O escritor francês François Bousquet escreve sobre como a influência da Big Pharma sobre os ministérios de saúde dificulta o desenvolvimento de tratamentos e curas para doenças novas, como o coronavírus. A ênfase em protocolos, procedimentos, regulamentos, normas substitui o classo espírito empirista da “tentativa e erro” que por séculos guiou o desenvolvimento da medicina. Por mais que devamos rechaçar o uso da cloroquina como Graal por Bolsonaro, a realidade é que as críticas midiáticas à cloroquina são do mesmo teor e são orientadas pelos mesmos interesses que às críticas à vacina russa.
O que há de novo?
“Molièrrre”, respondia Sacha Guitry incansavelmente, em sua voz de veludo. Molière sempre recomeçava. Poder-se-ia pensar que nossa glória nacional havia sido superada pelo progresso da ciência, enviada de volta à obscura era médica quando a seita dos médicos formava um formidável bando de coveiros – mais caros e mais verborrágicos. Não é o caso. A medicina coronaviral sob supervisão pública ainda confina como nos bons velhos tempos da peste, ainda proíbe de ver os restos mortais dos defuntos como nos tempos da cólera e ela despacha para os casos desesperados Michel Cymes, a coqueluche dos asilos, para anunciar aos últimos residentes que eles não sobreviverão às suas piadas. Mas não entrem em pânico, velhos, haverá máscaras para a próxima epidemia!
É um grande golpe para Hipócrates. Há apenas três meses, a medicina estava sonhando grande, uma nova era estava amanhecendo, a humanidade aprimorada, as nanotecnologias, a inteligência artificial. Da última vez que ouvi falar, apenas os respiradores são artificiais. A medicina, que havia substituído vantajosamente os párocos, ou pelo menos havia se convencido disso, esqueceu o essencial: alguém tem que administrar os últimos sacramentos – desligando os doentes. Aqui está ela novamente tão desamparada, tão atordoada, tão impotente, como no tempo de Molière. Claro, ela não diz mais aos infelizes: “Sofra, nós cuidaremos do resto!”, ela acrescentou uma pitada de paracetamol. Pegue um pouco de Doliprane, e nós cuidaremos do resto!
Pharmafoirus como Digno Herdeiro
É difícil detectar nos traços dos burocratas do Ministério da Saúde e nas relíquias saídas do asilo que é a Academia de Medicina, todos escolhidos pelo próprio Macron, avatares, ainda que distantes, do Doutor Diafoirus. No entanto, é ele quem governa nossa saúde. Seu campo de irradiação até se alargou consideravelmente, tanto que deveria ser chamado de Pharmafoirus. Como seu ancestral, Pharmafoirus fez da cura de doenças inexistentes a sua especialidade, de acordo com a forte doutrina e palavra do Dr. Knock. Onde Diafoirus espantava com termos em latim os idiotas que ele encontrava, ele agora os inunda com moléculas de fórmulas obscuras. Onde seu ancestral multiplicava enemas purgativos inserindo seringas anatomicamente monstruosas tão grandes como bombas de bicicleta rústicas em suas nádegas, ele os vacina com picadas fixadas em alumínio. Lá onde ele faria sangrar até a morte, ele entubara até a asfixia.
A Peste ou Didier Raoult
Pharmafoirus não tem rosto, apenas máscaras sucessivas (que ironia em um momento em que não se consegue fazer o suficiente delas). Se há duas pessoas a censurar, rostos contorcidos, recheados de arrogância, é o casal infernal Agnès Buzyn-Yves Lévy. A supervacinação precoce na França, é ela. O lobista farmacêutico das vacinas, ele. A multiplicação dos conflitos de interesse, são eles. Ela é a que pede o relaxamento das regras sobre conflitos de interesse. Os ataques incessantes a Raoult também são eles, são eles primeiro – e Didier Raoult não hesitou em apontar isso, quando os “fundamentalistas do INSERM”, então dirigidos por Yves Lévy, quiseram cortar a regulamentação dos Institutos Hospitalares Universitários (IHU), inclusive a sua própria. Tudo isso já foi dito repetidas vezes.
É a “Geração AIDS”, para falar como o infectologista marselhês, a doença das elites culturais, não dos Coletes Amarelos, como se suspeita, mais Teleton do que Sidaction, mas shhh! Pierre Bergé pode ridicularizar tanto quanto seu dinheiro permite as prioridades filantrópicas dos caipiras, o contrário não é possível. Devidamente observado.
Esta geração não é apenas Yves Lévy, é também Jean-François Delfraissy, à frente do Conselho Científico do Eliseu e Françoise Barré-Sinoussi, à frente do CARE (Comité analyse recherche et expertise) – mais um pseudópode inútil recém-criado pelo executivo, que existe para redobrar as decisões do Conselho Científico (por uma questão de ego, certamente). Clemenceau recomendava nomear comissões para enterrar os problemas. Fazemos melhor: criamos problemas ao multiplicar as comissões.
Geração AIDS
A propósito, que lingüista caridoso virá fecar as torneiras de água morna deste vocabulário psicologizante, compassivo, anglicizado em excesso, mergulhado nos açúcares das inanidades humanitaristas. O que poderia ser mais absurdo do que a CARE! O Estado francês não é uma ONG, inferno! E por que lançar uma Operação Resiliência tão prematuramente (e triunfantemente) quando acabamos de entrar na fase epidêmica – e não pós-traumática, tanto quanto sabemos. Do que seria a Covid-19 resiliente nesta fase, se não do descuido e da incompetência do executivo? Todos esses quilotons de solicitude reciclados pela novilíngua dos comunicadores acabam por não dizer nada à força de dizer tudo. Fatalidade do macronismo nascido de um golpe midiático, sua gestão de crise tem a marca da comunicação da qual procede. Mas esta comunicação de crise foi projetada para gerir as infidelidades do cavalheiro e a cor dos vestidos da madame, não para enfrentar pandemias. A gestão torna-se então mera gesticulação.
Voltemos a essa geração dourada e tapete vermelho, clinicamente falando. Há quase 40 anos eles estão procurando uma vacina contra a AIDS, assim como outros estavam procurando o ouro dos Incas. A busca por este Eldorado já engoliu bilhões. Neste nível do lodaçal, a pesquisa agora se resume a nada mais do que a busca de financiamento para financiar o financiamento da busca por financiamento.
Cocoricovid
O futuro dirá se Raoult e suas equipes estavam errados. Será suficiente comparar os níveis de penetração epidêmica em Marselha e no resto da França. Em qualquer caso, as declarações do professor terão dado um pontapé fantástico no cupinzeiro médico e, acessoriamente, colocaram a triagem na ordem do dia na França. É surpreendente, além disso, que esta triagem, cuja quase-obrigação é afixada em todos os consultórios médicos na França, pudesse ter sido objeto de tal barragem de fogo. Raoult? Quem sabe!
País curioso. Finalmente temos um tamanho de sapato internacional, só falta ensaboar a calçadeira. Os marselheses, orgulhosos e redescobrindo os sotaques tarasconianos de Tartarin, acreditam estar vencendo novamente o Clássico, mas a verdadeira partida é entre a elite, certamente parisiense, e o povo. Este último está pronto para lançar o Cococoricó, o Cocoricovid, fazendo uma bela quenelle para o Sistema. Raoult é seu campeão, ele não teve direito a um tweet impressionante de Trump, o maior artista do momento, que, por sinal, se parece cada vez mais com Michou.
Os fãs de Raoult o compararam com o druida Panoramix. É lisonjeiro. A verdade é que não sabemos se Raoult é Panoramix ou Amnésix, o druida encarregado de curar o Panoramix no Le Combat des chefs, depois que um lançamento supersônico de menhir, obra daquele desajeitado Obelix, o atingiu (Amnésix também, a propósito): simplesmente genial ou gênio, mas louco? Pasteur ou Pastis? Ou ambos, talvez.
Para seu crédito, ele cuida de doenças sem nenhum tratamento conhecido como elas devem ser tratadas: empiricamente, tateando, remendando, errando, como os pioneiros, como os aventureiros.
Espera aí, objetam seus detratores. Vocês não acreditam nisso! E a metodologia? E o protocolo terapêutico? E o código de trânsito?
Oh pessoal, ele não sai de férias, o Raoult, ele está dirigindo uma ambulância a 180 km/hora em um sistema hospitalar lotado de pacientes.
Fuja, populista, vá!
Foi disso que um chefe de departamento, o idiota do dia, o censurou (“populismo médico”). Ele foi ouvido. Pharmafoirus decidiu, portanto – muito oficialmente, muito hipocritamente e muito metodicamente – testar a hidroxicloroquina em ratos durante seis meses, depois em coelhos brancos durante o período de reprodução, depois em Agnès Buzin, antes de deliberar por votação entre o comitê Theodule, como eu batizei o Conselho Científico, e o comitê Theophraste, como eu batizei a CARE e o ego de Madame Barré-Sinoussi. E quando houver 100 mil mortos, a cloroquina será finalmente administrada, mas aos sobreviventes. Que bonito!
O Anti-Discurso do Método
Francamente, o método não importa, tal como o protocolo. Não há nenhum método que caiba aqui. O falecido professor Lucien Israel, um cara excepcional e um grande atirador, costumava dizer dos protocolos de tratamento que este era o ápice da mediocridade médica. Raoult não diz outra coisa, a exuberância é um bônus. O “paradigma do para-quedas” e o “método do Tom” narrados por ele, vem de Jean Yanne. Eles deveriam ser ensinados em todas as salas de aula de medicina. Sua irrefutabilidade deixaria Karl Popper perplexo.
A verdade é que a maioria das grandes coisas que mudaram o curso da história foram feitas sem protocolo. Melhor ainda, elas só foram possíveis porque alguém jogou a porra do protocolo pela janela. De que outra forma devemos entender “a letra mata, mas o Espírito vivifica” como regra de vida? O protocolo é para os tolos, para os doutores da lei, para os fariseus, para Adolf Eichmann. Eichmann seguia ao pé da letra o protocolo. Amém!
Quando sabemos como funcionam os comitês de leitura “independente”… Os alegres homens que publicaram o embuste sobre a cultura do estupro nos passeios públicos com cães são inesgotáveis no nível intelectual destas revistas eruditas. Menção especial em seu documento à discriminação contra os cavalheiros caninos trans não-binários, não notada nem mesmo pelos membros do conselho editorial. Neste nível de incomensurabilidade, a metodologia lembra furiosamente o escolasticismo e a silogística brocados por Rabelais. Alfred Jarry e o Dr. Faustroll não estão muito longe. Há toda uma literatura acadêmica dedicada ao assunto desde o estudo pioneiro de John Ioannidis, “Por Que os Resultados da Maior Parte das Pesquisas Públicas São Falsos” (Universidade de Stanford, 2005). Os “Monsanto Papers” revelaram como a FDA, a Food and Drug Administration, a principal agência americana, estava gangrenada até a medula.
Leiam o excelente blog “Anthropo-logiques” de Jean-Dominique Michel, um antropólogo médico suíço, que é um perfeito conhecedor dos mistérios do mundo da medicina. Ele fala da “corrupção sistêmica”, ou seja, que a corrupção é endógena ao sistema de saúde, é até mesmo sua assinatura genética. Médicos, industriais, órgãos públicos, a relação tornou-se incestuosa, a ponto de dar origem a monstruosidades: escândalos de saúde (Mediador, Depakine, Vioxx, crise dos opiáceos, etc.) Crime organizado, diz o pesquisador Peter Gøtzsche, co-fundador da maior organização mundial dedicada ao monitoramento da Big Pharma. Então, depois do crime de colarinho branco, o crime de jaleco branco?
A Falência de um Sistema
É todo um sistema que foi à falência, privado e público na mais perfeita mistura de gêneros – os laboratórios, o Ministério da Saúde, as agências sanitárias governamentais, os mandarins das Faculdades de Medicina. Ah, esses mandarins! Abram Les Morticoles (1894), escrito por Léon Daudet. É Molière a 250 anos de distância, uma fábula ultrajante, swiftiana, contra os caprichos médicos, muito próxima, a comparação surpreenderá, da Némésis Médicale, de Ivan Illich (1975).
E ainda nem Léon Daudet nem Molière conheciam o médico funcionário, a rotatória da saúde, o tecnocrata médico que gerencia o coronavírus com planilhas Excel em regime de teletrabalho. O diretor da Agence régionale de Santé du Grand Est (obviamente nomeado pelo Estado, à frente de uma região sem outra existência que não seja administrativa) fez as duas coisas. Christophe Lannelongue seu nome nome. Este patronímico deve ser enquadrado e levado à atenção da posteridade. Autoconfinado em Paris, este alto funcionário público, com chocolate quente na mão, controlava desde sua cozinha a resposta do Estado à ofensiva do Covid no Alto-Reno, enquanto declarava, no início de abril, ainda a partir sua cozinha parisiense, aos surpreendidos jornalistas do L’Est républicain, que estava fora de questão, com ou sem pandemia, cessar o corte de empregos e leitos no Centro Hospitalar Universitário Regional de Nancy, quando eles eram buscados desesperadamente! Macron o demitiu, embora ele estivesse apenas aplicando escrupulosamente o roteiro presidencial.
De Max Weber a Michel Crozier, uma sociologia bastante conservadora mostrou como em universos impessoais e desumanizados às vezes se desenvolver uma “personalidade burocrática”, geralmente estreita, voltada a ampliar constantemente seu perímetro de poder. O lebensraum do funcionário público e seu carimbo! É surpreendente que o poder de carimbar confira poder àquele que detém o carimbo. A emissão de homologações para fabricar máscaras ou para realizar testes nos deu um vislumbre disto. Quantos laboratórios correram atrás de uma autorização administrativa que pode não chegar nunca?
Mas isso não é nada em comparação com a administração central. Do topo do Ministério da Saúde, fortalecido por seu jacobinismo criminoso, ela fundiu as agências à medida tal como foram fundidas as regiões e as comunas, com uma regra de cálculo, com preconceitos tecnocráticos e com um desconhecimento total das realidades locais. O resultado foi uma super-usina a gás (as únicas que ainda estão sendo construídas na França). Aqui, em duas palavras, está a história da Agência Nacional de Saúde Pública, criada em 2016, com base em um relatório que, por sua vez, foi o resultado de relatórios que se assemelhavam a todos os outros relatórios que podem ser lidos em outros relatórios, ambos chamados, ironicamente se assume, de relatórios de atividades, quando a principal atividade é simplesmente escrever relatórios. Inevitavelmente, esta agência nacional que reformulou tudo engoliu a agência que administrava os estoques estratégicos de drogas e equipamentos. Já para a escotilha!
Quebra de Estoque
Argumentar-se-á que esta noção de estoque é agora uma heresia contábil pertencente aos velhos tempos. Em uma era de globalização e fluxos just-in-time, o melhor estoque é a ausência de estoques, por mais estratégicos que eles sejam. Se, além disso, não há mais estoques estratégicos, infere-se, como nos ensinaram a fazer na escola, que não há estratégia alguma.
Tudo isso, ademais, não impediu o Estado de antecipar os estoques de hidroxicloroquina – de repente os estoques estratégicos recuperaram seu pleno significado – para formas graves de Covid, embora pareça que a molécula é ineficaz quando tomada em uma fase de dificuldade respiratória. Por uma vez, milagre, não há escassez no horizonte. Ai! Assim, decidimos criar uma, no local, secando os estoques da molécula (e enquanto isso, o grupo “francês” Sanofi, fabricante da referida molécula, escolheu distribuí-la gratuitamente em todo o mundo, 100 milhões de doses de qualquer forma). Quebra de estoque, este poderia ser o título da tragicomédia nacional que tem sido executada nos últimos dois meses. Quebra de máscaras, quebra de testes, quebra de cuidadores, quebra de leitos, quebra de imaginação, quebra de líderes. Régis Debray nos lembrou recentemente uma das últimas palavras de Malraux, a quem foi perguntado pouco antes de sua morte o que caracterizava nossa idade: “A ausência de decisão”, ele respondeu laconicamente por uma vez. O que ele diria hoje? Comitês, comissões, órgãos consultivos intermináveis. Sempre adiando a tomada de decisões, sempre procrastinando. Ninguém quer escolher, nós preferimos delegar o cuidado ao “método”. O método é indiferente: protocolos, procedimentos, normas, leis, regras. Para o resto, a procrastinação preside a ausência de decisão. Também aqui, o decisionismo schmittiano – repete-se, a essência do político, onde se funda a soberania – foi derrotado pelo normativismo, porque existe um normativismo médico, não apenas jurídico. Esta falta de decisão é geral, afeta tanto o cientista quanto o político, para falar como Max Weber, cada um em seu respectivo registro. Talvez ainda mais na França, onde, de acordo com a tradição jacobina e saint-simoniana, a administração das coisas a partir de Paris substituiu o governo dos homens a partir de suas casas. O que significa, em bom francês, que estamos realmente na merda.
Artigos Precedentes
Biopolítica do Coronavírus (I) – A Lição de Michel Foucault
Biopolítica do Coronavírus (II) – O Paciente Zero é a Globalização
Biopolítica do Coronavírus (III) – Tempo Ruim para os “Sem Fronteiras”
Biopolítica do Coronavírus (IV) – A Imunodeficiência das Elites
Biopolítica do Coronavírus (V) – O Caso Griveaux: Paris vale uma Epidemia
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Biopolítica do Coronavírus (VII) – Coletes Amarelos e Jalecos Brancos: Os “Empregos de Merda”
Fonte: Éléments
Ótimo artigo, parabéns