A visita de Lula à China foi bastante positiva para o Brasil e vai gerar dividendos relevantes, mas essa visita gerou uma “sensação” um pouco desproporcional, tanto entre reações negativas como entre reações eufóricas.
Acaba sendo necessário, portanto, botar os pés no chão para esmiuçar.
De início, eu gostaria de refutar os críticos da visita e das declarações feitas por Lula sobre o dólar. Essa visita era necessária para o Brasil e felizmente ela não demorou a acontecer após o cancelamento, apesar de algumas pequenas (mas importantes) mudanças de pautas e tópicos (que eu vou comentar depois).
O Brasil está cheio de vira-latas, porta-vozes dos EUA, rolando no chão e rasgando as vestes pelo fato do Brasil não estar vinculado exclusivamente à OCDE e ao FMI e à OTAN. Essas pessoas não se dão por satisfeitas com o Brasil não só ainda “tolerar” como ainda cultivar relações (que continuam se aproximando) com várias estruturas e instituições do atlantismo, elas querem exclusividade.
Para demarcar seu ponto, essas pessoas apelam à sinofobia, ao mito do “Perigo Amarelo”, a teorias conspiratórias e a todas as narrativas típicas do globalismo. Eles alegam que a China quer “colonizar” o Brasil, que a China é imperialista, que ela ameaça nossa soberania, que o Brasil ao negociar com a China estaria trocando um “senhor” por outro (e um senhor supostamente pior), que a China é globalista, inventam até que a China estaria por trás do progressismo pós-moderno que nos afeta.
Muito comum se ouvir falar em ser um “erro” o Brasil se aproximar de “ditaduras” ou “autocracias”. Essas considerações são ridículas. Elas pressupõem um mundo com uma única tábua de valores e um único modelo político-econômico a ser seguido por todos os povos. Essa é a tese da “sociedade aberta” de raiz popperiana-sorosiana. Ao contrário, o Brasil deve rejeitar esses dogmas infantis e dialogar com todos os tipos de países, independentemente de sistema político, ideologia, religião, etc.
O drama pela crítica de Lula à hegemonia do dólar é ainda mais obtusa. O dólar não se tornou hegemônico por vontade de Deus, dádiva da natureza, consenso espontâneo ou lei cósmica, mas pelo poder das armas, pela pressão econômica e pela subversão cultural. A hegemonia do dólar se impôs pelas ruínas das nações. Essa era, porém, acabou.
Todo mundo está pulando fora do barco. E o abandono do dólar é tão amplo que o gesto, inclusive, perde qualquer caráter “ideológico” apesar de seguir sendo necessário. O Japão, por exemplo, já faz comércio com a China sem o dólar desde 2011. A Austrália desde 2013. A UE faz comércio com o Irã sem dólar desde 2020. A França começou seu processo de desdolarização recentemente e a Suíça vai começar em breve, já que começou a se livrar de suas reservas de dólar.
Agora vamos ao que importa: pelo menos o Brasil não voltou cheio de compromissos que prejudicam nossa soberania e nossa identidade, como costuma acontecer quando vamos aos EUA. Mas a reunião deixou um pouco a desejar. Foi tímida.
E é aqui que eu acho necessário recordar o fato de que quando o Lula cancelou a sua viagem eu comentei que ela ia acontecer, mas que a pauta seria mais modesta e um pouco diferente do que inicialmente anunciado.
A maioria dos documentos assinados por Lula são “memorandos de entendimento”, ou seja, pré-contratos em que se declara intenção de, eventualmente, promover determinada movimentação. Todos os documentos de teor industrial são desse tipo. Ou seja, daí não saiu nada concreto. É uma pena, porque se propagou no Brasil que o Lula ia resolver a questão da CEITEC na China. Vamos ter que continuar esperando.
Devemos, porém, ressaltar que assinamos acordos importantes no âmbito espacial, como a colaboração no desenvolvimento da CBERS-6, a cooperação entre agências espaciais, cooperação tecno-científica espacial, etc. Estaríamos aí diante da salvação de Alcântara? Vamos depender também nesse ponto da coragem do governo brasileiro.
Os acordos com a mídia chinesa talvez sirvam para trazer algumas produções culturais interessantes e nos “desianquizar” um pouco. Garanto aos conservadores brasileiros: vocês vão preferir muito mais que seus filhos vejam um filme épico chinês do que a última produção da Marvel. Mas esse é um “talvez”. Não sabemos ainda como esse acordo vai se materializar.
Tirando isso, avançamos mais um pouco em temas de interesse do Agronegócio, o que também é positivo.
A declaração conjunta também merece atenção:
A pauta ucraniana, como eu já comentei em outro lugar, ficou de lado. Ela só é abordada da maneira mais genérica e diplomática possível, com os dois países afirmando seu apoio à paz, a importância de vários países participarem nos diálogos e que os chineses viam positivamente o esforço brasileiro pela paz e vice-versa. Como eu já comentei antes, isso é sinal de que o Lula, tal como Macron, não conseguiu convencer o Xi da ideia do “clube da paz” para pressionar a Rússia.
O Brasil reiterou a linha da unidade da China, que é simplesmente a linha defendida por todos os governos brasileiros desde o presidente Geisel durante a ditadura militar. Posição correta, mas apenas a repetição das posições de todos os governos anteriores e não representa qualquer “desafio” aos EUA.
O Brasil, por sua vez, insistiu na cantilena da cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, que como a Nova Resistência já demonstrou é uma obsessão irracional quando o Brasil não tem armas nucleares para “lastrear” a sua posição. A China, polidamente, disse que apoiava que o Brasil tivesse um papel mais proeminente na ONU e a necessidade de reformar o Conselho de Segurança.
Nos esquivamos, porém, da Nova Rota da Seda, o que não é bom, já que se especulava sobre a construção da ligação Atlântico-Pacífico cruzando o Brasil e Peru com apoio chinês e chama atenção também a falta de qualquer acordo ou diálogo no âmbito militar, confirmando a análise que já fizemos várias vezes de que o governo atual enxerga o BRICS não como semente de uma nova ordem multipolar internacional, mas como uma estrutura de parceria comercial, financeira e tecnológica.
Em nossa opinião, isso não basta. O Brasil precisa se distanciar da “sereia” ocidental de forma mais clara e participar mais ativamente na reestruturação mundial promovida a partir de Moscou e Pequim.