Iberê Camargo, o maior pintor Sul-Brasileiro do Séc. XX, soube, como nenhum outro, expressar à sua época a experiência de mundo do povo do pampa, sua tragicidade estoicamente sustenida; a cálida geada que pousa sobre o pala em ombros de ferro.
O fez, porém, sem representações objetivas e figurativamente étnicas. Antes, captou, através de seus frígidos azuis, sanguíneos marrons e vibrantes vermelhos, o que de universal, ou ainda, transcendental, paira na áurea destes homens e mulheres desta terra. Através deste prisma, é plenamente possível enxergar em Iberê uma manifestação – ainda que protofásica – de um artista quarto-teórico.
“[…] Aqui está meu pátio, meus queridos fantasmas, meus sonhos. Quem […] criado no asfalto, entenderia o mistério de uma mula sem cabeça parada em seu portão? […]”(1).
Iberê, quando pintou, pintou enquanto sul-americano; mais, enquanto gaúcho de restinga-seca, erma cidade em que nasceu e passou os primeiros anos de sua infância.
Seus primeiros trabalhos icônicos, a série dos carretéis, colocam a rememoração destes seus brinquedos de infância – oriundos da mãe, costureira – transfigurando-os em natureza-morta que, hora mais figurativos, hora tendendo mais à abstração, carregam sempre, no gestual massivo de pura tinta sólida, bem como nas cores fechadas, graves, explodindo em fugazes brancos que ornamentam e dão movimento às composições, sua busca pela atualização, pelo re-fazer presente, não apenas os carretéis, mas o tenro labor da mãe emudecido pelo pedal da máquina de costura, a misteriosa presença, entre a bruma invernal, da estação ferroviária onde o pai trabalhava; a sanga cristalizada pelo frio da alvorada e enegrecida ao anoitecer, ou seja, seu enraizado “mundo”, sendo este nada menos que o cerceador ontológico de seu transbordante olhar-memória sob a tela.
“[…] os carretéis, carregados de lembrança de meu mundo de criança, tornaram-se míticos personagens de uma saga de fantasmagóricas visões. […]” (2)
No entanto, sua formação técnica e intelectual se expande para muito além dos limites de “seu pátio”: viaja a Roma e a Paris, estuda os grandes mestres da Antiguidade, conhece artistas de renome internacional, como Giorgio De Chirico – considerado o precursor do surrealismo – De volta ao Brasil, monta ateliê na cidade do Rio de Janeiro – onde anos antes conhecera Portinari – residindo boa parte de sua vida produtiva na eterna capital nacional, mas sem nunca perder o seu núcleo, sua medula criadora arraigada nos campos gaúchos e que dá a tenacidade pictórica que lhe é peculiar.
“[…] Lembro de uma infância em que eu corria no mato, parecendo aquelas moscas douradas que ficam paradas no ar e que, como um disco voador, nos surpreendem com súbitas guinadas. Lembro do mato e suas teias de aranha – quase um mundo encantado… Depois a fase das namoradas […] aquelas coisas de fauno que não se realizam. […]” (3).
Depois de grandes exposições nacionais e internacionais, além de um painel de 49 metros quadrados pintado para a Organização Mundial da Saúde (atualmente exposto no saguão da instituição em Genebra, na Suíça), Iberê possui uma carreira indiscutivelmente consolidada, até que, no ano de 1980, próximo ao seu ateliê no bairro Botafogo, o pintor entrará em uma briga de rua em que sairá homicida, executando a tiros seu suposto agressor.
No ano seguinte, após ser considerado inocente, retornará em definitivo ao seu ateliê na rua Lopo Gonçalves, em Porto Alegre (RS). A partir de então, sua criação gradativamente buscará a figura humana de forma cada vez mais visceral, alcançando uma expressividade e síntese conceitual poucas vezes obtida no cenário da pintura ocidental.
“[…] A minha pintura é o desespero, porque é a única posição de um brasileiro, de um sul-americano […]” (4).
Já quase um septuagenário, o artista continuará trabalhando obstinada, incansavelmente. Muitas vezes, 14 horas por dia, como o próprio relatou em algumas oportunidades. Sua busca, mais constante que nunca, pela presença humana em suas composições, reflete a necessidade de conseguir possuir esta natureza que foi capaz de fazer cessar com as próprias mãos.
As personagens, sempre reflexivas, expõem seu peso existencial, tanto na materialidade da pura tinta empastada que forma seus corpos, como nas expressões introspectivas de seus pulsantes rostos quase abstratos.
Não obstante, em duas de suas séries mais características dentro desta linguagem – “Ciclistas” e “Idiotas” – o cordão umbilical da Terra é também o fio de Ariadne que se faz presente nos signos de sua afirmação identitária, através dos gélidos cerros e planícies terrosas que, no horizonte das pinturas, rememoram a terra fértil, a eterna Arcádia onde o “guri” do interior construiu seu imaginário podendo assim transportá-lo para uma linguagem que atravessou os limites tribais – sem nunca deixar de sê-lo – dando, em cada quadro, uma janela para dentro da alma deste povo orgulhoso e arisco que verte sangue indômito farroupilha.
“[…] A obra de arte nasce como um mundo que se organiza: É sempre criadora de mundo. […]” (5).
1.MARGS/FUNARTE; Iberê Camargo – Coleção Contemporânea, nº1; 1985; p. 32
2.MARGS/FUNARTE; Iberê Camargo – Coleção Contemporânea, nº1; 1985; p. 22
3.MARGS/FUNARTE; Iberê Camargo – Coleção Contemporânea, nº1; 1985; p. 15
4.MARGS/FUNARTE; Iberê Camargo – Coleção Contemporânea, nº1; 1985; p. 37
5.MARGS/FUNARTE; Iberê Camargo – Coleção Contemporânea, nº1; 1985; p. 38