Um dos vícios mais deletérios de grandes intelectuais brasileiros — do porte de um Gilberto Freyre, Luiz Felipe de Alencastro ou de um André Martin — é a demasiada ênfase em uma suposta continuidade entre o Brasil e o Império talassocrático lusitano.
Sem entrar em considerações sobre a verdadeira natureza da psique portuguesa — que nem sempre foi talassocrática, o Brasil se desenvolveu por meio da conquista de seu espaço continental.
O gado avançou pelo sertão no Nordeste e pelas fronteiras meridionais. Bandeirantes avançaram pelas matas caçando indígenas com o fito de abastecer toda uma sociedade que cultivava trigo na paulistolândia e que vivia de costas para o litoral. Jesuítas criaram missões cada vez mais para dentro do Continente, no Norte, Oeste e Sul.
Com a descoberta do ouro, todo uma integração aconteceu no Centro-Sul, das Minas Gerais até Goiás e Mato Grosso. A decadência da mineração converteu essa região à produção de alimentos: Minas foi a maior província escravista do país até 1830, e isso com uma economia voltada prioritariamente para o mercado interno.
A fronteira agrícola avançou da cafeicultura na floresta da Tijuca, para o Vale do Paraíba Fluminense, depois para o Vale do Paraíba paulista, e finalmente Oeste de São Paulo. A partir dos anos 1950, atingiu o Centro-Oeste e as fronteiras da Amazônia.
Floresta amazônica essa que sempre foi objeto de grandes esforços de integração com a Bacia do Prata, povoamento e construção de metrópoles, com a Zona Franca de Manaus. Nossa Indústria também saiu do litoral, para ganhar São Paulo, Minas, o Paraná e se focar cada vez mais na integração econômica do Cone-Sul.
Em todo esse processo, permanecemos um dos países mais fechados para o comércio mundial. Depois do fim do tráfico atlântico de almas, só lembramos de Angola — país com extremos laços com o nosso — a partir dos anos 1970, já sob uma ótica geopolítica subordinacionista aos interesses atlantistas.
Enfim, o Brasil é herdeiro de Portugal. Mas não é herdeiro de sua talassocracia, nunca foi. E os discursos que pretendem torná-la em algo semelhante a isso só se fortaleceram com o abandono do projeto de Brasil soberano, de Brasil potência.
Mais Manoel Bonfim, menos Alencastro.
Ademais, a presença cultural indígena e africana, que não foi erradicada da memória como ocorreu nos EUA, enfraquece ainda mais o pouco de influência talassocrática que temos, fato que se repete na maior parte da América Latina. Apesar do vasto litoral, a imensidão territorial interna nos torna radicalmente do reino português, encurralado contra o mar.
É também nesse sentido de interiorização, algo que devemos valorizar ainda mais ao ponto de clamar por um êxodo urbano especialmente litorâneo, que deve-se dar mais atenção ao impacto histórico da construção de Brasília. Um dos mais relevantes movimentos de interiorização já ocorridos.