A multipolaridade possui como centro a ideia de pluralidade de civilizações, enquanto o multilateralismo se baseia na fragmentação das soberanias nacionais em benefício dos organismos e agências transnacionais. Essas contradições são essenciais para compreender suas diferentes consequências.
Ano passado, no Clube Valdai, o presidente russo Vladimir Putin fez comentários bastante interessantes sobre o cenário global, com destaque para a afirmação da singularidade cultural e civilizacional da Rússia. Por exemplo, ele diz:
Estou convencido de que a verdadeira democracia em um mundo multipolar tem a ver principalmente com a capacidade de qualquer nação – enfatizo – de qualquer sociedade ou civilização de seguir seu próprio caminho e organizar seu próprio sistema sociopolítico. Se os Estados Unidos ou os países da UE têm esse direito, então os países da Ásia, os Estados islâmicos, as monarquias do Golfo Pérsico e os países de outros continentes certamente também têm esse direito. É claro que nosso país, a Rússia, também tem esse direito, e ninguém jamais poderá dizer ao nosso povo que tipo de sociedade devemos construir e quais princípios devem estar por trás dela.
Há vários comentários semelhantes que dão a ideia de um “caminho próprio”, não apenas em um sentido de “soberania econômica”, mas também cultural, axiológica, etc. Não por acaso, Putin cita no discurso Nikolai Danilevsky, tão conhecido por ser um “teórico das civilizações”, o Spengler ou Toynbee russo, como por ser um dos pais do eurasianismo. E é dessa perspectiva que Putin critica a pretensão à universalidade dos valores ocidentais.
O mesmo podemos enxergar no Novo Conceito de Política Externa da Federação Russa, divulgado ano passado após ser preparado pelo Ministério de Relações Exteriores e assinado por Putin. O mesmo, por exemplo, comenta:
Mais de mil anos de independência estatal, a herança cultural da era anterior, os profundos laços históricos com a cultura tradicional europeia e outras culturas eurasiáticas e a capacidade de garantir a coexistência harmoniosa de diferentes povos, grupos étnicos, religiosos e linguísticos em um território comum, desenvolvida ao longo de muitos séculos, determinam a posição especial da Rússia como um país-civilização único e uma vasta potência eurasiática e euro-pacífica que reúne o povo russo e outros povos pertencentes à comunidade cultural e civilizacional do mundo russo.
Esse é um comentário ainda mais notável, na medida em que reivindica o conceito de Estado-Civilização, desenvolvido e popularizado pelo filósofo chinês Zhang Weiwei. Alexander Dugin, em comentário ao documento, também enfatiza o grau inédito de aprofundamento teórico que se vê na liderança política russa desde o início da operação militar especial.
Por falar na China, ademais, poderíamos dizer que vemos pronunciamentos e produções teóricas de conteúdo semelhante vindos da grande potência asiática, do próprio líder Xi Jinping, como também de teóricos importantes como Jian Shigong e Wang Huning.
Tudo isso eu comento para, voltando os olhos para Nossa América, lamentar o fato de que aparentemente ainda não levamos a transição multipolar a sério. Pior, tem-se a impressão de que nem ao menos realmente compreendemos a multipolaridade com a necessária profundidade.
Tomando como ponto de referência, por exemplo, o Brasil, governado novamente pelo Partido dos Trabalhadores, coloca-se muita ênfase em sua suposta adesão à ideia de multipolaridade, com o termo inclusive já tendo sido usado esporadicamente por Lula. A comparação não resiste à análise, porém.
Apesar da necessidade de reconhecer a grande perícia de um chanceler como Celso Amorim (hoje assessor da Presidência para assuntos internacionais) na elevação do patamar do Brasil como “player” no “Sul Global”, ideias como Estado-civilização ou mesmo civilização não possuem ressonância por aqui. Tampouco a crítica do universalismo axiológico ocidental, etc.
Ao contrário. Recentemente vimos, por exemplo, o chanceler Mauro Vieira afirmar que o Brasil usará como critério para o ingresso de novos membros nos BRICS a adesão ao modelo liberal-democrático ocidental. O ministro Flávio Dino, por sua vez, afirmou que o crescimento chinês representava “um perigo para os nossos valores ocidentais”.
A impressão que se tem é que, na verdade, o Brasil está mais interessado em um mundo multilateral do que em um mundo multipolar. Ora, mas não seria a mesma coisa? De forma alguma!
Explico:
A multipolaridade possui como centro a ideia de pluralidade de civilizações, o que implica uma multiplicidade de centros não apenas de poder geopolítico e pujança econômica, mas também de valores, identidades, modelos políticos, crenças, mitos, etc. A multipolaridade implica, por exemplo, a superação de dicotomias ocidentais modernas, como direita/esquerda, democracia/ditadura, monarquia/república, tradição/modernidade, Estado/sociedade, etc., as quais, de maneira simplória, sempre acabam recebendo carga moral.
Diferentes povos possuirão diferentes valores, diferentes sistemas políticos, diferentes crenças, diferentes modelos econômicos, etc., e está tudo bem que as coisas sejam assim. Trata-se, nesse sentido, da enteléquia do antirracismo, inclusive em face do racismo “politicamente correto” que trocou o mito do “White man’s burden” de caráter neocolonialista direto, pelo “White man’s burden” da pregação neomoralista woke.
O multilateralismo, por sua vez, se baseia na fragmentação das soberanias nacionais em benefício dos organismos e agências transnacionais, como a OMC, a OMS, o Banco Mundial, etc. É claro, o multilateralismo consegue abraçar certo anti-imperialismo na medida em que, evidentemente, exige a drástica redução do poder e influência de Washington no mundo. Mas em função de Nova Iorque.
Sequências de “ameaças” e “emergências” mundiais são utilizadas para legitimar a redução das nossas soberanias e o atropelamento de nossas democracias, em benefício do empoderamento de tecnocracias apátridas e não-eleitas, de “especialistas” aptos a ditar leis, normas e costumes para os povos do mundo.
A retórica anti-EUA é naturalmente sedutora, mas realmente nos interessa abrir mão da democracia em um sentido popular em troca apenas do enfraquecimento dos EUA?
Nesse sentido, a nível sistêmico, se a multipolaridade é a afirmação da pluralidade de centros, o multilateralismo é a negação da existência de centros. No lugar de polos tem-se as assembleias, reuniões e conferências fluidas das elites mundiais. Não há polos. O poder está fragmentado nos membros dessa superclasse apátrida dos que viajam de avião fretado para ir a conferências contra mudanças climáticas e jantam carne de ganso e caviar enquanto comentam da necessidade de reduzir os rebanhos bovinos em escala mundial e de convencer “a ralé” a comer insetos.
Naturalmente, não nos parece que personagens como Lula até mesmo tenham noção de todas essas diferenças teóricas e suas implicações. O mesmo deve valer para a maioria das outras lideranças continentais (Boric, porém, é outra história…).
A desinformação e despreparo de nossas lideranças é, na verdade, consequência do fato de que nossos intelectuais pararam de pensar de forma enraizada em Nossa América. A classe dos intelectuais latino-americanos abraçou um cosmopolitismo aprendido na Sorbonne e um “decolonialismo” chic aprendido em Harvard, que não pode senão culminar na conclusão de que a história de Nossa América é um “grande erro” desde 1492.
Como pensar Nossa América se nossos intelectuais acham que ela nem deveria ter nascido?
A exceção a isso, claro, foi Hugo Chávez, que realmente possuía um projeto continental de caráter civilizacional bastante profundo, mas desde então não apenas não avançamos no debate como regredimos.
Essa deve ser a tarefa do intelectual da Nossa América. Com os pés descalços na terra do nosso chão, com aquela atitude nietzschiana do “amor fati”, que diz “sim” ao que somos e aceita, sem ressentimentos, a herança complexa, conflituosa, trágico-heróica de nossa história. Para então poder pensar nosso futuro pós-ocidental.