Em sessão remota nesta quarta-feira, o Senado aprovou o novo marco legal do saneamento básico (PL 4.162/2019). O projeto é de iniciativa do governo mais entreguista da história, que mentiu para defender a privatização do saneamento. Ao contrário do que eles afirmam, tal serviço público não é deficitário. Publicamos um artigo que discute as implicações da Guerra da Água em Cochabamba, pensando nas lições que podemos extrair desse episódio.
Abril de 2000, um capítulo épico na história da Bolívia, onde o povo unido
expulsou uma poderosa corporação multinacional que havia privatizado a água e mostrou que a violência revolucionária do povo é sagrada.
O episódio conhecido por “Guerra da Água” se caracterizou por ter uma narrativa muito simples e poderosa: em 1997 o Banco Mundial declarou que não renovaria um empréstimo de 25 milhões de dólares à Bolívia se o país não privatizasse seu serviço de abastecimento de água nas principais cidades.
Em setembro de 1999, o governo boliviano, sem consultar a população entregou a água de Cochabamba, terceira maior cidade do país, a um consórcio liderado pelas Águas del Tunari (subsidiária do grupo norte-americana Bechtel, que operou no Iraque pós-invasão).
Gradativamente, como todo recurso natural privatizado, a empresa elevou as tarifas de água até o ponto que a população tinha que escolher entre fazer comida ou tomar banho diariamente. Além do abuso de privatizar um bem comum é, por si só, a Águas del Tunari ainda incluiu uma cláusula no contrato que multava quem fosse flagrado captando água da chuva.
A situação tornou-se insustentável e mais uma vez a ancestralidade agressiva do povo se fez necessária, desatando uma rebelião popular sem procedentes. Ocorreram confrontos extremamente agressivos entre populares (o que é compressível) com a polícia local, paga com os impostos da própria população para defender a multinacional, culminando na morte de uma pessoa (Victor Hugo Daza) e dezenas de feridos.
Em 8 de abril, o presidente Hugo Banzer Suarez declarou estado de sítio. Os líderes do movimento foram presos e diversas estações de rádio fechadas. O ciclo de protestos foi concluído em 20 de abril, quando, o governo boliviano cedeu à pressão popular e acabou por desistir da privatização, anulando o contrato de concessão de serviço público, firmado com a filial americana, que deveria vigorar por 40 anos.
A Guerra de Água chamou a atenção de organizadores, intelectuais, artistas, investigadores, jornalistas, e inspirou produções cinematográficas, que citam este acontecimento entre os abusos causados pelo liberalismo no mundo, como o documentário canadense The Corporation (2003).
“Conflito das Águas” (También la Lluvia, 2010), coprodução cinematográfica entre Espanha, México e França, trouxe à tona essa realidade que ainda aplica-se a toda América Latina. O filme mostra o esforço de um produtor e um diretor para rodar um drama histórico sobre a descoberta do novo mundo por Cristóvão Colombo enquanto o governo da Bolívia tenta privatizar o fornecimento de água.
Não há dúvida que este feito histórico deixou um legado muito importante na Bolívia e no mundo acerca da importância de recuperar a água do domínio das grandes corporações, mas também de recuperar o poder de decisão da gente sobre seu próprio futuro. Corporações transnacionais, gigantescos conglomerados de capital cuja única justificativa de existência é o lucro, movem montanhas para garantir que ninguém altere o status quo que as mantêm no poder há centenas de anos.
Se uma nação puder se erguer e se tornar realmente independente, o exemplo se espalha como um vírus e toma conta de outras. É por esses e outros motivos que os EUA, Alemanha, Inglaterra, Espanha, França, a galerinha do Oriente Médio (Emirados Árabes Unidos, Arábia Saudita, Catar, Bahrain, Israel, etc.), barbarizam líderes que ousem pensar fora da caixinha.
Ainda há muitas pessoas perguntando o que aconteceu depois da Guerra de Água em Cochabamba? Qual é a política da água hoje em dia? Esta pergunta que os principais protagonistas tem tentado responder há 17 anos. Com base no questionamento do diretor de Conflito das Águas, vivido pelo espanhol Luis Tosar, quando este questiona ao manifestante nativo Daniel: O que fará agora? O ator boliviano responde de forma enfática: “Fazer o que sempre fizemos: lutar e sobreviver!”.