Os tons propagandísticos da atual crise ucraniana são tão intensos quanto os da Segunda Guerra Mundial. A demonização dos russos mascara as raízes do conflito no expansionismo da OTAN, ameaçando a própria existência a longo prazo da Rússia. No centro de tudo isso um ator, de comédia.
“Portanto, é um preceito geral ou regra da razão, que todo homem deve lutar pela paz, na medida em que tenha esperança de obtê-la; e quando não puder obtê-la, deve buscar e utilizar todas as ajudas e vantagens da guerra. A primeira parte desta regra contém a primeira e fundamental lei da natureza, que é a de buscar a paz e alcançá-la. A segunda, a soma da lei da natureza, que é a de defender-se por todos os meios possíveis”. – Thomas Hobbes (Leviatã)
Em sua interpretação pessoal da obra mais famosa de Thomas Hobbes, Carl Schmitt enfatiza como a figura do Leviatã evoca principalmente “um símbolo mítico cheio de significados ocultos”[1]. Este mito, segundo o grande jurista alemão, deve ser entendido, antes de tudo, como uma luta secular de imagens. De fato, no livro de Jó, junto com a figura do Leviatã (o mais forte e indomável animal marinho), outro animal é representado com igual destaque e riqueza de detalhes: o Beemote terrestre.
Após um rápido olhar sobre as interpretações cristãs deste “mito” (por exemplo, segundo o Apocalipse de João, no famoso Liber Floridus do século XII, o Anticristo é retratado entronizado no Leviatã enquanto um demônio cavalga o Beemote), Schmitt se concentra na exegese judaica, onde ambas as bestas se tornam símbolos das potências mundanas e pagãs hostis aos judeus. O “Leviatã”, afirma Schmitt, “representa a besta sobre mil montanhas (Salmos 50:10), ou seja, os povos pagãos”[2]. Neste sentido, a história do mundo é apresentada como uma luta dos povos pagãos uns contra os outros. Em particular, a luta ocorre entre o Leviatã – as potências marítimas – e o Beemote – as potências terrestres. O Beemote tenta despedaçar o Leviatã com seus chifres, enquanto o Leviatã tapa a boca e as narinas do Beemote com suas barbatanas, matando-o. Isto, Schmitt continua dizendo, é “uma bela imagem do estrangulamento de uma potência terrestre por um bloqueio naval”[3] (a referência, é claro, é ao bloqueio naval com o qual os britânicos estrangularam a economia alemã durante a Primeira Guerra Mundial). Em tudo isso, os judeus observam como os povos do mundo se matam uns aos outros: “para eles, estes massacres e golpes mútuos são lícitos e kosher. Por isso, eles comem a carne dos povos mortos e dela tiram vida”[4].
Se a interpretação schmittiana deste tema bíblico for aplicada aos acontecimentos atuais, não é particularmente difícil identificar a Rússia e a Europa respectivamente como o Beemote e o Leviatã, e os Estados Unidos como aqueles que “comem a carne dos mortos e dela tiram vida”.
Em dois artigos no site “Eurasia”, de título O Inimigo da Europa e Modelos Geopolíticos em Confronto, foi feita uma tentativa de explicar como os EUA, através de duas guerras mundiais no espaço de trinta anos (não é coincidência que o historiador Eric Hobsbawm falou de uma “segunda guerra de trinta anos” e Ernst Nolte de uma “guerra civil europeia”), conseguiu expulsar a Grã-Bretanha de seu papel de potência global, desgastando-a em uma luta implacável com a Alemanha. A “Grande Guerra” se presta particularmente bem a este esquema interpretativo, já que os Estados Unidos só intervieram após se transformarem de um país devedor em um país credor e após assegurar que os contendores europeus saíssem do conflito, qualquer que fosse o resultado, em condições econômicas desastrosas. E não parece descabido usar o mesmo esquema interpretativo para a crise atual na Europa Oriental, já que, hoje como em 1914, os Estados Unidos são o maior país devedor do mundo.
Entretanto, tal abordagem requer alguma consideração cuidadosa. Optamos por iniciar esta análise utilizando uma citação de Thomas Hobbes pela simples razão de que o filósofo inglês reconhece que o Estado é principalmente um sistema de segurança projetado para garantir a segurança de seu povo e para impedir um retorno ao estado de natureza: a luta de todos contra todos.
Hobbes declara expressamente que é o dever de todo homem lutar pela paz. Mas quando isto não pode ser alcançado, é seu direito usar as vantagens da guerra. O pensador de Malmesbury, para seu crédito, diz algo mais também. Especificamente, ele afirma a necessidade do respeito aos pactos, porque: “sem tais garantias os pactos são vãos e apenas palavras vazias, e oermanecendo o direito de todos os homens a todas as coisas, está-se sempre na condição de guerra […] Mas quando um pacto é feito, então quebrá-lo é injusto e a definição de injustiça nada mais é do que o não cumprimento do pacto”[5]. E novamente: “Portanto, aquele que quebra o pacto que fez, e consequentemente declara que pensa poder fazê-lo com razão, não pode ser recebido em uma sociedade que se reúne para a paz e a defesa, exceto pelo erro daqueles que o recebem, nem, uma vez recebido, permanece sem que aqueles vejam o perigo de seu erro”[6].
Qual a utilidade dessas citações diante do atual conflito na Ucrânia? Vamos prosseguir em ordem. Em 1987, os Estados Unidos e a União Soviética assinaram o Tratado de Força Nuclear de Alcance Intermediário (INF), que regulamentava a colocação de mísseis balísticos de curto e médio alcance em solo europeu. Mais ou menos ao mesmo tempo, Washington deu a Moscou garantias de que a OTAN não se expandiria para o leste.
Em 2014, a Ucrânia foi governada por Viktor Yanukovich, cuja principal falha (mais do que a corrupção generalizada) era que ele havia optado pela possível entrada do país na União Econômica Eurasiática. De fato, em sua visão, a ex-república soviética deveria ser uma ponte entre o leste e o oeste e não uma ruptura geográfica entre a Rússia e o resto da Europa. Em entrevista à CNN algumas semanas após o golpe de Kiev, o especulador (“filantropo”) George Soros declarou abertamente que tinha ajudado a derrubar o “regime pró-russo” a fim de criar as condições para o desenvolvimento de uma democracia de estilo ocidental. Não apenas isso, mas o governo ucraniano pós-golpe foi selecionado usando uma metodologia corporativa. Especificamente, a seleção foi feita por duas empresas de “headhunting”, Pedersen & Partners e Korn Ferry, que escolheram 24 pessoas de uma lista de 185 candidatos dentre os estrangeiros que vivem na Ucrânia (não surpreende que o governo pós-golpe incluísse um americano, um lituano e um georgiano) e ucranianos que vivem no Canadá e nos Estados Unidos. Todo o processo – e isto não deve ser surpresa – foi financiado pelo próprio Soros através da fundação e rede de consultoria política Renaissance[7].
Não menos perturbador foi o processo de seleção do atual presidente ucraniano, a quem a propaganda atlantista, em uma explosão de humor e blasfêmia, comparou a Salvador Allende. Volodymir Zelensky, ator e comediante de origem judaica com inquestionáveis talentos (dada sua capacidade de hipnotizar um público ocidental já embriagado por dois anos de retórica pandêmica militarista), antes de dedicar-se à política estava sob contrato com a televisão privada do poderoso oligarca Igor Kolomoisky. Também de origem judaica, ex-presidente da Comunidade Judaica Unida da Ucrânia e do Conselho Europeu das Comunidades Judaicas, Kolomoisky também é conhecido por ter financiado os grupos paramilitares que massacram civis no Donbass por oito anos e por ter colocado um preço de US$ 10.000 pelas cabeças dos chefes das milícias separatistas. (Escusado será dizer que estes são os mesmos grupos que assassinaram o jornalista italiano Andy Rocchelli no silêncio absoluto de nossa mídia, muito mais interessada em defender os direitos violados de um estudante egípcio de estudos de gênero).
Agora, voltando à afirmação hobbesiana de que “a definição de injustiça nada mais é do que o não cumprimento do pacto”, não se pode deixar de lembrar que, além de terem concordado com uma grande expansão da OTAN para o Oriente, em 2018 (sob a administração Trump) os Estados Unidos optaram por uma retirada unilateral da INF, sancionando efetivamente a possibilidade de trazer seus mísseis para as fronteiras da Rússia. Como a segunda potência militar do mundo deveria ter reagido a tal ato? É bom começar com os aspectos diplomáticos.
Em 17 de dezembro de 2021, o Ministério das Relações Exteriores da Federação Russa publicou o projeto de acordo sobre garantias de segurança apresentado à OTAN e aos Estados Unidos. Estes incluíam: a) descartar a expansão da OTAN para o leste (incluindo a Ucrânia); b) não destacar tropas adicionais; c) abandonar as atividades militares da OTAN na Ucrânia, Europa Oriental, Cáucaso e Ásia Central; d) não destacar mísseis de médio e curto alcance em áreas de onde outros territórios possam ser afetados; e) comprometer-se a não criar condições que possam ser percebidas como ameaças; f) criar uma linha direta para contatos de emergência[8].
Além disso, Moscou exigiu expressamente a retirada da declaração de Bucareste, na qual a OTAN estabelecia o princípio da “porta aberta” com respeito à adesão da Ucrânia e da Geórgia à aliança. Naturalmente, Washington e a OTAN rejeitaram as exigências russas de forma direta.
É essencial sublinhar este fato, pois a liberdade invocada hoje pelo presidente ucraniano em seus apelos “sinceros” nada mais é do que a “liberdade” de seus protetores para colocar mísseis em solo ucraniano que podem chegar a Moscou em poucos minutos, destruindo-o antes mesmo que este último tenha uma chance de responder. E a retórica beligerante utilizada pelos governos colaboracionistas europeus (a Itália, antes de tudo) está defendendo esta ideia bastante bizarra de liberdade, com base na qual (repetimos) a segunda potência militar do mundo (assim como o principal fornecedor de energia da Europa) não tem garantido o direito à segurança. Para esta insalubre ideia de liberdade (a Itália mais uma vez em primeiro lugar, apesar da presença de mais de 70 ogivas nucleares americanas que a tornam um alvo direto em caso de possível retaliação) foi decidido enviar armas para Kiev (que acabarão nas mãos de grupos paramilitares mais interessados em caçar seus concidadãos pró-russos do que em fazer guerra contra os russos) e sujeitar apenas um quarto do sistema bancário russo a sanções. Em nome desta ideia de liberdade, produto da manipulação ideológico-geográfica que dá pelo nome do Ocidente, foi decidido o suicídio econômico e financeiro da Europa (para a grande alegria de Washington). E novamente com base nesta ideia perturbadora de liberdade, foi desencadeada uma “caça às bruxas” na qual artistas de renome internacional são solicitados a abjurar sua pátria; na qual cursos sobre Dostoievski são cancelados, para serem reintegrados apenas quando um autor ucraniano dá uma opinião “contraditória” (como se par condicio pudesse ser aplicado à literatura); em que todas as vozes que discordam da vulga oficial são silenciadas e acusadas de putinismo; e em que os últimos trinta anos de agressão da OTAN (incluindo setenta e oito dias de bombardeio da Sérvia) e os oito anos anteriores de guerra na Ucrânia são esquecidos.
Há um termo para tudo isso: guerra ideológica. A guerra ideológica é aquela em que, para tomar emprestada a definição de Schmitt, o inimigo é demonizado e criminalizado. Portanto, ele se torna digno de aniquilação. A guerra ideológica não conhece limites e se baseia na subversão da realidade. É a guerra imaginária de pseudo-intelectuais, jornalistas e analistas geopolíticos em meio à superexcitação bélico. É a guerra em que são criados falsos mitos: a resistência heroica dos soldados ucranianos na Ilha da Serpente (que se renderam sem disparar um tiro), o fantasma de Kiev derrubando seis caças russos (que nunca existiram), a resistência ucraniana virando sinais de estrada para confundir o avanço russo (na era da guerra tecnológica). A guerra imaginária é aquela em que a Rússia é retratada como um país isolado quando na verdade está fortalecendo sua cooperação com a China e o Paquistão (ambas potências nucleares) e na qual a UE e a Anglosfera são apresentadas como o “mundo inteiro”.
Notas
[1]C. Schmitt, Sul Leviatano, Il Mulino, Bologna 2011, p. 39.
[2]Ibidem, p. 45.
[3]Ibidem.
[4]Ibidem.
[5]T. Hobbes, Leviatano, BUR, Milano 2011, p. 149.
[6]Ibidem, p. 155.
[7]Se Soros e la finanza scelgono il governo dell’Ucraina, www.ilsole24ore.com.
[8]Russia: rivelate le garanzie di sicurezza richieste alla NATO, www.sicurezzainternazionale.luiss.it.
Fonte: Eurasia Rivista