Nova Rússia como cabeça de ponte do Ocidente

Uma análise sobre a tentativa de transformar a Ucrânia e a Nova Rússia como cabeça-de-ponte dentro da geopolítica no Leste Europeu.

Por Maxence Smaniotto

A guerra que está acontecendo agora era inevitável e previsível. Era inevitável e previsível mesmo depois de as autoridades russas reconhecerem a independência das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk, que de fato se separaram da Ucrânia em 2014.

Era inevitável devido à dinâmica geopolítica marcada pelo confronto entre o Ocidente e a Rússia. O golpe de Estado ocorrido em dezembro de 2013, chamado pela mídia ocidental de “Revolução do Euromaidan”, fez a Ucrânia aderir ao campo euro-atlantista liderado pelos Estados Unidos.

Os manifestantes pró-ocidentais e redes aliadas à oligarquia ucraniana derrubaram o presidente russófilo Viktor Yanukovych porque este decidiu interromper o processo de adesão da Ucrânia à União Europeia.

A decisão de Yanukovych causou uma revolta das elites e jovens de Kiev que viam a UE e o Ocidente como uma espécie de terra prometida. Os protestos levaram a uma mudança de regime que substituiu o oligarca pró-russo Yanukovych pelo oligarca pró-ocidental Petro Poroshenko. Poroshenko acabou com o que restava da economia ucraniana e destruiu seu frágil sistema social através da aplicação de políticas neoliberais, além de promover a incorporação da Ucrânia ao mundo euro-atlantista.

Pouco depois de uma tentativa de impor uma lei que só reconhecia a língua ucraniana em um país onde um quarto da população fala russo, protestos eclodiram em várias partes da Ucrânia, especialmente nas regiões sudeste do país, Donetsk e Lugansk, que pegaram em armas e tornaram-se independentes.

Os acordos de Minsk II assinados pela Alemanha, França, Ucrânia e Rússia conseguiram acalmar o conflito por um tempo, mas não resolveram a questão das duas repúblicas secessionistas. Os russos propuseram que lhes fosse concedido status autônomo dentro da Ucrânia para manter a paz, enquanto os ucranianos rejeitaram tal solução.

Os combates entre o exército ucraniano e as forças de Donetsk e Lugansk foram retomados no outono de 2021, encerrando assim os tratados de Minsk II. As tensões entre as partes também aumentaram devido à belicosidade de Joe Biden.

Desde 1945, a política dos EUA para a Eurásia segue a análise geopolítica de Nicholas Spykman (1893-1943), que defendia a necessidade de criar cabeças-de-ponte em todo o continente eurasiano (o Rimland) e assim liquidar o poder da Rússia (a URSS) e outros países que poderiam dominar a “Ilha Mundial/Ilha do Mundo” para desafiar o poder dos Estados Unidos.

Essas ideias foram retomadas pelo ex-assessor de segurança nacional do presidente Jimmy Carter, Zbigniew Brzezinski (1928-2017), que escreveu um livro intitulado The Grand World Chessboard: American Supremacy and Its Geostrategic Imperatives (O Grande Xadrez Mundial: A Supremacia Americana e os seus Imperativos Geoestratégicos), em que falava sobre dividir sistematicamente todos os países da Eurásia enquanto a Europa seria ocupada pela OTAN e a Ucrânia seria separada da Rússia. Brzezinski via a Ucrânia como um dos principais pivôs geopolíticos que permitiriam a dominação da Rússia.

Essas ações foram contra todos os acordos assinados pela Rússia durante a década de 1980 que, juntamente com a reunificação da Alemanha e a dissolução do Pacto de Varsóvia, esperavam que a OTAN fizesse algo semelhante. No entanto, os Estados Unidos continuaram a expandir a OTAN para o leste e expandiram seu poder econômico e militar na área.

É claro que tais ações tornaram previsível o que aconteceria. De fato, todos os grandes analistas do espaço pós-soviético sabiam que em algum momento a Rússia reconheceria essas repúblicas secessionistas. Maurizio Murelli, ativista próximo a Alexander Dugin e editor da AGA, já havia previsto a eclosão da guerra após analisar o fracasso das negociações entre Estados Unidos e Rússia em 26 de janeiro desse ano. A Rússia queria que os Estados Unidos se comprometessem com a não integração da Ucrânia na OTAN e a “finlandização” dela. Washington se recusou a ratificar essas condições, deixando Moscou apenas para reconhecer Donetsk e Lugansk.

As consequências

O fato de ambas as repúblicas terem sido reconhecidas é um grande fracasso para a diplomacia europeia, especialmente a francesa, mas também para a Rússia e a Ucrânia.

Se a Ucrânia tivesse se tornado uma entidade federal com amplas autonomias regionais, o conflito poderia ter sido evitado, mas Kiev decidiu ir na direção oposta. A Rússia também mostrou os limites de seu poder diplomático, pois a guerra deixa claro que não tem poder suficiente para resolver o conflito pacificamente.

O reconhecimento dessas duas repúblicas separatistas impedirá a entrada da Ucrânia na OTAN, mas fará com que este país se separe muito mais da Rússia. Tal fragmentação do espaço eurasiano, em particular da Europa, é um mau sinal.

A guerra estourou agora que era necessário construir e consolidar uma união eurasiana que contrariasse o peso econômico e ideológico dos Estados Unidos e seus aliados. Conflitos no Cáucaso, Europa Oriental e Ásia Central, manipulados por atores externos e elites corruptas, como é o caso do Cazaquistão, também não nos ajudarão a integrar e estabilizar.

É difícil prever as consequências a curto e longo prazo desta guerra, pois tudo isso depende das decisões tomadas pelo governo ucraniano. O governo ucraniano decidirá continuar sua ofensiva militar contra o Donbass e, assim, provocar uma resposta das tropas russas? Volodymyr Zelensky, ex-comediante e atual presidente da Ucrânia, continuará governando ou será removido?

No entanto, o reconhecimento das duas repúblicas separatistas da Ucrânia terá consequências muito mais profundas do que o reconhecimento das repúblicas separatistas da Geórgia, Abecásia e Ossétia do Sul em 2008, pois tal reconhecimento causará o desencadeamento de sanções econômicas contra a Rússia.

Tais sanções já foram consideradas por Moscou e por isso a Rússia tem buscado reafirmar suas alianças com a China, Irã e outros países para criar um sistema alternativo ao euroatlantismo. Obviamente, essas sanções não terão um grande impacto na economia russa. As grandes vítimas desta crise serão os europeus que, deslumbrados com a retórica do arco-íris dos Estados Unidos, não percebem que a política de contenção da China e da Rússia é antes de tudo uma agressão à Europa e uma fragmentação da Eurásia.

Os únicos que ganharão com as sanções serão os Estados Unidos, que poderão transformar a Europa em um grande mercado para vender sua produção de gás de xisto e substituir o mercado de gás russo. Por outro lado, a crise no Donbass, sem falar no agravamento das relações entre a Ucrânia e a Rússia, pode ir além de meros problemas energéticos. O grande cerne da questão são os gasodutos Nord Stream 1 e 2 construídos pela empresa russa Gazprom (proprietária de 50% deles) e que atravessam o Mar Báltico da Rússia à Alemanha, sem passar pela Ucrânia. A construção do Nord Stream 1 começou em 2005 e foi concluída em 2012, enquanto o projeto para dobrar sua capacidade, Nord Stream 2, começou em 2018 e entrou em operação em setembro de 2021. Ambos os projetos foram fortemente criticados pelos Estados Unidos e seus minions europeus (Polônia e os países bálticos) que temiam uma aproximação entre a UE e a Rússia. Tanto os Estados Unidos quanto seus aliados europeus tentaram desestabilizar a Bielorrússia, mas a revolução colorida que eles apoiaram falhou em 2021, então eles pressionaram a OTAN a enviar cada vez mais soldados para as fronteiras com a Rússia e a Bielorrússia.

Um dos gatilhos para o reconhecimento das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk foi a decisão da Alemanha de fechar o Nord Stream 2. A ex-chanceler alemã Angela Merkel, próxima de círculos atlantistas e pró-europeus, tentou manter o equilíbrio com a Rússia, país que conhecia muito bem e cuja língua falava fluentemente com Vladimir Putin. Merkel sabia que a independência da Europa e da Alemanha dependia do fornecimento de gás russo. No entanto, o novo chanceler Olaf Scholz pressionou pela submissão completa dos alemães aos seus mestres americanos, fazendo Angela Merkel parecer uma espécie de Bismarck na oposição. Herr Scholz terá que encontrar uma maneira de ajudar os europeus e suas empresas a pagar suas contas de gás, já que a Rússia costumava ser o maior fornecedor de gás da Europa. O Qatar já disse que não vai conseguir abastecer o mercado europeu e o Azerbaijão, que começou a aumentar a sua produção de gás através do gasoduto BTC dos poços do Cáspio para a Europa via Cáucaso e Turquia, parece ter decidido mudar a sua política. O presidente do Azerbaijão, Ilham Aliyev, foi a Moscou em 22 de fevereiro de 2022 (um dia após o reconhecimento das duas repúblicas separatistas) para assinar acordos de cooperação entre seu país e a Rússia, buscando assim libertar o Azerbaijão do domínio turco.

A independência de Donetsk e Lugansk provavelmente será reconhecida por outros países como Venezuela, Cuba e Nicarágua, sem contar a Síria e a Bielorrússia. Outra das arestas do problema, de caráter “metanacional”, é o (re)nascimento de uma nova entidade política dominada pela Rússia.

O surgimento de um novo estado: Novorossia (Nova Rússia)

O mundo parece caminhar para uma nova polarização que opõe os países “degenerados” aos “regenerados”. Não usamos esses termos no sentido moral (embora a condição moral das comunidades possa ser um dos fatores indispensáveis para analisar o que está acontecendo) e é melhor não reduzir tudo a essa área.

Por país degenerado entendemos os países que deixaram de ser protagonistas da história e se tornaram meros observadores. A degeneração de um país é acompanhada por um recuo diplomático, econômico (neoliberalismo como tentativa de evitar o colapso) ou agressividade para impor sua autoridade dentro e fora de suas fronteiras e, assim, esconder sua própria fraqueza. O crepúsculo de um país é também marcado por uma grave instabilidade interna, uma forte anomia social associada a taxas de suicídio elevadas, o desaparecimento da moralidade sob o pretexto da emancipação sexual, a rejeição da ideia de nação ou a promoção de uma e o discurso neoliberal que atomiza a sociedade e aniquila qualquer solidariedade familiar. A secularização é outro de seus sintomas, pois revela a perda do sagrado e a impossibilidade de dar sentido à vida. Outro fator que devemos levar em conta é o envelhecimento da população e da elite dominante.

Podemos dizer que todos esses sintomas crepusculares são sofridos pelo mundo ocidental, o espaço geográfico onde o sol se põe após o nascimento. Todas as guerras em que o Ocidente participou desde o fim da Segunda Guerra Mundial revelam que vivemos em uma civilização em plena crise cuja agressividade mostra que chegou a uma fase terminal. Muitas das guerras que o Ocidente empreendeu nos últimos anos são dirigidas contra outras partes do mundo que se consideram renascidas ou em vias de ressurgir como protagonistas da História e, sobretudo, como participantes da História. Muitas dessas nações estão passando por um processo de reativação demográfica, estabilização interna, reconexão com o sagrado, respeito à família, criação de alianças e não criação de lacaios… um país entra em processo de regeneração quando se encarrega de seu destino e decide construir um futuro com as próprias mãos. A população decide aderir ao destino que a nação segue. É claro que essas decisões não resolvem todos os problemas (e a grande desconfiança das elites dominantes em muitos desses países é prova disso). No entanto, o desejo de construir um mundo comum certamente pode contribuir para o aprimoramento dos campos político, social, econômico e militar.

Há quem ataque esse processo querendo a destruição e não a autonomia de quem se levanta. No entanto, há países que querem continuar existindo e não querem se dissolver em meio a um magma de desconstrução e niilismo, porque têm uma vitalidade enorme e não querem desaparecer. A anexação da Crimeia, que agora é uma república autônoma, juntamente com o reconhecimento das Repúblicas Populares de Donetsk e Lugansk parecem ser os primeiros sinais do nascimento de um novo estado: a Nova Rússia. A história desse país remonta ao século XVIII e incluirá, sem dúvida, além das duas repúblicas reconhecidas e da Crimeia, outras regiões do sudeste da Ucrânia que vão de Odessa a Carcóvia. Tal projeto foi discutido em 2015, mas foi descartado devido aos acordos de Minsk II e à falta de recursos. No entanto, as declarações de 21 de fevereiro de 2022, sem dúvida, darão um novo impulso a tais ideias: a criação de Nova Rússia implicará a negação absoluta da ideologia ocidental pós-histórica.

Fonte: Geopolitica.ru

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Maxence Smaniotto

Autor e psicólogo francês, colaborador da revista dissidente Rébellion.

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