A Lenda Negra da Conquista Espanhola: Ingrediente do Imperialismo Cultural Anglo-Americano

Em toda data comemorativa ligada aos Descobrimentos, seja a chegada de Colombo ao Caribe ou a de Cabral à Bahia, vemos a mesma ladainha de sempre, promovida pelos agentes do progressismo esquerdista, sobre “genocídio indígena”, amaldiçoando o empreendimento épico que deu origem à América Ibérica. Essa narrativa, porém, é produzida em Londres e Nova Iorque, e tem como finalidade garantir a subordinação ideológica dos povos ibero-americanos.

(Conferência pronunciada na Universidade de Sevilha, em 10 de outubro de 2018 – “A Pátria-Mãe como Caso Prático de Subordinação Passiva”)

Estamos a apenas algumas horas de celebrar o Dia da Hispanidade.

Como não nos referirmos, então, em nossas primeiras palavras, precisamente à cidade de Sevilha – que era informalmente a capital da América Latina, embora hoje o ignore -, a uma data tão importante?

Entretanto, por outro lado, a lógica nos diz que devemos começar esta conferência explicando o título escolhido para ela, que, embora as aparências possam enganar, tem uma relação íntima e estreita com o evento histórico que estamos nos preparando para comemorar.

Da mera observação objetiva do cenário internacional, fica claro que a igualdade jurídica dos Estados é uma simples ficção, pela simples razão de que alguns Estados são mais poderosos que outros, o que leva a que o direito internacional seja um obstáculo impossível de ser vencido pelos mais fracos e simples de atravessar para os mais fortes.

Os Estados existem como sujeitos ativos do sistema internacional, desde que possuam poder. Poder militar, poder econômico e, acima de tudo, poder cultural.

Somente os Estados que possuem poder são capazes de dirigir seu próprio destino. Aqueles Estados sem poder militar, econômico e cultural suficiente para resistir à imposição da vontade de outro Estado, são objetos da história porque são incapazes de dirigir seu próprio destino.

Pela própria natureza do sistema internacional, os Estados com poder tendem a se tornar Estados líderes ou a se transformar em Estados subordinados e, como conseqüência lógica, os estados sem atributos de poder suficiente, em questões militares, econômicas e culturais, para manter sua autonomia, tendem a se tornar Estados vassalos ou Estados subordinados, ou seja, a se tornar colônias informais ou semicolônias, independentemente de conseguirem preservar os aspectos formais da soberania.

Nesses Estados, quando são Estados democráticos, as principais decisões nacionais não são tomadas por suas instituições formais, como os parlamentos, mas são tomadas nas costas da maioria de sua população e, quase sempre, além de suas fronteiras.

Os Estados democráticos subordinados têm uma democracia de baixa intensidade. Logicamente, existem graus na relação de subordinação, que é uma relação dinâmica e não uma relação estática.

A hipótese sobre a qual repousam as Relações Internacionais, como argumenta Raymond Aron, é dada pelo fato de que as unidades políticas se esforçam para impor sua vontade umas às outras.[1] A política internacional sempre envolve uma luta de vontades: a vontade de impor ou a vontade de não se deixar impor, a vontade do outro.

A fim de impor sua vontade, os Estados mais poderosos tendem, em primeira instância, a tentar impor sua dominação cultural. Na maioria das vezes, esta dominação cultural é alcançada por Estados poderosos, falsificando a história do próprio Estado que eles pretendem dominar.

O exercício da dominação, se não for adequadamente resistido pelo Estado receptor, provoca uma subordinação ideológico-cultural que faz com que o Estado subordinado sofra de uma espécie de síndrome de imunodeficiência ideológica, devido à qual o Estado receptor até perde a vontade de se defender culturalmente e assume a história construída pelo outro, como sua própria. Esta nação, a nação receptora, cai então em um estado de subordinação passiva, inevitável e muitas vezes irreversível.

Podemos afirmar, seguindo o pensamento de Hans Morgenthau, que o objetivo ideal ou teleológico da dominação cultural, nos termos de Morgenthau, “imperialismo cultural” consiste na conquista das mentalidades de todos os cidadãos que fazem a política do Estado em particular e a cultura dos cidadãos em geral, à qual eles querem estar subordinados. Definindo o conceito de “imperialismo Cultural”, Hans Morgenthau afirma

“Se se pudesse imaginar a cultura e, mais particularmente, a ideologia política de um Estado A com todos seus objetivos imperialistas concretos no transe de conquistar as mentalidades de todos os cidadãos que fazem a política de um Estado B, observaríamos que o primeiro dos Estados teria alcançado uma vitória mais que completa e teria estabelecido seu domínio sobre uma base mais sólida do que a de qualquer conquistador militar ou mestre econômico. O Estado A não precisaria ameaçar com força militar ou usar a pressão econômica para atingir seus fins. Para esse fim, a subordinação do Estado B à sua vontade teria sido provocada pela persuasão de uma cultura superior e pelo maior apelo de sua filosofia política. [2]

Entretanto, para alguns pensadores, como Juan José Hernández Arregui, a política de subordinação cultural tem como objetivo final, não apenas a “conquista das mentalidades”, mas a própria destruição do “ser nacional” do Estado sujeito à política de subordinação.

E, embora Hernández Arregui geralmente reconheça que o Estado de origem da dominação cultural (o “Estado metropolitano”, nos termos de Hernández Arregui) não alcança a aniquilação do ser nacional do Estado receptor, o emissor consegue criar no receptor, “…um conjunto orgânico de formas de pensar e sentir, uma visão mundial extremamente e finamente fabricada, que se transforma em uma atitude “normal” de conceituação da realidade [que] se expressa como uma consideração pessimista da realidade, como um sentimento generalizado de inferioridade, de falta de segurança diante do próprio, e na convicção de que a subordinação do país e sua desierarquização cultural, é uma predestinação histórica, com seu equivalente, o sentimento ambíguo da inépcia congênita do povo em que nasceu e do qual somente a ajuda estrangeira pode redimi-lo.” [3]

É necessário ressaltar que, mesmo que o exercício da subordinação cultural pelo Estado emissor não atinja a total subordinação cultural ideológica do Estado receptor, pode prejudicar profundamente a estrutura de poder deste último, se gerar, por convicção ideológica e falsificação da história, uma vulnerabilidade ideológica que se revela – em tempos de paz – a mais perigosa e grave das possíveis vulnerabilidades para o poder nacional, pois ao condicionar o processo de formação da visão de mundo de uma parte importante da cidadania e da elite dominante, condiciona, portanto, a orientação estratégica da política econômica, da política externa e, o que é ainda mais grave, corrói a auto-estima da população, enfraquecendo a moral e o caráter nacionais, ingredientes indispensáveis – como Morgenthau ensinou – do poder nacional necessário para realizar uma política que vise atingir os objetivos de interesse nacional.

É necessário afirmar, neste ponto de nosso discurso, que a “Lenda Negra” da conquista espanhola da América constituiu o principal ingrediente do imperialismo cultural anglo-saxão para derrotar a Espanha e dominar a Hispano-América.

“O desprezo pela Espanha data dos séculos XVII e XVIII como parte da política nacional da Inglaterra”, diz o filósofo marxista Hernández Arregui, que ninguém em seu perfeito juízo poderia acusar de ser um “falangista”.

“É um descrédito de origem estrangeira”, afirma Arregui, “que começou com a tradução para o inglês, muito difundida na Europa na época, do livro de Bartolomé de las Casas. Lágrimas dos Índios: Um Relato Verdadeiro e Histórico dos Cruéis Massacres e Assassinatos cometidos em Vinte Milhões de Pessoas Inocentes pelos Espanhóis. O título diz tudo. Um libelo”. [4]

Refletindo sobre a descoberta e conquista da América, o grande historiador argentino Jorge Abelardo Ramos, que se juntou às fileiras do socialismo de inspiração trotskista desde muito jovem, afirma que, “…em 12 de outubro de 1492, o liguriano Cristóvão Colombo descobriu para a Europa a existência de uma Orbis Novo…não foi apenas o eclipse da tradição ptolemaica e o fim da geografia medieval. Havia algo mais. Naquele dia nasceu a América Latina e com ela nasceria um grande povo novo, fundado na fusão de culturas antigas”. [5]

Para o próprio Jorge Abelardo Ramos, 12 de outubro é o dia do nascimento da América Latina e este é um fato irreversível – segundo Ramos – independentemente de essa data ser indicada (como) “…descoberta da América, ou Dupla Descoberta ou Encontro de Dois Mundos, ou genocídio, de acordo com o gosto, e sobretudo, de acordo com os interesses, nem sempre claros…”. [6]

Pristinas são as palavras de Abelardo Ramos que aponta a existência de interesses “nem sempre claros”, no momento de refletir sobre a descoberta da América. Entretanto, mesmo esse grande historiador argentino cai em um erro conceitual que é justamente a origem de nossa subordinação cultural passiva em ambos os lados do Oceano Atlântico.

Nós não somos latino-americanos, somos hispano-americanos. E não o somos porque – como explica o grande pensador marxista Juan José Hernández Arregui, que, como já dissemos, não pode ser chamado de franquista – o conceito de América Latina é um conceito falso, um termo criado na França e depois usado pelos Estados Unidos que “disfarça uma das muitas formas de colonização mental”[7] que está tão viva hoje na América Hispânica quanto na Espanha.

Passivamente subordinados ideologicamente, devido ao peso da “Lenda Negra”, de um lado do Atlântico para o outro, descartamos o termo Hispano-América, conceito que, reivindicado no início do século XX pelo grande escritor uruguaio José Enrique Rodo, não deixa de fora, em sua opinião, o Brasil, mas o inclui, já que tanto a atual Espanha como o Portugal de nossos dias faziam parte da Hispania romana. Porque Portugal, acrescentamos, nasceu do Reino de Leão, e toda sua existência desde seu nascimento até a morte de seu amado rei Sebastião, – em 1578, nas tórridas terras do Marrocos banhadas pelo Alcácer-Quibir quando tentou a reconquista da África do Norte para a Fé de Cristo -, girou em torno da dialética da unidade e independência, o que levou as duas coroas, durante todo esse tempo, a buscar a reunificação através do casamento de seus filhos.

Passivamente subordinada, ideológica e culturalmente, através da falsificação da história da conquista, a Hispano-América esqueceu seu progenitor mas, mais grave, a Espanha também passivamente subordinada, ideológica e culturalmente, através da história construída por seus inimigos, esqueceu sua “maternidade metafísica”. Lenda Negra, da conquista da América que foi pulverizada por sérias críticas históricas, como reconhece o mesmo literário e porta-estandarte do pensamento liberal, Mario Vargas Llosa, de quem ninguém podia suspeitar simpatias franquistas ou o abrigo de velhos e ultrapassados sonhos imperiais.

Uma “Lenda Negra” que, como Vargas Llosa reconhece, é uma “construção intelectual fictícia” que, durante séculos, “distorceu profundamente a história da Espanha e ridicularizou seu povo”. Mas uma Lenda Negra que, como o grande escritor peruano reconhece com razão, “ainda está muito viva porque os próprios espanhóis não a quiseram ou não souberam contradizê-la”.[8]

É por isso que, seguindo Hernández Arregui, afirmamos que: “A lenda contra a Espanha erigida pelos anglo-saxões deve ser desarmada pelos hispano-americanos, mais do que pelos espanhóis…a Espanha terá que reconquistar-se a partir da América. [9]

E essa é a tarefa que também estamos realizando nesta conferência.

Segundo Elvira Roca Barea – afirma Vargas Llosa – “a lenda negra anti-espanhola foi uma operação de propaganda montada e alimentada ao longo do tempo pelo protestantismo – especialmente em seus ramos anglicano e calvinista – contra o império espanhol e a religião católica para afirmar seu próprio nacionalismo, demonizando-os a extremos terríveis e até mesmo privando-os de humanidade. Ele dá exemplos abundantes e variados disto: tratados teológicos, livros de história, romances, documentários e filmes de ficção, quadrinhos, anedotas e até mesmo piadas de mesa”. [10]

Vale a pena lembrar aqui algumas das vozes na Hispano-América que ousaram contradizer essa lenda.

Em meu pequeno país, a República da Argentina, todos nossos grandes líderes populares, Artigas, Quiroga, Rosas, Yrigoyen e Perón enfrentaram a lenda negra porque sentiram, naquela falsa interpretação da história da conquista espanhola da América, a mão oculta da “pérfida Albión”.

Permitam-me especificar e recordar, em tempos em que em meu pequeno país a figura de Evita é usada para justificar um fraco “progressismo indígena”, aquele que com aquela paixão que brotou de seu coração e queimou sua alma repetiu, uma e mil vezes, Evita, antecipando com intuição feminina, aquilo que foi provado cientificamente, em nossos dias, pela historiadora María Elvira Roca Barea, “A lenda negra – diz Eva Perón – com a qual a Reforma conseguiu denegrir o maior e mais nobre empreendimento conhecido nos séculos, como foram o Descobrimento e a Conquista, só teve validade no mercado dos tolos ou dos interessados.”[11]

Também, em honra da verdade histórica, com respeito à conquista da América, permitam-me citar aqui o pensamento de Juan Domingo Perón que, vale lembrar, morreu envolto no amor de seu povo e cercado pelo ódio da oligarquia e pelo desprezo de alguns grupos de jovens que, escolhendo o caminho da morte e da violência, levaram à morte de toda a política.

Em 12 de outubro de 1947, Perón, referindo-se à conquista espanhola da América, declarou:

“Seu empreendimento teve a sina de uma verdadeira missão. Ela não veio às Índias ávida de lucro e disposta a virar as costas e partir assim que a fruta tivesse sido espremida e provada. Ela veio para que o mandato póstumo da rainha Isabel de ‘atrair os povos das Índias e convertê-los ao serviço de Deus’ fosse cumprido e maravilhosamente realizado. Ela trouxe a boa nova da verdade revelada, expressa no mais belo idioma do mundo. Ela veio para que esses povos pudessem se organizar sob o Estado de Direito e viver pacificamente. Seu objetivo não era destruir o índio, mas ganhá-lo à fé e dignificá-lo como ser humano… Como não podia ser de outra forma, seu empreendimento foi desacreditado por seus inimigos, e sua epopeia foi objeto de escárnio, pasto de intriga e alvo de calúnias foram transformadas em alvo de calúnias, julgando com critério de mercadors o que havia sido o empreendimento de heróis. Todas as armas foram testadas: recorreu-se a mentiras, se tergiversou o que foi realmente feito, uma lenda foi tecida ao seu redor, cheia de impropriedades, e foi espalhada aos quatro ventos. E tudo isso com um propósito maléfico… para fomentar em nós uma inferioridade espiritual favorável aos seus objetivos imperialistas, cujos porta-vozes assalariados e de altíssimo perfil repetiam, a seu pedido, o sinistro refrão cuja divulgação remunerada era feita pelos chamados órgãos de informação nacional… A Espanha, novo Prometeu, ficou assim durante séculos agrilhoada à rocha da história”. [12]

Como se houvesse alguma dúvida, a motivação religiosa proselitista para a conquista da América, da qual fala o presidente argentino Juan Domingo Perón, foi claramente identificada, também por duas grandes autoridades do marxismo hispano-americano, o peruano José Carlos Mariátegui e o argentino Rodolfo Puiggrós.

É neste sentido que José Carlos Mariátegui afirma:

“Eu já havia dito que a Conquista foi a última cruzada e que com os conquistadores se evadiu a grandeza espanhola. Seu caráter de cruzada define a Conquista como um empreendimento essencialmente militar e religioso. Ela foi realizada em comandita por soldados e missionários. A execução de Atahualpa, embora fosse apenas devido ao rudimentar maquiavelismo político de Pizarro, estava vestida de motivos religiosos… Após a tragédia de Cajamarca, o missionário continuou ditando zelosamente sua lei à Conquista. O poder espiritual inspirava e gerenciava o poder temporal… o cruzado, o cavaleiro, personificava um tempo que estava terminando, a Idade Média católica”. [13]

Na mesma linha, Rodolfo Puiggrós argumenta que:

“A conquista da América prolongou as cruzadas a um cenário de magnitude e características desconhecidas para o soldado europeu… Nenhum estava qualificado tão qualificado como os espanhóis para uma tarefa tão gigantesca. Quase três séculos antes (1212), na grande batalha de Navas de Tolosa que destruiu o exército muçulmano, os cinqüenta mil cavaleiros e peões franceses, provençais, bretões, italianos, alemães e ingleses desertaram e só os ibéricos (soli hispani), lutaram e conquistaram a vitória. Desde então eles lutaram contra o Islã sem ajuda estrangeira… Se o Novo Mundo não tivesse aparecido em seu caminho, é certo que os castelhanos teriam perseguido os súditos do Islã além do Estreito de Gibraltar. O sonho ambicioso de exterminá-los e reconstruir ao longo da costa sul do Mediterrâneo, os domínios dos primeiros cristãos não foram abandonados, enquanto a América não absorveu as energias da Espanha até que se esgotou… Espanha – conclui Puiggrós -, Ela derramou no Novo Mundo seu senso missionário cristão, que, formado na guerra anti-islâmica… injetado nas sociedades que ela criou do outro lado do oceano, o transcendentalismo religioso que, nos últimos dias do feudalismo, sobreviveu às grandes mudanças sociais em curso no Velho Mundo.” [14]

“Contribuiu para a extensão e duração da lenda negra – afirma Vargas Llosa – a indiferença com que o império espanhol, primeiro, e logo seus intelectuais, escritores e artistas, em vez de se defenderem, em muitos casos fizeram sua a lenda negra, atestaram seus excessos e fabricações como parte de uma feroz autocrítica que fazia da Espanha um país intolerante, machista, lascivo e ressentido em relação ao espírito científico e a liberdade”.[15]

Em resumo, a “Lenda Negra” através da qual foi produzida a subordinação cultural passiva da Espanha, que dura até hoje e a leva a não reconhecer seus filhos e a preferir teutões loiros ou árabes muçulmanos em seu solo, foi a obra mais brilhante do marketing político britânico.

O livro de De las Casas foi o primeiro caso em que os órgãos de inteligência de uma unidade política conseguiram transformar uma obra literária ou histórica em um sucesso mundial.

No século XV, a Holanda e a Inglaterra, que estavam em guerra até a morte com a Espanha, decidiram usar o livro Brevíssima Relação da Destruição das Índias do padre espanhol Bartolomé de las Casas como uma ferramenta de propaganda anti-espanhola e conseguiram torná-lo um sucesso mundial em pouco tempo. O livro foi escrito pelo frei Bartolomé, na Espanha, por volta de 1541 e publicado em Sevilha, em 1552.

De 1579 a 1648 (isto é, da rebelião dos Países Baixos à Paz da Vestfália), 33 edições da obra de Bartolomé de las Casas foram impressas na Holanda – inimiga mortal da Espanha – quase todas ilustradas pelo gravador e editor holandês Teodoro de Bry, com gravuras que expressavam em imagens a narrativa que o dominicano fazia das supostas atrocidades realizadas pelos espanhóis na América.

A este respeito, o historiador marxista Jorge Abelardo Ramos afirma:

“Em seu Brevíssimo Relato da Destruição das Índias, e mais tarde em sua História Geral das Índias, o padre de Las Casas ofereceu uma versão, exagerada por sua paixão e muitas vezes cheia de imprecisões ditadas pelos piores recursos polemistas, da crueldade espanhola na Conquista. A destruição crítica de sua Brevísima é simples e os hispanófilos já a fizeram. É importante reiterar aqui que os rivais europeus da Espanha, famosos genocidas e vampiros de povos inteiros, como os ingleses e os holandeses, se lançaram ao trabalho de Las Casas como moscas no mel. As traduções foram imediatamente liberadas nas prensas da Alemanha, da Holanda e da Grã-Bretanha. Aparentemente, a Espanha, em suas conquistas, empregou métodos sangrentos. Seus rivais, no entanto, eram filantropos repletos de piedade”.[16]

É necessário esclarecer que, na América Latina, “a negação da Espanha, por parte da oligarquia, em sua noz, nada mais é do que o resíduo cultural morto de sua servidão material ao Império Britânico. Os povos”, diz Hernández Arregui, “permaneceram hispânicos, afiliados ao passado, à cultura anterior. Isto prova o poder daquela cultura espanhola que a oligarquia repudiou para viver na frente de empréstimo”.[17]

É por estas razões que, seguindo o grande jesuíta de Arequipa, Guzmán y Vizcardo, que foi o primeiro a levantar a necessidade de independência em relação a pátria mãe, quis recordar que nós somos espanhóis americanos e vocês são espanhóis peninsulares.

Portanto, a Espanha foi e continua sendo Pátria Mãe.

Não quisemos nos tornar independentes da Espanha, mas do imperialismo Bourbon, de uma Casa Real que havia tomado o trono da Espanha e que, paradoxalmente, sempre odiou a Espanha Eterna e tudo o que a Espanha havia representado.

A casa real, que se tornou a dona do trono de Isabel a Católica, a maior mulher da história da Espanha, procedeu à expulsão da Companhia de Jesus das terras das Índias, deixando-nos na mais completa miséria geopolítica, militar e cultural.[18]

A expulsão dos jesuítas quebrou o processo de evangelização, deixou as salas de aula das universidades e colégios vazias durante anos de grandes professores e professoras e permitiu aos bandeirantes lançarem-se às missões jesuítas como aves de rapina, deixando aldeias e igrejas em chamas, com o objetivo de ocupar nossas terras e capturar os melhores homens do povo guarani, para levá-los como escravos às minas de São Paulo e Minas Gerais.

Uma Casa Real que, tendo se tornado dona do trono do grande Felipe II, estabeleceu, em 1778, o Regulamento do Livre Comércio que truncou nosso processo de “protoindustrialização” e que levou, desta forma, à miséria de uma gigantesca massa de hispano-americanos que de Bogotá a Córdoba viviam da produção artesanal de ponchos, botas, jaquetas e todas as roupas necessárias para uma vida digna porque a América Hispânica era autossuficiente em tudo o que precisava.

Deve-se lembrar que após a terrível derrota da frota espanhola no Canal da Mancha, a América teve que produzir os artigos que a Espanha não pôde enviar, ou enviava muito caros ou enviava de forma muito esporádica. “A América teve que bastar a si mesma. E isto significou um enorme bem para ela: estava povoado de indústrias para abastecer quase todo o mercado doméstico. Malaspina, escritor do século XVII, nos diz que “o movimento industrial no México e no Peru era notável”. Ele fala de 150 fábricas no Peru, que a 20 teares cada, davam um total de 3000 teares. E Cochabamba, segundo Haenke, consumia de 30 a 40 mil arrobas de algodão, em suas manufaturas”. [19]

Se havia iniciado na América Espanhola a etapa manufatureira.

Com o Regulamento de Livre Comércio de 1778, a maioria da população começou a ficar mais pobre.

A grande historiadora socialista Vivian Trias nos conta sobre isso:

“A enchente de importações que fluiu para o interior representou uma terrível competição para a manufatura e o artesanato vernaculares. A tecelagem, selaria, etc., das províncias mediterrâneas não estavam em condições de competir com itens feitos nos centros mecanizados de fabricação de Manchester ou Glasgow (então) o interior estagnou e depois começou a definha”. [20]

Entretanto, deve ser esclarecido que, apesar da miséria e da angústia que os Bourbons trouxeram à América Latina, os povos andinos permaneceram fiéis à monarquia, pois acreditavam que desta forma, eram fiéis à Espanha.

Foi somente nas terras do Plata, onde a indignação pelos danos causados pelos Bourbons foi mais forte e onde a intriga inglesa havia conseguido penetrar mais profundamente, que os povos se lançaram resolutamente na luta pela independência. É importante ressaltar que a independência, tal como concebida pelos setores populares do Rio da Prata, não implicava de forma alguma uma renúncia à hispanidade – isto é, à cultura, à língua e à religião trazida por Castela à América – mas sim uma renúncia ao imperialismo Bourbon, à Casa dos Bourbons que, desde sua chegada ao trono da Espanha, deixou as terras do Plata em absoluta angústia econômica, militar e cultural. Os setores populares do Rio da Prata não perdoaram os Bourbons pelo Regulamento do Livre Comércio, a rendição da província do Rio Grande do Sul aos portugueses e a expulsão dos jesuítas.

Somente na Cuenca del Plata a independência era popular. Em outras partes da América Latina, como o Peru ou a Venezuela, os setores populares eram a favor de manter o vínculo de unidade com a Espanha.

Hernandez Arregui ousou afirmar, contra a história oficial de todas as repúblicas hispano-americanas, que “a emancipação da Espanha não era desejada na época pelos povos americanos… Os povos não desejavam a separação da Espanha…. Não se diz – sustenta Hernandez Arregui – que em 1810 as massas venezuelanas seguiram o capitão de fragata espanhol Monteverde, vitorioso de Miranda. E não Bolívar… Essas massas, já desacreditado Monteverde, em 1813, não acompanharam Bolívar, mas Boves, o chefe espanhol que efetivamente liderou as classes baixas contra a aristocracia espanhola e crioula. Boves liderou as massas oprimidas que, em 1814, enfrentaram Bolívar sangrentamente Bolívar.” [21]

Por outro lado, é impossível ignorar o fato indiscutível e indiscutido de que o povo simples do Peru foi o nervo do exército monarquista assentado nos Andes e que sem dúvida formavam a maior parte de suas fileiras. “O exército era formado por 23 mil homens de linha e 8 mil milicianos. Naquele poderoso exército (para aquela época) havia apenas 1500 espanhóis europeus. Todos os demais eram peruanos”. [22]

Por outro lado, é impossível ignorar que, de Lima, Arequipa, Cuzco e outras províncias peruanas, vieram as tropas crioulas-indígenas que derrotaram, em Huaqui, o exército enviado de Buenos Aires.

Quando San Martín desembarcou na costa do Peru, os índios, em geral, não se juntaram às forças revolucionárias nos primeiros dias e permaneceram, ao contrário, fiéis ao vice-rei. Os índios lutaram como soldados sob a bandeira hispânica. Quando o vice-rei La Serna deixou Lima e se estabeleceu em Cuzco, ele formou um exército, quase totalmente integrado por índios fiéis à monarquia espanhola e contra a independência, e com este exército indígena, ele continuou a luta até o final, em 1824.

Agudamente, Abelardo Ramos, analisando o processo que ocorreu a partir de 1810, observou que:

“Os oficiais espanhóis eram índios como Santa Cruz, que lutaram contra os americanos vários anos antes de entrar na luta pela independência”. E que, curiosamente, “nas planícies venezuelanas, ou na Colômbia, os espanhóis eram apoiados pelos mais humildes, as chamadas castas, homens de cor, e que eram cavaleiros e guerreiros de primeira categoria”. [23]

Por outro lado, muitos povos nativos, como os araucanos, permaneceram fiéis, até o final, à monarquia espanhola e lutaram ferozmente contra os exércitos independentistas.

Como aponta o historiador chileno Eduardo Cavieres Figueroa, entre 1810 e 1818, período em que começou o processo de independência do Chile, a guerra entre as tropas patrióticas e monarquistas foi travada no centro do Chile, entre a região de La Serena no norte e a região de Concepción no sul, e os araucanos estavam, portanto, alheios a este processo.

Entretanto, essa situação mudaria abruptamente devido à mudança no cenário de guerra em direção ao sul. Nesta nova etapa da guerra, que durou até 1828, os espanhóis se estabeleceram na Araucania e encontraram no povo mapuche um poderoso e fiel aliado. A política do governo chileno em relação à população indígena era ambígua e, apesar de terem buscado sua amizade por necessidade, os mapuches apoiaram em massa e até o último momento a causa monarquista em sua guerra contra o processo independentista.[24]

Apenas como exemplo, citamos como foi forte a lealdade da maioria da população indígena à Coroa Espanhola e sua rejeição à independência que o general do Exército Real do Peru, Don Antonio Huachaca – um índio huantino – continuou a lutar contra a República, juntamente com o povo huantino, até 1839. Com um exército que chegou a quatro mil homens armados apenas com lanças e fundas, o general Huachaca realizou, durante quase duas décadas, uma guerra de guerrilha que ficou conhecida como a guerra dos castelos de Iquicha, pois os altos picos andinos serviram de fortaleza para a resistência monárquica dos camponeses indígenas. Nessa guerra, as massas indígenas eram acompanhadas pelo clero humilde católico que estava encarregado da logística do exército indígena. Por esta ação os humildes sacerdotes de Ayacucho foram excomungados pelo alto clero residente em Lima, subordinados às autoridades da República.

Três anos após a batalha de Ayacucho, o índio Huachaca, em carta dirigida ao prefeito, repreendeu as forças da República, dizendo: “Vocês são antes os usurpadores da religião, da Coroa e da pátria, o que foi ganho de vocês durante esses três anos de seu poder? A tirania, a dor e a ruína de um reino que foi tão generoso. Que habitante, rico ou pobre, não se queixa hoje? Quem é o responsável pelos crimes? Nós não suportamos tal tirania”. [25]

A guerra contra a República e a independência terminou apenas em 15 de novembro de 1839, quando as forças indígenas assinaram o Tratado de Yanallay. Assim, a guerra de Iquicha terminou com um tratado de paz e não com uma rendição, incondicional como as forças republicanas sempre haviam buscado.

Tendo esquecido sua história, a Espanha abre hoje ingenuamente suas portas para os descendentes do antigo invasor muçulmano. Por não se lembrar de sua história, prefere o teutônico louro a seus filhos hispano-americanos. Ao tornar a Lenda Negra sua, a Espanha esqueceu que nenhum hispano-americano, moreno, índio ou branco é estrangeiro na terra de Isabel e Fernando. Por isso, a Pátria acreditando ser livre, está subordinada, subordinada a essa Lenda Negra, o primeiro elo de sua subordinação passiva. A partir desse elo remoto, todos os outros elos que nos levam até o presente serão concatenados.

“A lenda contra a Espanha construída pelos anglo-saxões deve ser desarmada pelos hispano-americanos, mais do que pelos espanhóis”, postulou Hernandez Arregui como um princípio político. “A Espanha terá de reconquistar-se a partir América”, afirmou como imperativo categórico o grande Unamuno.

Bem, essa reconquista começou hoje à noite aqui em Sevilha.

Notas

[1] A respeito ver ARON, Raymond, Paix et guerre entre les nations (avec une presentation inédite de l’auteur), París, Ed. Calmann-Lévy, 1984.
[2] MORGENTHAU, Hans, Política entre las naciones. La lucha por el poder y la paz, Buenos Aires, Grupo Editor Latinoamericano, 1986, p. 86.
[3] HERNÁNDEZ ARREGUI,, Juan José, Nacionalismo y liberación, Buenos Aires, Ed. Peña Lillo, 2004, p. 140
[4] Hernández Arregui, Juan José, ¿Qué es el ser nacional, Ed. Peña Lillo, Buenos Aires, 2005, p. 24.
[5] RAMOS, Jorge Abelardo, Historia de la Nación Latinoamericana, Ed. Dirección de publicaciones del Senado de la Nación, Buenos Aires, 2006, p. 34.
[6] Ibíd., p. 34.
[7] HERNANDEZ ARREGUI, Juan José, op. cit. p. 7.
[8] Vargas Llosa, Mario, Leyendas negras que horadan el poder del enemigo. https://www.lanacion.com.ar/2172654-leyendas-negras-horadan-poder-del-enemigo
[9] HERNANDEZ ARREGUI, Juan José, op. cit. p. 29.
[10] VARGAS LLOSA, Mario, Leyendas negras que horadan el poder del enemigo. https://www.lanacion.com.ar/2172654-leyendas-negras-horadan-poder-del-enemigo
[11] YURMAN, Pablo, Instantes decisivos de la Historia argentina, Buenos Aires, Ed. Imago Mundi, 2018, p.XI.
[12] PERON, Juan Domingo, La comunidad organizada y otros discursos académicos, ed. Machaca Guemes, Buenos Aires, 1973, p. 138.
[13] MARIATEGUI, José Carlos, 7 Ensayos de interpretación de la realidad peruana, Lima, Ed. Amauta, 1994, Págs. 169 y 170.
[14] PUIGGROS, Rodolfo, La España que conquistó el Nuevo Mundo, Buenos Aires, Ed. Altamira, 2005, p. 17.
[15] VARGAS LLOSA, Mario, Leyendas negras que horadan el poder del enemigo. https://www.lanacion.com.ar/2172654-leyendas-negras-horadan-poder-del-enemigo
[16] RAMOS, Jorge Abelardo, op.cit., p. 83.
[17] HERNANDEZ ARREGUI, Juan José, op. cit. p. 25.
[18] Em 27 de fevereiro de 1767 o rei da Espanha Carlos III ditou a pragmática sanção pela qual expulsou a Companhia de Jesus de todos os domínios da monarquia espanhola. Em uma só noite, de 2 a 3 de abril de 1767, todas as casas, residências, universidades, igrejas e colégios pertencentes aos jesuítas na Espanha e na América foram brutalmente invadidos pelas tropas do rei Carlos III. Dois importantes conselheiros do monarca, ligados, através da maçonaria, à diplomacia britânica, o conde de Aranda e o futuro conde de Floridablanca, foram os principais responsáveis pela operação. Uns 6 mil jesuítas foram violentamente detidos, amontoados nas bodegas dos buques de guerra espanhois e transportados aos Estados Pontifícios, onde foram arremessados na praia. O conjunto da operação espanhola, que havia demandado catorze meses de preparação, foi um dos mais importantes triunfos da espionagem secreta britânica.
[19] ROSA, José María, Defensa y pérdida de nuestra independencia económica, Ed. Huemul, p. 21.
[20] TRIAS, Vivian, Juan Manuel de Rosas, Montevideo, Ed. De la Banda Oriental, 1970, p. 14.
[21] HERNANDEZ ARREGUI, Juan José, Nacionalismo y liberación, op.cit., págs. 86 a 89.
[22] ALBORNOZ Santiago, EL Perú más Allá de sus Fronteras, Buenos Aires, Ed. Del Autor, p. 28
[23] RAMOS, Jorge Abelardo, op. cit. p.127.
[24] Al respecto ver, CAVIERES FIGUEROA, Eduardo, Revista Historia Contemporánea Nª 27, Santiago, 2009, págs. 75-98.
[25] ALTUVE FEBRES LORES, Fernán, Los reinos del Perú. Apuntes sobre la monarquía peruana. Lima, ed. Febres y Dupuy, 1996, p. 214.

Fonte: Kontra Info

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Marcelo Gullo

Doutor em Ciência Política pela Universidade do Salvador. Mestre em Relações Internacionais pelo Instituto Universitário de Altos Estudos Internacionais da Universidade de Genebra. Graduado em Estudos Internacionais pela Escola Diplomática de Madri. Licenciado em Ciência Política pela Universidade Nacional de Rosário. Professor da Universidade Nacional de Lanús e da Escola Superior de Guerra.

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