luz da Quarta Teoria Política.
Naturalmente, ao se tirar dessa “figura” tudo aquilo que mencionamos não resta muita coisa; sobra, praticamente, o nada. Mas é precisamente disso que se trata para os liberais: é assim que, segundo eles, pode-se alcançar esse “personagem” universal e puramente racional e, portanto, livre, que seria o centro, medida e motor de todas as coisas.
Essa figura reduzida, opaca, praticamente transparente, ao ser inserida em uma estrutura política moderna de um Estado-Nação, torna-se um “cidadão”, sempre igual a todos os outros “cidadãos”, sujeito de direitos individuais em uma ordem mecânica organizada por meio de um contrato social. Como o indivíduo é a medida de todas as coisas, espera-se que cada cidadão atue segundo os próprios desejos individuais, em busca dos próprios interesses.
A partir desse fundamento, a história moderna do Ocidente, ou seja, a história do mundo moderno a partir da Revolução Francesa, pode ser lida como a busca pela atualização radical de todas as premissas do próprio liberalismo; como um esforço por conduzir as estruturas sociais da quinta hipótese do Parmênides platônico até a oitava hipótese.
O Comunismo e o Fascismo, nessa história mundial, que se revela como história do Liberalismo, aparecem como desvios, recuos, quase como soluços, em que alguns elementos pré-modernos tentavam ressurgir ou represar o fluxo da Modernidade liberal – o que, como sabemos, não teve qualquer sucesso porque essas próprias teorias políticas, ao serem modernas, acabaram se provando não suficientemente distintas do Liberalismo para montar uma oposição real a ele.
Aqui podemos tentar indicar algumas das expressões ou direções fundamentais do Liberalismo em suas múltiplas dimensões:
- Noológica: Logos de Cibele;
- Teológica: Do Deísmo ao Ateísmo;
- Metafísica: Nominalismo;
- Antropológica: Indivíduo;
- Civilizacional: Civilização Ocidental como Civilização Mundial;
- Politeica: Estado-Nação;
- Política: Democracia Liberal;
- Jurídica: Do Império da Lei ao Estado Jurisdicional;
- Historiográfica: Progressismo Linear;
- Sociológica: Sociedade Civil;
- Cultural: Indústria Cultural Massificada;
- Geopolítica: Competição entre Estados-Nações até a Unipolaridade;
- Econômica: Capitalismo;
- Ética: Do Egoísmo ao Masoquismo;
- Identitária: Caldeirão Mundial e Homogeneização;
- Classista: Burguesificação das elites e proletarização dos trabalhadores.
Poderíamos, naturalmente, encontrar outras características típicas, nas várias dimensões possíveis da existência humana e nos vários campos do conhecimento, aptas a distinguir o Liberalismo enquanto teoria política autônoma, mas essas já são suficientemente úteis para que tenhamos uma ideia do conteúdo do projeto liberal.
Poderíamos, ainda, incluir uma característica dada por um dos principais apologistas do Liberalismo no século passado: o conceito de “sociedade aberta” desenvolvido por Karl Popper.
Popper atribui a Platão a paternidade daquilo que ele chama de “totalitarismo”, e que se realizaria através de “sociedades fechadas”. Para Popper, uma sociedade fechada é muito simplesmente qualquer estrutura sociopolítica que tenha como fundamento ou horizonte alguma expressão do Absoluto, independentemente de qual seja. Por “Absoluto” aí Popper está querendo se referir a qualquer ideia ou símbolo que se pretenda estar além do indivíduo e dos direitos e desejos individuais, atuando como uma espécie de teleologia coletiva que conduziria, necessariamente, a se considerar que há fins que valem mais do que a existência individual. Nesse sentido, o Absoluto, que é sempre inventado pelos próprios indivíduos, acaba limitando e direcionando os indivíduos, desconstituindo o caráter aberto de suas sociedades.
Nisso Popper incluirá das monarquias tradicionais e teocracias até os regimes comunistas e fascistas. Lá onde o indivíduo não é Rei Popper encontra uma tirania, uma sociedade totalitária.
Em uma metapolítica negativa, Popper descreve como “abertas” as sociedades nas quais o papel central é ocupado pelo indivíduo, que dotado de sua racionalidade e com ações pautas pelos próprios desejos e interesses, conduz os seus negócios como se fosse um átomo; uma sociedade constituída nessas condições alcançaria, segundo Popper, uma espécie de equilíbrio dinâmico que propiciaria o maior grau de satisfação para os seus membros.
Enquanto Popper (o qual, devemos recordar, foi o mestre de George Soros) lança as suas invectivas contra conservadores, socialistas, fascistas e religiosos, o alvo central de sua “rebelião” é precisamente a Primeira Tese do Parmênides platônico, que trata precisamente do Um e de sua transcendência em relação aos Muitos. Estamos aqui de volta ao atomismo e ao Logos de Cibele, abraçados de forma praticamente explícita no pensamento de Karl Popper, e ainda mais na práxis de seu discípulo George Soros.
Aqui, ademais, é necessário apontar que enquanto a figura do indivíduo constitui claramente uma construção filosófica falsa fundada no Logos de Cibele, essa construção não se dá ex nihilo, mas a partir de uma perversão da figura da “pessoa”, tipo antropológico da sociedade tradicional.
Se o “indivíduo” é um átomo, o mundo da Tradição tem pensado a “pessoa” como possuindo partes, camadas ou dimensões (classicamente três, como entre os gregos, mas mais entre alguns outros povos). E se o “indivíduo” é este átomo nu e desgarrado de todos os seus pertencimentos, a “pessoa” é sempre uma figura situada, enraizada e que reconhece e aceita livremente os laços de dever e responsabilidade que derivam de sua própria natureza.
A pessoa está, portanto, dotada de individualidade na medida em que ela dispõe de um poder de decisão sobre si mesma, mas ela não é indivíduo, porque essa decisão não é uma volição abstrata desatada da posição da própria pessoa no cosmo. A pessoa é, portanto, potencialmente livre, mas livre na medida em que ela decide ser si mesma, com todos os deveres e responsabilidades que isso implica.
É por isso que não é pelo Liberalismo ter tentado se apropriar da palavra “liberdade” que a liberdade deixa de ser um valor para Alexander Dugin. Mas a “liberdade” em Dugin não é pensada simplesmente nos termos de uma liberdade negativa individual, que se limita a ser uma rejeição de todas as obrigações, pertencimentos, vínculos, proibições, limitações e tabus; ela é, em primeiro lugar, a liberdade intelectual de buscar o Bem (e, portanto, a Verdade), atrelada à dimensão filosófica do homem, e, em segundo lugar, a própria autossuficiência do homem sob a forma da supremacia do nous no homem sobre as paixões, vícios e influências materiais que limitam a sua liberdade interior. Aqui, estamos diante de uma perspectiva sobre a liberdade que nos aproxima, eventualmente, do próprio conceito evoliano do “indivíduo absoluto”, que nada tem a ver com o “indivíduo” do liberalismo.
É o reconhecimento do valor de um certo potencial submerso na individualidade que permite a Dugin pensar a possibilidade (especialmente importante no contexto dos EUA) de uma aliança tática com o “Liberalismo 1.0”, que poderíamos chamar de “liberalismo clássico”, ou seja, um primeiro liberalismo ainda não suficientemente afundado na espiral descendente que conduz à pós-modernidade e ao transumanismo.
A ideia é que mesmo os liberais clássicos típicos, especialmente os liberal-conservadores, talvez ainda consigam perceber os rumos nefastos que o Liberalismo assumiu na Pós-Modernidade e que, portanto, eles estariam dispostos a unir esforços com forças antiliberais para barrar o avanço das iniciativas pós-liberais e, talvez, reverter alguns de seus piores aspectos.
Mas devemos manter, também, em aberto que, tal como o filósofo russo já apontou a possibilidade de se passar do Comunismo e do Fascismo à Quarta Teoria Política, é possível pensar também uma via de retorno à Tradição a partir do Liberalismo – ainda que ela seria indubitavelmente muito mais difícil e tortuosa.
Quanto a isso, também Julius Evola descreveu sobre certas tendências aristocráticas presentes em alguns dos primeiros influxos daquilo que se tornou o Liberalismo, sob a forma da insistência das pequenas nobrezas locais em resguardar as suas prerrogativas e a sua privacidade contra o crescimento acelerado do Estado-Nação moderno.
Agora, não raro se levanta a Dugin a objeção de que as elaborações de Dugin sobre o Liberalismo não o esgotam, bem como daqueles que querem dizer que há mais do que 3 teorias políticas modernas. Na maioria dos casos, porém, estamos falando apenas em Liberalismo, ainda que dividido entre diferentes escolas e ideologias.
Já mencionamos, por exemplo, o liberalismo clássico, que não é senão o Liberalismo que descrevemos até aqui, mas em seus primeiros estágios de desenvolvimento, puro. Também citamos de passagem o liberalismo conservador. O liberalismo conservador tem a peculiaridade de, apesar de afirmar a primazia do indivíduo, insistir na importância de certas formas de pertencimento coletivo, como a família. Mas as coletividades aceitas pelo liberalismo conservador não são senão relações racionais entre átomos que seguem modelos contratuais. O liberalismo conservador, portanto, não escapa de qualquer dos aspectos que atribuímos ao Liberalismo em geral, se distinguindo apenas por uma inconsciência em relação às consequências necessárias dos próprios princípios.
Este não é dessemelhante do próprio liberalismo nacionalista, nascido da Revolução Francesa e difundido a partir do século XIX. O liberalismo nacionalista, que eventualmente exerceria influência no desenvolvimento do Fascismo (ainda que este seja mais especificamente uma “revisão do Comunismo”), não deixa de ter o indivíduo como sujeito, apesar do papel atribuído à nação. A nação do nacionalismo liberal, porém, não é senão a soma dos cidadãos, uma espécie de “superindivíduo”, um Leviatã formado a partir de átomos individuais unidos por um contrato social. Os cidadãos carecem de quaisquer especificidades étnicas, culturais, religiosas e regionais, sendo todos pensados como cópias massificadas um dos outros. O próprio Estado-Nação construído nesses termos se comporta no plano internacional como um indivíduo egoísta em competição com outros indivíduos egoístas.
O chamado liberalismo social, praticamente indistinguível da social-democracia, não é senão o liberalismo que acredita na necessidade de certas intervenções e ajustes conduzidos pelo Estado para evitar crises que poderiam colapsar o sistema, bem como na necessidade de certo grau de prestações sociais para os necessitados e reduções na desigualdade econômica para impedir o crescimento da insatisfação e o aumento na demanda por mudanças estruturais. O neoliberalismo, por sua vez, é o termo assumido pelo Liberalismo ao final do seu confronto com o Comunismo, quando, ao contrário, ele não via mais qualquer necessidade de mecanismos estatais para o fim de suavizar a financeirização absoluta da existência humana e de todas as atividades sociais. Esse neoliberalismo é, na prática, indissociável do neoconservadorismo.
Aqui nos aproximamos das tendências mais anárquicas do Liberalismo. Gera alguma estranheza em algumas pessoas o fato da inexistência do anarquismo enquanto teoria política moderna no pensamento duginiano, mas isso se dá porque o Anarquismo carece de autonomia metapolítica. O anarquismo é, usualmente, uma variação do Liberalismo quando o seu sujeito é o indivíduo, ele é uma variação do Comunismo quando o sujeito é a classe, e ele pode inclusive ser pensado em termos fascistas).
No caso sob análise, é onde entram o Libertarianismo e, por exemplo, o Anarcocapitalismo. O primeiro defendendo a redução do papel do Estado ao de guardião dos direitos individuais, especialmente da vida e da propriedade, e o segundo defendendo a abolição do Estado, bem como de qualquer outra forma de relação ou comunidade involuntária.
Mais recentemente emerge também a figura de um tecnoliberalismo, como um liberalismo que pretende se apoiar nas tecnologias mais modernas para promover uma descentralização rizomática dos processos políticos, tornados ainda mais horizontes.
Essa breve apresentação de alguns elementos básicos do Liberalismo à luz do pensamento de Alexander Dugin (e também de outros autores que são fontes do pensamento duginiano) deve servir não apenas para ajudar a esclarecer em maior profundidade o próprio Liberalismo e o papel que ele desempenha no pensamento de Dugin, mas facilitar também a compreensão de algo que, agora, deve parecer óbvio.
Que aqueles fenômenos que entendemos hoje como pós-liberais (e que nos últimos anos receberam uma miríade de nomes, como “globalismo”, “wokismo”, “transumanismo”, “progressismo”, etc.) possuem suas raízes no Liberalismo, consistindo tão somente na radicalização e aceleração dos processos de desconstrução até o ponto em que nem mesmo o átomo e o indivíduo sobrevivem à busca pela libertação do homem em relação a todos os seus laços e pertencimentos.