Se, de início, o coronavírus parecia ser um vírus que só afetava as classes mais abastadas, meses depois já podemos dizer que o vírus ataca, prejudica e acaba com as vidas dos pobres, muito mais do que dos ricos. E não só em um sentido físico, literal, mas também no âmbito econômico, na medida em que a pandemia acelera os projetos de privatização, a tendência à precarização e a ampliação dos mecanismos de controle e vigilância.
Mesmo à primeira vista, os aspectos que nos permitem afirmar que o Coronavírus acelerou e potencializou algumas tendências já em curso na globalização capitalista são diversos e de modo algum secundários. A este respeito, pode-se argumentar razoavelmente que, se não o contágio, a gestão econômica, política e social tem sido, sem dúvida, uma gestão plenamente classista. Tanto que, quase imediatamente, a pandemia do covid-19 transformou-se em uma pandemia de desigualdade, assumindo conotações inexoravelmente socio-econômicas.
Em primeiro lugar, a Covid-19 acelerou o já experimentadíssimo processo de privatização das existências. Se, como sabemos, o capitalismo se baseia em uma antropologia “insociavelmente sociável” (Kant), baseada no distanciamento do outro de qualquer vínculo que não seja o mero nexo de dinheiro (Carlyle), podemos afirmar com razão que o coronavírus confirmou e fortaleceu esta tendência: e o fez elevando o princípio do “distanciamento social” a uma nova norma de organização da sociedade dos átomos em lockdown; os quais, veja, são livres apenas para comprar mercadorias, ademais, sob formas que sempre e apenas beneficiam os gigantes do comércio eletrônico e as multinacionais (que, aliás, ao contrário dos artesãos e das pequenas empresas locais, não foram sujeitas a fechamento).
E com isso já estamos em presença de uma segunda tendência da globalização, fortalecida pela covid-19: aludo ao “massacre de classe”, como o chamei em História e Consciência do Precariado. Ele é administrado univocamente pela elite globocrática, financeira e multinacional contra as classes trabalhadoras e a classe média.
Longe de afetar a todos da mesma maneira, como a ordem do discurso tem repetido com frequência, a pandemia revela uma clara vocação classista: em resumo, ela afeta os fracos e favorece os fortes. Mais precisamente, a pandemia suplicia e flagela os trabalhadores e os pagadores de IVA, os assalariados com contratos atípicos e as pequenas empresas locais, os artesãos e a classe média. E, ao mesmo tempo, permite que às multinacionais (se não todas, muitas), aos gigantes do comércio eletrônico e aos potentados econômicos sem fronteiras intensificar a produção de mais-valia.
Outra tendência, que também é decisiva e há muito tempo é coessencial para os processos de produção de mais-valia capitalista, não deve ser esquecida: a sociedade tende a se mover on-line e as relações são digitalizadas. O mundo real se torna um conto de fadas e a sociedade humana se desumaniza tomando a forma da nova “sociedade sem contato” (contactless society): uma sociedade alienada em cada átomo dela, na qual o trabalho se transforma em smartworking a partir de casa e o ensino é pervertido em e-learning.
O capital, desta forma, garante uma dupla vitória: a) apaga o espaço entre “tempo de vida” e “tempo de trabalho”, permitindo que este último colonize o primeiro (a empresa se enxerta no próprio coração do oikos); b) neutraliza a priori todo possível protesto concreto, todo “movimento real” (Marx) que possa se organizar como uma subjetividade revolucionária autoconsciente – e, por isso mesmo, na praça e não on-line – e lutar para derrubar a ordem dominante.
O coronavirus, além disso, reforçou as já desenfreadas tendências neoliberais, reforçando imensamente o que foi corretamente definido como “capitalismo de vigilância” (Shoshana Zuboff). Os drones no céu e os aplicativos de rastreamento em telefones celulares são o emblema máximo, mas não os únicos.
Finalmente, é evidente como o surgimento do coronavírus – e este é um assunto sobre o qual não nos cansaremos de insistir – reforçou (não apenas na Itália, obviamente) o domínio da classe hegemônica através de uma reorganização vertical-autoritária das relações de poder. Como tenho argumentado repetidamente, o poder executivo contornou o legislativo (pense-se, exempli gratia, do “DPCM”), alguns princípios da Constituição foram suspensos em nome da emergência pandêmica e algumas liberdades fundamentais foram congeladas, sempre em nome do perigo ligado à propagação do contágio. Isto, com boa tranquilidade de algumas narrativas amplamente cômicas, não deu origem a uma gestão “justa e solidária” da situação: mais uma vez, de acordo com outra tendência própria do liberalismo dominante, testemunhamos o Estado que governa – para retomar a distinção de Foucault – não “o” mercado, mas “para o mercado”. E, é claro, para seus agentes, o que foi mencionado acima.
Como prova desta virada vertical-autoritária, considere as forças-tarefa e, em particular, aquela para o “reinício econômico do país”. Elas devem ser examinadas em suas formas e conteúdos. No que diz respeito às formas, esses são grupos não eleitos, mas impostos diretamente de cima: e isto sempre em nome daquela emergência que – também nisto reside seu raciocínio governamental – impõe escolhas imediatas, sem a perigosa perda de tempo do parlamento e do voto democrático. A emergência é uma das formas mais eficazes de suspender de facto os procedimentos democráticos, mas permitindo que eles sobrevivam de jure. No que diz respeito aos conteúdos, a força-tarefa acima mencionada tem como guia o “gestor” Vittorio Colao. Sobre cujo posicionamento real no diagrama das relações de poder, toda palavra seria realmente supérflua.
Uma coisa é certa: por trás do nome sóbrio dos “técnicos” super partes da força-tarefa, esconde-se, evidentemente, um núcleo de ação da classe dominante, que, com toda probabilidade, contrabandeará como “interesse nacional” e “reinício do País” o conhecido programa de privatizações e liberalizações. Em resumo, o vírus, desde seu infeliz aparecimento, tem sido “alistado” pelo pólo dominante em sua impiedosa “guerra de classes de cima” (Gallino): e, de fato, provou ser um valioso aliado.
Fonte: Il Fatto Quotidiano