Maracanã 70 anos: O Templo Sagrado da Cultura Popular Brasileira

Minha esposa nunca tinha ido ao Maracanã. Em 2013, aproveitei a reabertura do estádio, que havia passado por reformas para a Copa do Mundo, a fim proporcionar a ela essa experiência que é quase um rito de passagem no Rio de Janeiro. Mal pude me conter quando vi o velho Maraca transformado em uma arena genérica com preços proibitivos para as classes populares e com a capacidade de público reduzida de forma humilhante. Infelizmente, o estádio que minha esposa desejava conhecer aparentemente não existia mais. Em seu lugar, erguia-se uma espécie de “Arena Leblon”.

Até que seja recuperado das mãos de nossos inimigos, nos cabe transmitir às novas gerações a verdade sobre aquele espaço que hoje completa 70 anos de idade: o Velho Maraca é um templo da nossa cultura popular, consagrado não pelo Brasil oficial – como Ariano Suassuna chamava as instituições com as quais a elite gostava de enganar a si mesma, deixando o povo do lado de fora dos círculos de representação e exercício do poder –, mas da nação real, aquele que existe no imaginário e na sociabilidade do povo.

Impedidos de participar decisivamente de um país dominado por uma ditadura de elites que gostariam de fazer parte do Ocidente, os brasileiros encontraram na religião, nas artes e nas festas os âmbitos de expressão de nossas identidades, quase que em desafio àqueles que negavam sua existência e relevância, resistindo até que se dobrassem e se convencessem da inevitabilidade de nossa emergência no cenário da História.

O futebol brasileiro, do qual o Maracanã é o principal símbolo espacial, foi terreno quase arquetípico em que o espírito da brasilidade se manifestou. Os sul-americanos reinventaram um jogo cujas regras explícitas e implícitas foram estabelecidas por anglo-saxões. Enquanto os ingleses jogavam a pelota para o alto e se aglomeravam em paredes humanas que a disputavam com trombadas e cabeceios, nossos irmãos do Prata a colocaram no chão, usando como estratégia o domínio de bola, troca de passes e ultrapassagem de jogadores. Os europeus ficaram na roda, e se renderam à superioridade da Celeste Olímpica uruguaia e da Albiceleste portenha.

Recebemos essa tradição de nossos irmãos mais velhos e a levamos a uma perfeição nunca vista. Não somente a habilidade da troca constante de passes rumo ao gol, mas também o malabarismo e improviso, cuja certidão de nascimento internacional foi o gol de bicicleta de Leônidas da Silva, o Diamante Negro, sobre a Polônia durante a Copa do Mundo de 1938.

Nada expressou de modo mais autêntico essa nova forma de arte quanto o drible. No Maracanã, um campo conhecido por ter os limites máximos permitidos até então – a redução das dimensões do gramado é outro atentado à nossa história e uma tentativa tosca e abobalhada de nos submeter à lógica da atual tática estrangeira –, os grandes dribles eram tão lembrados quanto o êxtase do gol. Todos nós éramos capazes de citar algum drible histórico que presenciamos no estádio.

Já definiram o drible como “a arte de ludibriar o adversário”. Mas não num sentido de “mentir”, e sim no de “iludir”. É uma forma de magia. O marcador simplesmente não entende o que o driblador está fazendo com a bola, qual o “truque”, a “operação” usada para fugir da marcação. Os uruguaios e argentinos usavam o toque e a ultrapassagem, numa imensa poesia em movimento. Os brasileiros iam além e “garrinchavam” o terreno.

A magia do drible metia medo. Um jornalista que testemunhou a imortal peleja entre Brasil e França, na Copa de 1958, declarou em entrevista que nunca viu um jogador tão impressionante quanto Garrincha, o deus da ponta direita – o ponta, essa instituição do Brasil real. Ele contava a cena do lateral francês andando pra trás diante do avanço de Mané, até sair de campo, caindo com a bunda no chão. Era o medo do mago.

Mas o futebol brasileiro que se incorporava no Maracanã também transcendia esse aspecto. Times que ficavam só tocando a redondinha de lá para cá, e de cá pra lá, como o América dos anos 1970 – e para os mais maliciosos, a Espanha campeã do mundo em 2010 –, eram zombados e apelidados de “tico-tico no fubá”. Muito fru-fru pra nada.

Porque o futebol que o povo prezava tinha também de ser letal. Era necessário vencer, conquistar. Se fizéssemos um gol, deveríamos procurar o próximo. Vencer por três ou quatro de diferença era sempre melhor do que por um a zero chorado. Era fazer três a zero no primeiro tempo, “fora o baile”. O primeiro grande time da Era Maracanã, o Flamengo de Dida, Evaristo e Joel, foi chamado de “Rolo Compressor”. Se o mago era Garrincha, o Rei foi Pelé, inventor do “gol de placa”, imortalizado contra o Fluminense no Estádio Mário Filho, e de um mítico milésimo gol, marcado de pênalti contra o Vasco.

O templo sagrado do futebol não se resumia a palco da seleção brasileira ou dos clubes do Rio de Janeiro. Ele recebia os principais escretes do país, que sempre se sentiram bem recebidos nele, mesmo quando enfrentavam os times da cidade. O Santos de Pelé transferia jogos decisivos da Libertadores para o Maracanã, por exemplo, que consideravam como casa sua. A torcida do Corinthians o invadiu em momentos decisivos do Campeonato Brasileiro de 1976.

O Maraca não é espaço sagrado do povo apenas por causa do que acontecia dentro das quatro linhas, mas pelo que os torcedores faziam com ele. Os domingos no Rio de Janeiro eram caracterizados pela sombra do estádio. Os homens acordavam, jogavam “peladas” de manhã, e bebiam escutando o rádio até próximo do horário do jogo, quando então parte considerável deles peregrinava. As torcidas chegavam juntas, festejando da estação de trem e se aglomerando em procissão pelas rampas que levavam até as arquibancadas.

Old Football Pictures - Page 106 - Kerrydale Street

Aquele monumento de concreto era, como diz Luiz Simas, “terreirizado”, transformado pelas formas de festa, de transe, de expressão do povo que o frequentava. Existia uma forma própria de torcer, toda nossa, e que agora está sendo castrada pelas transformações estabelecidas no estádio, que induzem que encaremos a partida como se fosse uma peça de teatro. Existe uma guerra oculta por trás da imitação de táticas de jogo estrangeiras, de reformulação dos nossos espaços de convivência, e também no projeto de invisibilidade e expulsão das classes populares – que, notemos, não estiveram presentes nos jogos da Copa do Mundo de 2014.

Ora, o Maraca não pertencia à classe média. Os ingressos eram acessíveis. Embora existissem espaços delimitados principalmente para algumas classes sociais – a Ralé ia para a Geral, a alta classe média para os camarotes e cadeiras azuis –, o estádio era construído para todos, e, em sua maior parte, era uma grande praia, em que todos estavam juntos e misturados nas arquibancadas e cadeiras numeradas.

Construído às pressas para a Copa do Mundo de 1950 e inaugurado há 70 anos, o Estádio Mário Filho experimentou uma tragédia esportiva que parecia frustrar as esperanças daquele país que se acreditava grande. Mas do lamento e da dor da derrota na final para o Uruguai, o Brasil construiu um Império incontestável no seio do esporte mais disseminado no mundo. O futebol é coisa séria não apenas no Brasil, mas também entre ingleses, espanhóis, italianos, para nossos vizinhos. E, no entanto, nenhuma camisa se tornou tão lendária quanto a canarinho, assim como nenhum gramado excitava tanto as fantasias dos amantes do futebol ao redor do planeta quanto o do Velho Maraca.

O futebol foi um caminho que o Brasil real encontrou pra afirmar de uma vez só sua singularidade e poder. Porque nenhum outro país jogava daquele jeito tão nosso. Ninguém encantava, no sentido pleno do termo, e causava tanto amor e admiração. E ao mesmo tempo, nenhum outro era tão temido nesse campo de honra: “Silêncio! É o Brasil em campo!”, estampava um jornal italiano na estreia da seleção canarinho na Copa da Itália, em 1990. “O melhor parou no Sarriá!”, lamentavam os jornais espanhóis na nossa derrota na Copa de 1982.

Só precisamos explicar alguma coisa quando o Brasil perde, quando ganha não temos que explicar nada”, declarava Beckenbauer durante a Copa de 1994.

Nos anos 1990, ouvi pela primeira vez o papo de que o futebol brasileiro tinha de se convencer de que “não éramos os melhores do mundo”, e que devíamos aprender com os outros. Foi o início da derrocada, que, voltando ao início desse texto já longo, transformou aquele que era o “Maior Estádio do Mundo”, capaz de reunir públicos de 200 mil almas, em uma arena em que mal cabem 70 mil pequeno-burgueses. E que transformou uma potência futebolística admirada e temida em um escrete genérico, de estilo de jogo globalizado, e desvinculado do próprio povo.

Virou crime acreditar que precisávamos de um estádio que era o “maior do mundo”. Inventaram-se justificativas freudianas. Quando, na verdade, o que estava por trás do gigantismo e originalidade do Maracanã era a nossa convicção de que o Brasil deve ser uma potência. Essa crença foi sufocada nos últimos anos por elites apátridas, que querem nos acorrentar em uma prisão que jamais poderá conter por muito tempo nossa força e dinamismo.

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Dia virá, e já está próximo, em que o Maracanã será recuperado das mãos de nossos inimigos. E assim também o nosso futebol. Assim também o país. Vamos “terreirizar” e reconsagrar novamente nossos espaços de convivência, tornando-os mais que monumentos e casas de show, mas emblemas de nossas identidades, de nossa sede de ser, e da nossa grandiosidade. Não há Brasil que não tenha nascido para ser gigante e soberano. Esse é o Brasil verdadeiro, que só poderá ser construído a partir do coração do povo, como ensinava Mestre Suassuna.

Voltarei a ouvir, como na minha adolescência com os ouvidos pregados no rádio:

Abrem-se as cortinas no Maior do Mundo…,

e a cantar

“A Taça do Mundo é nossa/com o brasileiro, não há quem possa”.

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André Luiz dos Reis

 

 

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