Seu filho é esperto porque sabe usar o celular?

Adultos estão em constante maravilhamento pela facilidade com que as crianças dominam novas tecnologias. Mas será mesmo o caso de gerações super desenvolvidas, ou apenas o charme de um mundo visual de acessibilidade e que abandona a língua?

Tendo alguma experiência com educação, não foram poucas vezes que vi pais de alunos se gabando de que seus filhos eram inteligentes porque, desde cedo, já sabiam usar um celular e jogar videogames. Os aparelhos eletrônicos lhes ensinam, supostamente, a falar inglês, a ter raciocínio rápido, a interagir com o mundo, entre diversas outras coisas. Porém, qualquer criança é capaz de usar um smartphone e jogar videogame, até as menos brilhantes, logo, será que seu filho é realmente inteligente só porque ele sabe usar um celular e jogar videogame? É tão inteligente quanto todos os demais, no máximo.

Talvez isso seja apenas uma expressão do “corujismo” típico das mães, que veem seus filhos como brilhantes em qualquer coisa que façam, mesmo que seu desempenho escolar aponte o contrário. Mas é compreensível, pois como muitos pais são de uma geração mais antiga, quando não havia smartphones à venda e quando computadores e internet eram limitados, os pais se impressionam que seus filhos consigam instalar e usar aplicativos com facilidade, já que eles nunca aprenderam a fazer isso. É aquela cena conhecida de todos, dos pais ou dos avós pedindo aos seus filhos que lhes instalem o “zap” no celular. E os filhos, já familiarizados com a interface de um celular, instalam rapidamente. Cabe notar que muitas crianças hoje são criadas por seus avós, aqueles mesmos que demoram um tempão nos caixas eletrônicos quando estamos com pressa de fazer um mero saque. Até algo simples como um caixa eletrônico pode lhes ser desafiador!

Mas por que o celular ganhou toda essa importância?

O smartphone hoje é como um centro da vida social. Pode-se fazer de tudo nele, como operações bancárias, agendar consultas, conhecer pessoas, encontrar hotéis, transporte, até começar uma vida amorosa. Logo, se uma criança aprende a usar rápido o celular, é como se ela já estivesse preparada precocemente para lidar com os mais variados aspectos da vida adulta, tipo pagar contas, buscar emprego e encontrar um par. As necessidades típicas dos moradores de cidades são cada vez mais eletrônicas. Perdemos horas tentando resolver problemas com sistemas eletrônicos, de forma que há muita gente que prefere terceirizar o serviço, até mesmo pagar para que alguém o faça. Já perdi as contas de quantas vezes tive que formatar computadores, declarar imposto de renda, recuperar senhas e enviar e-mails com anexos como favor para pessoas da minha família. Coisas muito simples que eu, sendo parte de uma geração que teve contato desde cedo com eletrônicos, aprendeu a fazer.

Entretanto, quando vejo meus alunos hoje, fico impressionado, pois eles sequer são capazes de fazer essas operações simples que para mim são rotineiras. Em algumas ocasiões, eles mal sabiam navegar em um processador de texto, ou não sabiam como anexar arquivos a uma mensagem de e-mail. Eu supunha que tudo isso lhes fosse fácil, já que eles são a geração “conectada”. Mas não era, eles precisavam, efetivamente, serem alfabetizados eletronicamente (e alguns não só eletronicamente!)

A explicação talvez seja bem simples: eu é que estou ficando obsoleto. Afinal, pra que aprender a fazer tudo isso se você pode simplesmente mandar áudios e fotos? Ouvi de um professor de matemática, após uma reunião de pais, que uma mãe achava uma perda de tempo estudar matemática sendo que ela podia simplesmente usar a calculadora do celular.

Eu nunca fui muito fã desses aparelhos, sempre achei mais confortável usar um desktop tradicional, sinto-me no controle de tudo. Mas os smartphones têm uma grande vantagem: são acessíveis a qualquer um. E o são porque automatizam variados aspectos da experiência do usuário. Até algum tempo atrás, navegar a internet demandava certo conhecimento técnico básico de informática. Hoje as coisas são muito mais simples com um smartphone. As coisas são quase sempre automatizadas, de forma que o usuário sequer compreenda direito o que acontece com seu aparelho. As coisas simplesmente acontecem, de forma que, em algum momento, o aparelho já está sem memória, abarrotado de lixo eletrônico e de aplicativos inúteis que foram parando ali sem muito controle do usuário. O telefone é “smart“, o usuário nem sempre. Então chega a hora de comprar um aparelho novo.

Os smartphones avançaram de tal forma que hoje até mesmo uma pessoa que sequer sabe ler é capaz de usar diversos aplicativos. Já vi casos de gente que insiste em áudios porque não consegue ler mensagens. Meu pai diz que conhece diversas pessoas que são assim e, mesmo ele não sendo uma pessoa de muito estudo (estudou só até a 4ª série), gosta de brincar com essas pessoas respondendo-lhes de forma escrita. Eu mesmo já lidei diversas vezes com pessoas que não sabiam ler, ou liam e escreviam muito mal, ao lidar com anúncios de mercadorias online, como no Marketplace ou OLX. Suspeito que muitos leitores aqui já passaram por experiências parecidas. Para um professor de língua portuguesa é o absoluto terror!

E a tendência é que todos os outros aplicativos e redes sociais se tornem extremamente audiovisuais e pouco baseados em linguagem escrita. Vejam o TikTok e o Instagram, por exemplo. Recentemente ouvi falar que o Orkut retornaria. Eu era um grande fã dessa rede social, passava horas lendo as longas discussões e brigas nos fóruns das comunidades. Mas não me empolguei tanto assim com esse retorno, visto que a chave do sucesso de uma rede social hoje está no quanto ela pode proporcionar em conteúdo audiovisual, em vídeos, e o novo Orkut provavelmente seguirá o mesmo caminho. Restam-me ainda ler discussões no Reddit ou Quora.

Talvez eu esteja me tornando obsoleto nesse processo! Acredito ainda na “tradicional” língua escrita, na boa leitura, na interpretação de textos, que têm a sua vantagem, pois em poucas palavras sintetizam-se informações que seriam mandadas em uma série de dez áudios seguidos no Whatsapp com digressões diversas. A língua escrita não me é assustadora, mas para as pessoas com as quais lido no dia a dia parece ser.

O celular ajuda mesmo com a escrita?

Com a popularização dos computadores e do acesso à internet, havia muitos motivos para otimismo, já que se pensava que o conhecimento seria “democratizado”, que as novas formas de letramento contribuiriam para melhorar nosso nível de leitura e que a informação seria mais transparente. Anos mais tarde e hoje vemos epidemias de “fake news”, isolamento de pessoas em “bolhas” de informações e um turbilhão de conteúdos online que nos faz clicar em tudo, mas que não nos concentra em nada.

Quando computadores se popularizaram, as escolas tiveram a demanda de incluir aulas de informática, para fazer as crianças entenderem o mundo virtual desde cedo. Hoje elas já entram no mundo virtual antes da escola.

Para acompanhar a demanda, as aulas de informática nas escolas estão usando cada vez mais laptops com sistemas que praticamente imitam a interface de um smartphone. Ou seja, dispositivos que exigem cada vez menos do usuário, pois automatizam diversos processos. Aqui na cidade usam-se laptops da Google, os chamados “Chromebooks”. Durante a pandemia, em diversas cidades pelo Brasil, em vez de laptops, foram distribuídos tablets e smartphones para que os alunos acompanhassem suas aulas. Não duvido que em breve o próprio formato de um laptop se torne também obsoleto para os estudos.

Entretanto, dois anos após a pandemia, vemos diversos alunos que não foram devidamente alfabetizados, muitos que não conseguem organizar um caderno, que não compreendem escrita cursiva e, às vezes, que sequer sabem usar uma régua. Para contornar as difíceis demandas, muitos colegas professores preferem continuar utilizando os aparelhos quase que diariamente, pois os alunos parecem “render mais” com eles.

Há um apoio institucional, pelo menos. Há os cursos de formação para professores, nos quais nos ensinam basicamente a usar aplicativos de joguinhos, gamificação do ensino, aplicativos de montar imagens e slides, mas muito pouco sobre ferramentas que realmente fariam uma grande diferença no aprendizado, como processamento de textos, criação de planilhas, montagem de gráficos, etc. No fim das contas, os cursos são basicamente uma forma de marketing para fazer as escolas ficarem cada vez mais dependentes de um ensino que prefere que o aluno pareça estar aprendendo, só porque sabe usar aplicativos de jogos, do que um ensino que realmente prepare o aluno a resolver problemas complexos que demandam concentração e ferramentas que nem sempre são divertidas de se usar. Dessa forma, outros conhecimentos muito básicos, inclusive muito cobrados pelos pais nas reuniões, são deixados para trás.

Será que abandonaremos os cadernos um dia? Afinal, eles não são smart, eles não nos facilitam a vida fazendo tudo de forma automatizada, eles exigem algum esforço.

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Nogueira Sousa

Líder regional da NR-SP, apresentador do podcast Pisando em Brasa, professor e graduado em letras pelo IFSP.

Artigos: 596

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