A culinária é uma construção baseada no conjunto das experiências de determinada civilização.
Por Luiz Carlos Quintino, brasileiro e cozinheiro (Instagram @luizquintinocuisinier)
Nossos hábitos alimentares têm sua origem mais remota na luta pela sobrevivência em um ambiente altamente hostil; é fácil concordar que nossos antepassados certamente não disponham da mesma organização e dos mesmos recursos disponíveis no mundo contemporâneo. Por esse motivo, os ingredientes, além de seu valor nutricional, possuíam ainda uma representatividade metafísica, porque além de alimentarem o corpo, representavam uma fonte de energia para a alma.
A coleta, o cultivo, a criação e o preparo eram atividades que mobilizavam toda a sociedade em prol da perspectiva comum da preservação da coletividade. Neste contexto, desde as sociedades mais simples até as mais complexas, o culto do estar-à-mesa era e continua sendo um evento cheio de significado, que vem acompanhando a história das civilizações.
Seja apreciando um copo de café ou celebrando uma festa de aniversário para comemorar com os amigos e familiares mais um ano de vida: em ambos os casos, o que está em jogo é a gratidão por estar vivo! Neste sentido, enquanto manifestação cultural, a culinária é uma construção baseada no conjunto das experiências de determinada civilização. O que comer e o que beber, além de atender a uma necessidade física, também tem por objetivo estabelecer ligações afetivas e interpessoais entre os membros da coletividade.
Estar-à-mesa é o momento de estar junto, de conversar sobre as experiências e as tradições. Em tal contexto, a lenda da Casa de Mani explica bem a íntima ligação espiritual do ser humano com a alimentação. Esta lenda parte de algum lugar do interior do Brasil, onde, em uma pequena aldeia indígena, uma das suas índias deu à luz a uma menina linda, de cabelos negros e olhos castanhos. Sua gente logo lhe deu o nome de Mani. No entanto, apesar de nascer saudável, Mani morreu poucas semanas após o parto, sendo enterrada por sua mãe em um local próximo à aldeia por sua mãe; a mãe, com o coração cheio de tristeza, desejava visitá-la com frequência.
Transcorridos alguns meses, a aldeia foi acometida por uma escassez de alimentos, que gerou um período de grande fome. A mãe de Mani, depois de um longo tempo sem visitar o local onde a menina havia sido enterrada, observou que no local havia crescido uma planta de folhas largas e de raízes grossas. Movida pelo instinto de sobrevivência, a mãe de Mani levou as folhas e as raízes para a tribo, onde foram cozidas e consumidas pela tribo, o que ajudou a matar a fome de todos da aldeia. Em agradecimento aos Deuses da Floresta, o povoado deu o nome daquela planta de “Casa de Mani”, que na língua indígena se diz “Mani Oca”, que, com a evolução da linguagem, se tornou Mandioca.
Sem nenhum compromisso com a “veracidade” da narrativa, a “estória” de Mani tem por objetivo reforçar a ideia da íntima relação da alimentação com o sentido de sobrevivência, que é a forma mais básica de resistência: algo que não passou despercebido na realidade brasileira, porque, juntamente com o milho, a mandioca forma a base da alimentação nacional, tendo ajudado nossos antepassados a sobreviver durante os primeiros momentos da história do Brasil diante da escassez de alimentos disponíveis naquela época.
Apelidada de “Rainha do Brasil” pelo escritor e antropólogo da Brasilidade Luís da Câmara Cascudo, em seu livro A História da Alimentação no Brasil, a Mandioca representa um ingrediente básico de diversas receitas, que vão desde a farofa, tapioca, polvilho, tucupi, inclusive usando suas folhas para fazer a maniçoba.
Hoje temos à nossa disposição uma série de recursos que nos permitem uma vida melhor e bem diferente dos nossos antepassados, porém estas facilidades não estão disponíveis para todos e a fome ainda é uma realidade na mesa de muitos brasileiros, o que revela a necessidade de perpetuar a “estória” da Mani como símbolo de resistência e transformação.