“Cidade Invisível” e a vitalidade da vida interior dos povos

A série “Cidade Invisível” é uma ilha de excelência em um oceano de mediocridade. Saiba o porquê lendo este artigo.

Terminei de assistir a “Cidade Invisível”, uma série brasileira produzida pela Netflix, com a realização de Carlos Saldanha segundo um guião de Raphael Draccon e Carolina Munhóz.

A estrutura narrativa recupera uma série de mitos e criaturas fantásticas do folclore brasileiro, integrando-os no nosso tempo, numa realidade aparentemente normal e quotidiana. Para além do Saci, Cuca e Curupira – que alguns de nós recordam com saudade das adaptações televisivas do “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, de Monteiro Lobato –, surgem entre os protagonistas outras figuras do imaginário tradicional brasileiro, tais como o Boto, Iara, Tutu Marambá ou Corpo-Seco. Apesar de algumas destas criaturas aparecerem deslocadas da realidade geográfica a que se circunscrevem culturalmente, os seus princípios e fins arquetípicos permanecem inalterados, surgindo de uma forma devidamente fundamentada com a orgânica desta história. Mais uma prova da vitalidade da vida interior dos povos.

Situada entre os géneros policial e fantástico, esta série associa um conjunto de mortes e desastres ambientais ao confronto de forças sobrenaturais que interagem com os humanos, condicionando os seus comportamentos. “Cidade Invisível” é uma narrativa anti-moderna, reintegradora do homem no seu próprio espírito, bem como na alma dos locais que habita, proporcionando um despertar das crenças, costumes e tradições que constituem o coração de uma comunidade. Na verdade, a mensagem transmitida pelo argumento recorda-nos bastante “A Encomendação das Almas”, uma das mais belas obras de João Aguiar. Em ambos os casos, valoriza-se o mesmo, ou seja, o mundo natural, na sua perfeita comunhão com as sociedades tradicionais.

A banda-sonora de “Cidade Invisível” é bonita, sedutora e, por isso mesmo, contagiante. Entre os diversos clássicos que a compõem, destaco a presença recorrente do tema “Ave, Lucifer”, da banda Os Mutantes, bem como uma versão da canção “Sangue Latino” – um original do antigo grupo de Ney Matogrosso, Secos & Molhados –, ali reinterpretada pela belíssima voz de Mariana Froes, durante uma das sequências mais bonitas de toda a série.

Para quem conhece a cultura popular brasileira e aprecia os célebres trabalhos de recolha folclórica, antropológica e etnográfica de Luís da Câmara Cascudo, mas sobretudo para quem não está familiarizado com a riqueza desse universo, vale a pena assistir e explorar as histórias, lendas e mitos análogos a esta “Cidade Invisível”.

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José Almeida

José Almeida é licenciado em Ciências Históricas e pós-graduado em Turismo Cultural. Atualmente é redator adjunto da revista ‘Nova Águia’, membro do conselho do MIL - Movimento Internacional Lusófono, colaborador dos jornais ‘O Diabo’ e ‘Agora’, tradutor, editor e investigador do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa. É coautor de várias obras coletivas relacionadas a história, filosofia e cultura portuguesas.

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