O camarada Alípio comenta equívocos sobre cultura popular e cultura erudita espalhados pela militância olavética e cripto-olavética.
Uma olavete entojada, dessas que enche a boca de termos como “alta cultura”, “tradição judaico-cristã”, “família, pátria, manicômio e clube de swing”, que enche tanto a boca que o que expressa se torna ininteligível, anda espalhando que Noel Rosa, Tom Jobim e Ary Barroso são apenas entretenimento, que música popular não se confunde com a erudita, que letra de música não se confunde com poesia e asneiras afins. Na verdade, ela requentou uma ideia do presunçoso Bruno Tolentino.
Bem, ela não só está fragorosamente errada, como também desconhece a tradição que se arroga defender. Por acaso ela não sabe que séculos antes de se adaptar a escrita fenícia à língua grega, os aedos gregos já compunham e sabiam de memória longas canções? Foram como aedos, não como escritores, que Hesíodo e Homero compuseram seus clássicos. O violeiro e o repentista não são muito diferentes dos aedos, que, antes do advento do alfabeto na Grécia, praticavam o culto da deusa Memória e das musas, recebendo dessas divindades a dádiva de compor canções.
Então vou além: o cancioneiro popular brasileiro não só se confunde com a chamada cultura erudita, como também é fruto de experiência divina. É, sobretudo, fruto de experiência divina. No ocidente, a coisa mais próxima da época de Hesíodo e Homero que vocês vão encontrar é um festival de violeiros. Violeiros que tiveram pouca ou nenhuma instrução formal, inspirados pela deusa Memória e pelas musas, servem-se de técnicas de composição oral que durante séculos são transmitidas de geração a geração. Como afirmei algures, o Sertão de Pajeú é o nosso Monte Hélicon. E vou mais além: em um festival de violeiros, seja no campo, seja em uma decadente capital, você tem uma noção do tempo sagrado, forte. Olha, dizem que minha escrita não é a mais medíocre. Bem, anos estudando e exercitando escansão, compondo uns versos aqui e acolá, e não consigo compor um martelo agalopado, improvisado pelos cantadores populares nos seus desafios. Não me serviu de nada estudar exaustivamente suas estrofes de dez versos decassilábicos, as tônicas nas sílabas 3, 6 e 10, saber o que são anapesto e peônio. E ainda que consiga compor um martelo agalopado, não terá a toada potente de um martelo em contexto de desafio. Me pergunto se quem domina técnicas de composição tão rebuscadas só produz entretenimento.
Parece que a moça é aspirante a influencer digital e é levada a sério. No meio intelectual brasileiro em geral e no olavete em particular, vale aquela moral de um dos “Contos fabulosos” de Millôr: “Em matéria de ignorância, a maior vale mais”.