Artigo da revista científica Nature reúne estudos e dados que apontam para a eficácia e segurança da Sputnik. Ao contrário de suas vacinas rivais de adenovírus, como Oxford – Astrazeneca e Johnson & Johnson, a vacina russa não apresentou até agora a incidência dos graves casos de formação de coágulos.
A vacina russa anti-covid 19, Sputnik V, está sendo objeto de fascínio e controvérsia desde que o governo russo autorizou o seu uso no último ano, antes que os testes iniciais fossem até mesmo publicados. Evidências da Rússia e muitos outros países sugerem agora a sua segurança e eficácia – mas restam questões sobre a qualidade da vigilância contra possíveis efeitos colaterais raros.
Sputnik V – também conhecida como Gam-COVID-Vac – foi a primeira vacina anti-covid 19 registrada para uso em qualquer nação, e desde então foi aprovada em 67 países, incluindo Brasil, Hungria, Índia e as Filipinas. Mas a vacina, e a sua irmã gêmea de 1 dose, Sputnik Light, ainda aguardam a aprovação para uso emergencial pela Agência Europeia de Medicamentos ( EMA) ou pela Organização Mundial de Saúde ( OMS). A aprovação da OMS é crucial para a distribuição em larga escala através da iniciativa do Acesso Global para Vacinas contra Covid 19 ( COVAX), que está fornecendo doses para as nações pobres.
Desenvolvida pelos cientistas do Centro Nacional Gamaleya de Pesquisas sobre Epidemiologia e Microbiologia em Moscou, a vacina foi autorizada para uso pelo Ministério da Saúde da Rússia em 11 de agosto de 2020, mais do que 1 mês antes dos testes de fase 1 e 2 serem publicados, e antes mesmo do estudo de fase 3 ter começado.
A comunidade científica reagiu com indignação o anúncio do registro da vacina pelo Presidente Russo Vladimir Putin. “Se o governo vai aprovar uma vacina antes mesmo de eles saberem os resultados dos testes, isso não inspira confiança,” diz o epidemiologista Michael Toole, do Instituto Burnet, em Melbourne, Austrália.
Acesso a todos os dados
Algumas das preocupações foram aliviadas quando os resultados da fase 3, publicados em fevereiro pelos desenvolvedores da vacina, sugeriram uma eficácia de 91,6% em prevenir infecções sintomáticas da Covid 19 e 100% de eficácia em prevenir infecções severas. Entretanto, alguns cientistas criticaram os autores por falharem em fornecer acesso a todos os dados brutos dos testes iniciais, e também levantaram preocupações sobre mudanças nos protocolos administrativos da vacina e inconsistências nos dados.
Os autores responderam dizendo que eles forneceram às autoridades reguladoras todos os dados necessários para obter aprovação, e que os dados incluídos no paper científico eram o suficiente para os leitores confirmarem a eficácia reportada da vacina. Eles também responderam às questões protocolares e disseram que as inconsistências “eram apenas erros de digitação que foram formalmente corrigidos”.
Apesar da ausência de aprovação da EMA ou da OMS, diversos países, incluindo Coreia do Sul, Argentina e Índia, já estão produzindo a Sputnik V. E a Índia planeja bombear pelo menos 850 milhões de doses, para ajudar a acelerar a vacinação de sua população em grande dificuldade. Muitos outros países, como Hungria e Irã, estão importando a Sputnik V, e ela se tornou a peça chave de suas campanhas de vacinação.
Mas isso não foi uma navegação tranquila. A Anvisa rejeitou um pedido de importação da Sputnik V em Abril devido a preocupações a respeito da falta de dados sobre segurança, qualidade e eficácia. Essa decisão foi revertida em junho, mas a vacina foi aprovada somente para adultos saudáveis.
Dois vetores virais são melhores do que um?
A Sputnik V é uma vacina de adenovírus, o que significa que usa adenovírus modificados geneticamente — uma família de vírus que geralmente causa apenas indisposições leves — como um mecanismo de transporte para inserir o código genético da proteína spike do SARS-CoV-2 dentro das células humanas.
É similar às vacinas de Oxford–AstraZeneca e da Johnson & Johnson. Porém, ao invés de usar um adenovírus modificado, como fazem essas duas vacinas, a Sputnik V usa adenovírus diferentes, chamados rAd26 e rAd5, para a primeira e segunda dose, respectivamente.
Dmitry Kulish, um pesquisador de biotecnologia no Instituto Skolkovo de Ciência e Tecnologia em Moscou, e que não está envolvido no desenvolvimento da Sputnik V, diz que a motivação científica seria o de aumentar a eficácia. Os dois adenovírus possuem métodos levemente diferentes de introduzir o seu material genético dentro da célula hospedeira, diz ele, o que teoricamente melhoraria a razão do sucesso de colocar o material genético viral aonde ele precisa ir.
Os dois estudos preliminares dos desenvolvedores da vacina, publicados em Setembro de 2020, envolveram 76 adultos saudáveis que receberam as duas doses com diferentes vetores virais num intervalo de 3 semanas. Todos os participantes desenvolveram anticorpos contra a proteína Spike do SARS-CoV-2, e os efeitos adversos reportados foram, na maior parte, dores leves no local da injeção, febre, dor de cabeça, fadiga e dores musculares — eventos adversos típicos de outras vacinas contra o SARS-CoV-2.
O teste randomizado de fase 3, publicado em seu ínterim em fevereiro, administrou as duas doses da vacina em 14,964 adultos e duas doses de placebo em 4,902. Somente 16 voluntários no grupo de vacinados desenvolveram a Covid 19 sintomática, comparados com 62 no grupo de placebo, representando assim uma eficácia de 91,6%. Além disso, não houve casos da forma grave ou moderada da doença no grupo de vacinados, enquanto houve 20 no grupo do placebo.
Dados não publicados de 3.8 milhões de russos vacinados com as duas doses também apontam para uma eficácia de 97,6%, de acordo com um comunicado de imprensa do Instituto Gamaleya em Abril. Dados liberados pelo Ministério da Saúde dos Emirados Árabes Unidos, sobre 81,000 indivíduos que receberam as duas doses da vacina, sugeriram uma eficácia de 97,8% em prevenir a Covid 19 sintomática e 100% em prevenir a forma severa da doença.
O estudo russo de fase 3 também encontrou que mesmo uma dose era 73,6% eficiente em prevenir casos moderados e severos. Isso levou as autoridades russas de saúde a aprovar a vacina de dose única Sputnik Light — que usa o vetor rAd26 — em maio, tendo como base dados do próprio programa de vacinação do país, que sugeriram que ela era 79,4% eficaz em prevenir a forma sintomática da doença.
Desde então, um estudo ainda a ser publicado do Ministério da Saúde de Buenos Aires, Argentina, envolvendo 40,387 vacinados e 146,194 pessoas não vacinadas entre 60–79 anos, encontrou que uma dose da Sputnik Light reduziu infecções sintomáticas em 78,6%, hospitalizações em 87.6% e mortes em 84.7%.
Questões sobre os efeitos colaterais
Os efeitos colaterais da Sputnik também estão ficando claros. Até agora, os estudos sugerem que eles são similares aos de outras vacinas de adenovírus, com a notável exceção dos raros casos de formação de coágulos. Ao contrário das vacinas Oxford–AstraZeneca e Johnson & Johnson, não houve casos reportados dessa enfermidade pelas autoridades de saúde russas ou por outras nações usando a Sputnik V.
Um artigo preprint (estudo prestes a ser publicado em uma revista científica) do Hospital de Buenos Aires, Argentina, não reportou casos de coágulos ou eventos adversos de interesse especial entre os 683 profissionais da saúde vacinados com a Sputnik V. E uma análise das 2.8 milhões de doses da Sputnik V administradas na Argentina não reportou mortes associadas com a vacinação e, na maioria dos casos, houve eventos adversos leves. Além disso, um artigo preprint de maio, da República de San Marino, não encontrou eventos adversos graves nos 2,558 adultos que receberam uma dose da Sputnik V e nos 1,288 que receberam as duas doses.
A virologista Alyson Kevin, da Universidade Dalhousie em Halifax, Canadá, diz que há uma teoria que associa a incidência de coágulos com as vacinas de vetores virais, mas acrescenta, “ eu não acho que temos a causa exata do componente dessas vacinas que está gerando isso”, ou se a Sputnik pode também estar afetada. Ela também sublinha que embora o estudo de fase 3 da Sputnik V envolveu apenas 21,977 pessoas, e que isso, portanto, foi uma amostragem pequena demais para captar eventos adversos raros, a vacina agora está sendo globalmente usada em larga escala, o que significa que relatórios devem aparecer se um “sinal de segurança acender ”.
Não está claro se a Rússia está em posição de detectar esses eventos raros. Essa associação com a vacina de Oxford–AstraZeneca veio primeiramente a público através de um monitoramento de eventos adversos na Áustria, o que levou a EMA a revisar a segurança da vacina.
Mas o monitoramento de eventos adversos russo pode ser menos eficaz, argumenta Kulish, parcialmente devido a uma cultura relutante em buscar ajuda médica. “ Muitos russos irão chamar o médico somente quando não conseguirem mais respirar”, ele brinca. Além disso, médicos nas regiões remotas da Rússia podem não conectar um derrame causado por coágulos, por exemplo, com uma vacinação recente, ele diz.
A Argentina não reportou nenhum caso de coágulos, apesar de receber mais de 4 milhões de doses da vacina, destaca Kulish. A Sérvia, que também está usando a Sputnik V em larga escala, até agora não reportou casos de coágulos reportados com outras vacinas de adenovírus.
OMS e EMA aguardam para autorizar a Sputnik
Cientistas dizem que preocupações com o monitoramento dos efeitos colaterais podem ser o porquê da OMS e EMA ainda não autorizarem o uso emergencial. A OMS requisitou mais dados do Instituto Gamaleya e inspeções da agência nas fábricas russas da vacina e nos locais de testes clínicos estão em andamento. Até agora, nove locais foram inspecionados, e a OMS levantou preocupações com uma fábrica. De maneira análoga, a EMA coloca a autorização da vacina como “ revisão em andamento”.
Os desenvolvedores da Sputnik acusaram a União Europeia de estar sendo parcial, citando o comentário feito em Março pelo Comissário de Mercado Interno da UE, Thierry Breton, que disse que a UE “não tem a menor necessidade da Sputnik V”.
Kulish sugere que há também uma posição “pró-Pfizer” dentro da EMA que está dificultando a busca da autorização da Sputnik — uma referência a vacina da Pfizer–BioNTech desenvolvida em parceria com a Pfizer, Cidade de Nova Iorque, EUA, e a BioNTech em Mainz, Alemanha. Um porta-voz da EMA respondeu a sugestão apontando que “os mesmos padrões” se aplicam a todas vacinas candidatas contra a Covid 19, “ não importando em que parte do mundo elas estão localizadas”.
Toole diz que suspeita que a principal preocupação da EMA é que “eles não estão confortáveis” com a vigilância russa de eventos adversos.
Há também preocupações com a Sputnik na Rússia, onde há altas taxas de hesitação em vacinar-se contra a Covid. Uma pesquisa feita em Março sugeriu que 62% dos russos não planejam vacinar-se, e a Rússia está agora introduzindo vacinação compulsória para alguns funcionários públicos e outros trabalhadores para alavancar as taxas de vacinação. Até 28 de junho, somente cerca de 15% da população russa de mais de 140 milhões receberam uma dose da vacina.
Vários outros estudos estão agora em andamento nos vários países que aprovaram a Sputnik, incluindo na Argentina, Venezuela, Rússia e Turquia, o que deve ajudar a construir uma imagem mais precisa da segurança e eficácia da vacina.
Fonte: nature.com