O que o futebol tem a ver com geopolítica? Apenas tudo.
Muita gente não consegue conceber o vínculo entre futebol e geopolítica, mas isso é sintoma geral da incapacidade da maioria das pessoas em “ligar os pontos”. As pessoas acham que os entes, eventos e fenômenos são isolados e que o mundo é uma sequência de caixinhas estanques. Ao contrário, o futebol, como quase todas as atividades humanas, possui suas raízes na guerra e, portanto, sempre possuiu dimensão geopolítica.
A afirmação de que “é só um jogo” é vazia diante da realidade de que todos os jogos e esportes possuem suas raízes na guerra ou são sublimações da guerra (a dança masculina também, mas isso é história para outro dia). O que é necessário que se entenda é que, como disse Heráclito, “A guerra é de todas as coisas pai, de todas as coisas rei”. Isso fica claro estudando-se a história dos jogos de bola em geral, de onde nasce o futebol.
Jogos como o episkyros espartano, ou o harpastum romano, parecem uma mistura de futebol e rúgbi e eram extremamente violentos. Podemos ver um vislumbre disso no calcio fiorentino, futebol renascentista do qual era impossível sair sem hematomas e sangramentos. O médico grego Galeno recomendava o harpastum pelo efeito positivo que o exercício tinha no corpo e por sua capacidade de aprimorar o pensamento estratégico. O rei Henrique III da França, por sua vez, comentou do calcio fiorentino que ele era “brutal demais pra ser considerado apenas um jogo”.
Mas sejamos mais objetivos. Se o futebol é uma sublimação da guerra, então devemos recordar que a guerra é enfrentamento entre nações. As disputas internas servem para aprimorar a perícia e peneirar os melhores. Basta recordarmos do papel das justas medievais em tempos de paz. Isso, inclusive, explica o porquê da Copa do Mundo ser muito mais importante do que qualquer campeonato de clubes. A Copa do Mundo é a conclusão natural do ciclo do futebol mundial. É onde as nações se enfrentam, colocando em campo os seus melhores “guerreiros”. Por este motivo, para muitas nações, se sair bem na Copa do Mundo conta bastante. Nos anos 30, por exemplo, os italianos dominaram o futebol (e vários outros esportes) como parte de um projeto que vinculava ética e estética com o esporte e o aprimoramento físico. O triunfo italiano em duas Copas (e nas Olimpíadas) era visto como que simbolizando a superioridade italiana nas artes da guerra.
Isso não se resume a “regimes totalitários”. É softpower, algo que interessa a todos os Estados e sistemas. Veja-se o caso francês. O desempenho da França no futebol dialoga com o projeto de dissolução étnica aplicada pelo Grande Capital internacional contra os franceses étnicos. Os resultados positivos são usados para legitimar e justificar a migração em massa. Para o Marrocos e outros países africanos, em contrapartida, o bom desempenho dialoga com a descolonização. A vitória é a recuperação do orgulho de nações humilhadas e espoliadas. Técnicos africanos, jogadores nascidos no exterior, mas retornando à pátria de seu sangue para defender suas cores. Nesses países, uma grande vitória vira motivo para feriado nacional.
Aliás, por que vocês acham que a maior parte do Terceiro Mundo é fanática pelo Brasil? O brasileiro não tem consciência do papel geopolítico do próprio futebol. Haitianos, angolanos, libaneses e indonésios têm mais do que nós. Com o Brasil, a guerra do futebol vira arte, arte da guerra, guerra da arte, é o futebol orgânico e autêntico contra a maquinação excessiva do futebol ocidental.
Para finalizar, tudo que foi dito acima fica bem evidenciado com os argentinos: basta ver as referências de seu cântico de vitória aos “rapazes das Malvinas”. O mito mobilizador do futebol argentino é a Guerra das Malvinas. De Maradona a Messi, a inspiração máxima são os jovens que deram seu sangue para recuperar o território roubado pelos piratas anglo-saxões.
Ora, o que o futebol tem a ver com geopolítica? Apenas tudo.