Publicamos aqui um trabalho sobre um dos maiores pensadores da geração argentina dos 1900: Manuel Ugarte, “um pensador maldito da Pátria Grande” para as oligarquias latino americanas e o Império Anglo-saxão. A partir do encontro que tiveram Manuel Ugarte e Juan Domingo Perón em 1946, a autora Mara Espasande repassa as características gerais da utopia ugarteana, transformada em política de estado pelo presidente argentino.
No ano de 1946, Manuel Ugarte, com 71 anos, encontrou-se pela primeira vez com Juan Domingo Perón. Foi Ernesto Palacios quem, em 31 de maio daquele ano, o acompanhou até a Casa Rosada. Já em 17 de outubro de 1945 Ugarte havia dito em diversos veículos de imprensa seu entusiasmo pela nova força política que estava surgindo no país semicolonial. Em declarações ao jornal Democracia sustentou: “[…] creio que iniciou-se um grande despertar para o nosso país […] democracia como esta que trouxe Perón nunca vimos em nosso país. Com ele estão os democratas, como nós, que não querem preservar os grandes capitalistas e o que restou das oligarquias […]” (Galasso, 1974, T.II: 273). Relembrando o encontro histórico declarou: “Ele afirmou que me conhecia em termos que excitaram a inevitável vaidade do escritor…” (Galasso, 1974, T.II: 274). Após uma longa conversa em que debateram sobre economia, geopolítica, da necessidade de desenvolvimento industrial e os meios para alcançá-lo, Perón decidiu nomeá-lo embaixador extraordinário e plenipotenciário para a República do México. Chegava o reconhecimento por uma vida inteira dedicada à defesa e luta pela unidade latino-americana.
Mas, o que tinham em comum aqueles homens? Um, pensador da denominada geração de 1900, que havia irrompido com posicionamentos anti-imperialistas e latino-americanistas em pleno auge dos estados oligárquicos: defensor da unidade regional, precursor do socialismo nacional, dívida de Jean Jaurès, antigo companheiro do Partido de Alfredo Palacios e Juan B. Justo. Homem de vida boêmia – ainda que, no dizer de Norberto Galasso, “uma boemia muito própria, sem fome e nem tuberculose”. O outro, um militar que ingressou na vida política participando do governo que levou ao fim a década infame, um governo heterogêneo que lhe permitiu assumir o esquecido Departamento Nacional do Trabalho, a partir do qual convocou aos representantes sindicais proclamando, mediante decretos-leis, os direitos pelos quais os trabalhadores e trabalhadoras lutavam já há mais de meio século.
Manuel Ugarte jura como embaixador do México diante do presidente Juan Domingo Perón (1946). Fonte: Arquivo Geral da Nação Argentina, Departamento de documentos de Cinema, Áudio e Vídeo.
Perón reconheceu em Ugarte um homem de trajetória impecável e uma vida dedicada à luta pela unidade regional. Ugarte, por sua vez, naquele momento, assumiu que aquele novo movimento encarnava os ideais que vinha defendendo há quase 50 anos. Da palavra ao programa político; da declamação à enunciação mordaz, à execução de um projeto nacional no qual a unidade continental era objetivo estratégico.
Para Ugarte, construir um estado continental foi, durante muito tempo, uma utopia. Para Perón, política de estado. Tal como iria declarar Piñeiro Iñiguez, “ao dizer que Perón colocou em prática as ideias de outros com uma articulação e contextualização próprias, afirmava-se que lhes havia dado vida, transformou-as em ação” (2013:24). É que o peronismo, em si mesmo, é um movimento político de síntese histórica onde se articulam tradições, identidades, velhas batalhas com ideias e perspectivas novas. Nas palavras de Cisneros e Piñeiro Iñiguez:
O peronismo surge a partir de 1943 como uma nova síntese de elementos e realidades da sociedade argentina e dos ideais – velhos e novos – de seu imaginário coletivo. Permite um novo protagonismo social de classes que amadureceram na exclusão, e de ideias que persistiram durante os períodos em que o regime então imperante não permitia prosperar. Entre elas, a ideia de América […] O peronismo não somente é uma síntese argentina, mas também uma síntese surgida na Argentina, com projeção latino-americana (Cisneros, P. Iñiguez, 2002,122).
Dentro daqueles velhos imaginários se encontravam as ideias da geração anti-imperialista que, em um contexto adverso, se animou a denunciar os dispositivos da ordem semicolonial. Manuel Ugarte nasceu em Buenos Aires em 1875 e no começo do século XX entrou em contato com personalidades do mundo da literatura e da ensaística que circularam por Madrid e Paris, estabelecendo diálogos sobre a América Latina. Logo após sua viagem aos Estados Unidos, escreveu uma série de artigos denunciando o imperialismo deste país (destaca-se El peligro Yanqui, de 1901) e, em 1911, publicou seu primeiro ensaio dedicado ao estudo da região, El Porvenir de América Latina. Começa aí sua extensa obra, que incluiu títulos como Mi campaña Hispanoamericana (1922), La patria grande (1922), El dolor de escribir (1933), Escritores iberoamericanos de 1900 (1947), entre outros.
Nestas obras, analisou com profundidade aquelas características culturais da região que permitiram sustentar que a América era uma nação desmembrada e que, a pesar de sua diversidade, não existiam antagonismos que impediam a reunificação do continente. Retomando o ideário de San Martín e de Simón Bolívar, defendeu até a exaustão a necessidade de reconstrução da Pátria Grande, nome que utilizou para denominar à América Latina e o Caribe. A tarefa irrealizada da unidade, dizia Ugarte, impediu o exercício da plena soberania: sem unidade não haveria soberania.
Viajante incansável, recorreu todos os rincões da Pátria para ratificar sua hipótese e conhecer em primeira mão como viviam os povos latino-americanos. Talvez isso tenha marcado sua diferença em relação à outros intelectuais da época que, de suas confortáveis escrivaninhas, teorizavam sobre uma realidade complexa que, na verdade, não conheciam.
A Primeira Guerra Mundial ocasionou, para Ugarte, uma mudança profunda em seu modo de pensar a realidade. Começou a analisar os problemas geopolíticos e econômicos. Defendeu a necessidade de construir uma ordem mundial baseada no equilíbrio de poder; alertou que a abundância de recursos naturais constituía uma ameaça para a região porque nos convertia em objetivo imperioso e por nos condicionar a exportadores de matérias-primas: “[…] os que apenas exportam matérias-primas são, em realidade, povos coloniais. Os que exportam objetos manufaturados são países eminentes” (Ugarte, 1961: 28). Nesta época denuncia a estrangeirização de dispositivos fundamentais para o desenvolvimento da nação: ferrovias, minas, bondes, telefones, petróleo. “O que devia ser nosso, ficou em poder de empresas de outro país”, afirmou em 1924 (Ugarte, 1961:28). Neste tema, diferenciou-se de outros pensadores e ativistas socialistas da época uma vez que, com muita lucidez, percebeu que o modelo agro-mineiro exportador era a causa estrutural da dependência e que era preciso adotar o protecionismo econômico para obter o desenvolvimento industrial. Em 1915, quando fundou seu próprio jornal, La Patria – de curta duração – publicou um programa político dirigido à juventude em que anunciava:
Iremos propiciar, acima de tudo, o desenvolvimento das indústrias nacionais [que] substituam, por fim, as forças econômicas que vem do estrangeiro e a ele retornam levando grande parte de nossa riqueza […] combateremos os monopólios e os abusos das empresas estrangeiras; na política internacional iremos nos opor […] a toda ação de caráter imperialista
Também denunciou a presença do que denominou “colonialismo ideológico”, produto do regime de “submissão semicolonial”. Tal como o definia o autor: “[…] Nosso Novo Mundo não soube compreender as leituras. Privado de expressão artística, está ainda esperando que seus intelectuais, ocupados em cultivar prédios alheios, decidam construir o próprio legado” (Ugarte, 1999:76). Da mesma maneira, afirmou: “[…] não tivemos vida própria. Vivemos até agora através de um cabo, atentos igualmente aos preços e às modas, como se alimentados por um cordão umbilical de proporções gigantescas, a essência de nosso ser não veio à luz” (Ugarte, 1999:77)
Unidade continental, soberania, industrialização, distribuição da riqueza, nacionalização dos recursos e serviços: haviam muitos temas para conversar naquele 31 de maio quando se encontrou com o fulgurante Presidente da Nação! O reconhecimento de uma vida dedicada à militância chegava em seus primeiros anos das mãos de um militar que soube tornar-se o condutor de um amplo movimento nacional. Outros foram os motivos que o levaram à decisão de pôr fim à sua vida, anos depois, em 2 de dezembro de 1951. Seu final trágico, o esquecimento de sua obra por longas décadas, o desconhecimento de sua figura, que ainda perdura, seguem a convocar-nos à difundir seu pensamento, porque ali encontram-se chaves centrais para pensar nosso presente e construir um futuro onde nossos sonhos possam realizar-se. [1]
Notas:
[1] Historiadoras, membros do Centro de Estudos de Integração Latinoamericana “Manuel Ugarte”, UNLa, Argentina.
Referências:
Cisneros, Andrés; Piñeiro Iñíguez, Carlos. (2002). Del ABC al Mercosur. La integración latinoamericana en la doctrina y praxis del peronismo. Buenos Aires: Nuevo Hacer.
Galasso, N. (1974). Manuel Ugarte. Buenos Aires: Eudeba. Tomo II (2001). Manuel Ugarte y la lucha por la unidad latinoamericana. Buenos Aires: Corregidor.
(2005). Perón. Formación, ascenso y caída (1893-1955). Buenos Aires: Ediciones Colihue. Tomo I.
Piñeiro Iñíguez, Carlos. (2013). Perón. La construcción de un ideario. Buenos Aires: Editorial Ariel.
(2014). Pensadores latinoamericanos del siglo XX. Buenos Aires: Editora Ariel.
Ramos, Jorge Abelardo. (1961). Manuel Ugarte y la Revolución Latinoamericana. Buenos Aires: Editorial Coyoacán.
Ugarte, Manuel (1911). El Porvenir de la América Latina. Valencia: Editorial Sampere. Disponible en: http://disenso.info/wp-content/uploads/2013/06/El-porvenir de-America-Latina-M.-Ugarte.pdf [Acessado em 7/4/2018].
(1922). La patria grande. Barcelona: Editorial Internacional.
(1922). Mi campaña Hispanoamericana. Barcelona: Editorial Cervantes.
(1961). La reconstrucción de Hispanoamérica. Buenos Aires: Ediciones Coyoacán.
(1962). El destino de un continente. Buenos Aires: Editorial Patria Grande.
(2014). Pasión latinoamericana. Obras elegidas. Lanús: Edunla.