No Brasil midiático e mundializado das grandes metrópoles, a ideia de um Nordeste morto e árido, até mesmo bárbaro, ecoa com alguma frequência. No entanto, a essência da região é muito distinta de uma secura texana, como tentam simular, mas antes de um contraste tipicamente brasileiro.
Existem alguns apontamentos sobre o regionalismo nordestino que eu gostaria de fazer, lembrando das diversas revoltas que aqui houve e que hoje se caracterizam como totens memoriais de nossa cultura e resistência. Primeiro, é interessante perceber que existe, a nível nacional e possivelmente apenas presente na mídia do “Brasil Oficial” (como dizia Ariano/Assis), uma espécie de “invenção do Nordeste” (e aqui não quero entrar em méritos ou deméritos de Durval Muniz). Criou-se uma mentalidade de que o Nordeste inteiro corresponde à natureza de uma caatinga morta e desértica, de um povo aquém do que falava Euclides da Cunha quando, de maneira ambígua, referia-se a nós, ao mesmo tempo, como fortes e jumentos. “O sertanejo é, antes de tudo, um forte. Não tem o raquitismo exaustivo dos mestiços neurastênicos do litoral. A sua aparência, entretanto, ao primeiro lance de vista, revela o contrário. Falta-lhe a plástica impecável, o desempeno, […] a estrutura corretíssima das organizações atléticas. É desgracioso, desengonçado, torto. Hércules-Quasímodo, reflete no aspecto a fealdade típica dos fracos. O andar sem firmeza, sem aprumo, quase gingante e sinuoso, aparenta a translação de membros desarticulados. […] É o homem permanentemente fatigado”
Ausento-me de concordar ou discordar da feição relatada por Cunha, apesar de sua invariabilidade não intencionalmente malfazeja, ao menos assim querendo crer. De toda forma, a imagem que circula em mais de um século é a da secura da terra, da secura do homem e, mais recentemente para alguns, da secura do caráter. A imagem de um nordestino, quando não cansado, preguiçoso. Quando não brabo, engraçado. E a imagem dos intelectuais e sacerdotes pouco são lembradas, além de, é claro, Padre Cícero.
Não me parece haver uma exposição da Caatinga brava como de fato é: uma provação divina entre beleza e castigo, vida e morte. Aqui não é um puxado do Texas ou do México, estamos falando da região com o único bioma completamente brasileiro. Um bioma que é laranja, branco e verde. Que metade do ano brilha em esmeralda e na outra é uma pérola branca. O homem da caatinga não se difere da natureza em que vive. Quando parece morto é quando, na verdade, está bem vivo. Só espera a condição necessária.
Pois bem, talvez me seja permitido dividir esse nacionalismo nordestino em etapas, tipos ou algo similar. Esse regionalismo tradicional talvez tenha berço n’A Insurreição, conhecida no Brasil (e em PE) como Insurreição Pernambucana (apesar desta claramente não ter sido apenas lá). Aqui temos o bravio martiano criando dois filhos ao mesmo tempo; o regionalismo nordestino e o nacionalismo brasileiro. É quando parece surgir instintivamente a noção brasiliana de “somos nós, eles são eles”. É quando os Silvas brancos, os Silvas negros, os Silvas indígenas unem-se. E isso, em momento algum, claro, dispõe-se da ausência dos conflitos internos, dado que a Guerra dos Palmares eclodiu-se apenas décadas depois. Mas claro, estou falando apenas de sementes. A raiz sinuosa da questão insurge com a Revolução Pernambucana, ou Revolução dos Padres, ou Revolução Sacerdotal (dada a organização intelectual por parte dos Padres liderados por Frei Caneca), apoiada claramente pelos Estados Unidos à época. Apoios à parte, a causa é direta. Estamos falando em um dos períodos de seca cíclica no Nordeste, em um momento em que a região simplesmente fora esquecida pelo governo central em detrimento à Capital, de maneira que não sobrava, segundo as gerências presidenciais (estaduais) à época, dinheiro para a crise. E aqui, meus amigos, talvez temos a semente para a segunda causa regionalista nordestina. Se antes, os “eles” eram os europeus, agora os “eles” encontravam-se no mesmo estado, no mesmo Reino.
Enganam-se os pernambucanos que, pelo nome, acham que tal revolta novamente fora deles. Pernambuco contou com apoio irrestrito da Parahyba e do Rio Grande do Norte, de maneira que a bandeira atual de Pernambuco, originada da movimentação republicana liberal (à época, lembrem-se!), inicialmente continha 3 estrelas ao seu topo, representando os 3 estados. Apenas 7 anos depois eclodiu-se a Confederação do Equador que, em resposta, sofreu com a repressão mais violenta durante o Império. Novamente republicana e liberal, novamente apoiada pelos Estados Unidos. Apesar do atrito político, as causas permaneciam ante preferências nacionais. Entretanto, cabe lembrar que a elite pernambucana não estava nada satisfeita com as decisões de D. Pedro I por uma centralização política monarquista e seus interesses vinculados aos da coroa portuguesa. Tampouco com a falta de solução para a crise da seca. A acentuação aqui, econômica, também deve ser clara; era a guerra da cana e algodão contra o crescente café. Desfeita a Confederação, que reunia os mesmos estados anteriormente citados juntamente com o Ceará, o nordeste descansaria as armas por pouco tempo. Federação dos Guanais, Cabanada, Revolta dos Malês, Sabinada, Balaiada, Motim do Fecha-Fecha, Motim do Mata-Mata, Praiera, Ronco da Abelha, Marimbondos, Quebra-Quilos, Motim das Mulheres. Apenas no Império. Todas, é claro, com causas distintas, mas que, profundamente, seriam fruto, talvez, do efeito borboleta causado pela crise cíclica natural e pela crise econômica na região, sentindo-se esfaqueada pelo Estado que a fazia arcar com impostos para o crescimento sudestino. Boa parte destas revoltas tiveram, é claro, caráter separatista republicano e, à época, liberal, no sentido de que as ideias de um estado nacional iluminista vigoravam desde a Revolução Francesa. Os ideais estadunidenses, bem como.
Entretanto é interessante lembrar que essas revoltas sempre acabavam sendo tomadas, ou “reencabeçadas”, por intelectuais à época que tomavam do povo a sua frente. Não que esse povo, claro, não tivesse seus interesses – e negar isso seria inocência. Mas grande parte dessas revoltas começavam apenas como isso, revoltas. A coisa fica interessante no início dos movimentos sebastianistas que eclodem por todo o Nordeste – estes que são boicotados pela elite que apoiara os separatismos anteriores. Vejo no sebastianismo uma expressão genuína de vontade popular pela própria vontade popular, ainda que as causas raízes sejam as mesmas que vibraram nos separatismos e revoltas do Império. Mas, encabeçadas pelo Brasil Real, foram massacradas sem dó. Estou falando de Canudos como maior expoente, mas também de Bonito, Pedra Bonita, Caldeirão, etc. Todos movimentos sebastianistas, de cunho comunitário-religioso, encabeçados por sacerdotes populares (isto é, não necessariamente clérigos iniciados pela Igreja Católica). A síntese da liderança tribal do que a musicalidade do Cabruêra vai chamar de “druidas do agreste”. São comunidades que desafiaram o poder das elites locais e federais em sua própria existência, negando-se a coexistir no meio de uma vilania mercantil, confinando-se ao purismo agrário e religioso, vivendo em equilíbrio entre a sociedade religiosa e a natureza local. Daí que, pra mim, por mais que haja clara divergência de pensamento das revoltas intelectualizadas liberais do Império em detrimento dos sebastianismos imperiais e republicanos, há uma liga. O nordestino, dentro do país que ele mesmo criou, é visto como “o outro”, e a partir do horizonte de ser percebido como “outro”, tece à si mesmo nos moldes regionais, recusando e sendo recusado ao mesmo tempo, lembrado apenas para lembrar de suas crises e fraquezas. Nunca de suas excessivas tentativas de soberania, nunca por sua força pujante ou sua fé cristã e animista ao mesmo tempo.
Isso cresce em larga escala durante o Século XX, quando aloca-se o nordeste como esquecido ao mesmo tempo em que a região ergue-se em favor de Vargas. Nunca de suas excessivas tentativas de soberania, nunca por sua força pujante ou sua fé cristã e animista ao mesmo tempo. Isso porque as Ligas Camponesas estavam operando na região que havia sido vilipendiada pelo Estado durante todo o século XIX, esquecida no século XX até então. Ou a Ditadura Militar mostrava serviço no Nordeste, ou então, segundo as leituras estadunidenses, um separatismo socialista aqui não teria retorno. A alusão ao Vietnã é igualmente clara – a natureza nordestina é cruel demais contra os yankees e sulistas, de modo que muito provavelmente os sertanejos fariam os EUA chorar por um novo vexame. Qual a nítida lembrança que me vêm à mente dada toda essa situação secular? A eleição de Lula e o ciclo semi-devocional que muitos nordestinos sentem por ele. Após décadas de novo esquecimento, acabou sendo o único que, em seu discurso, colocava o Nordeste de fato como pauta. E a região, seja qual for a razão, de fato cresceu, ao menos assim sentiram os populares de cá. Essa é a razão do petista ser tão querido no Nordeste. E esse mesmo caso nos faz ver muito claramente a posição de “os outros” colocada pelos sudestinos de maneira que, hoje, os interesses da população do Sudeste, ao menos em termo de eleição, é muito diferente dos interesses nordestinos. Foram 5 eleições decididas pelo voto nordestino em prol dos petistas, com a eleição mais recente tendo larga vantagem do partido moluscoide em detrimento ao partido liberal-lambe-botas.
Existe a tendência de se pensar que o sentimento regionalista nordestino é recente, ou passageiro, ou eleitoreiro. Mas é um sentimento absurdamente secular. E com isso não quero outorgar um separatismo nordestino como fazem, por exemplos, os sulistas com suas próprias razões. Antes a Nova Roma do que um estado quebrado. Apenas lembrar que, como Roma teve sua Hispania, o Brasil tem o seu Nordeste. O Quinto Sertório que milênios atrás fez Roma repensar sua política para a Hispania durante a Guerra Sertoriana, ressurge no Nordeste, de tempos em tempos, com os seus Sebastiões, curiosamente, e costumeiramente, pelo “Quinto Sertão” renascido em terras brasilianas.