Pouco após a pandemia começar a se espalhar, todos os países do mundo estavam com suas fronteiras fechadas. Mesmo o Brasil, o último a fazê-lo, cedeu à pressão da realidade (com exceção das pontes aéreas com os EUA…). Para pessoas que, até pouco tempo antes, defendiam fronteiras abertas, integração global e a transformação da humanidade em uma multidão de nômades certamente foi um choque. Ideologicamente, o mundo se tornou um pesadelo para os “no borders”.
Eu não gostaria de estar na pele de um “Sem Fronteiras” neste momento. Tudo deve feri-la, esfolá-la, irritá-la. Até a própria noção de pele, a primeira fronteira. Ademais, elas são brancas, amarelas, pretas. Ugh! Por toda parte as fronteiras estão se fechando, por toda parte as trevas. Enclausurado, o mundo se cobre de barreiras. O pesadelo do “Sem Fronteiras” está se tornando realidade! Impossível para ele abandonar seu posto sem pegar uma crise de urticária ideológica. O coronavírus é idiomaticamente soberanista, em atenção diante do oficial da alfândega que ladra ordens ameaçadoras. Ai, gestos de barreira! Distanciação social, ai! Fechamento de fronteiras, ai ai ai ai ai! Para o “Sem Fronteiras”, o mundo inteiro é um cacto, como na canção de Jacques Dutronc. Não resta alternativa a voltar para casa, mas a casa está em todo lugar, e o todo lugar não está em lugar nenhum. Nunca antes a insuficiência pulmonar de sua visão do mundo pareceu tão gritante.
Em todas as latitudes e longitudes, o horário é Covid-19, noite e dia. É a coronaviralização do mundo em um cenário de fechamentos de mão dupla e rastreamento sanitário de agentes infecciosos. Em apenas um mês, o registro semântico da “retirada para dentro de si mesmo” foi prodigiosamente enriquecido. Alocuções populistas e sintagmas profiláticos florescem a cada curva. Efetivamente, a língua, pelo menos para os delicados ouvidos antifascistas, tornou-se fascista, como proclamava o primeiro Barthes a quem nada assustava: barreira de confinamento físico, triagem nas fronteiras, contato distanciado, máscara de proteção, independência nacional, circulação controlada, quarentena, isolamento, desmundialização, etc. Apartado desse campo, a reciclagem da novilíngua “corporativa”, que permite aos mongóis teletrabalhando em seu sofá continuar a brincar de burguês: o skype-aperitivo, o aplauso às 20h.
Home, Sweet Home
Acabou o nomadismo, adeus ao acolhimento do Outro, o nomadismo já era. Todos em prisão domiciliar. O confinamento é ironicamente o retorno da santa tríade marechalista em uma variante que os historiadores não haviam previsto, o desemprego parcial obrigado: Lazer, família, pátria! Tudo que ontem era prescrito é hoje proscrito, tudo que era proscrito é prescrito. Viver juntos não é mais que um palavrão infeccioso. Abertura para o outro? Um incitação maligna à contaminação. Remigração forçada em todos os lugares: todo mundo voltando para casa, até mesmo os “anywhere”, forçados a contragosto a escorregar para a pele dos “somewhere”. Home, sweet home? As nações, que eram como o que aquele palhaço triste de Houellebecq disse certa vez da França – “um hotel, nada mais” – voltaram a ser centrais. A história tem desses retornos!
O mundo se fechou brutalmente através de um duplo movimento de confinamento, na direção do espaço doméstico e do espaço nacional: o “em casa” e o “conosco”. Por mais antiquados que sejam, estes são os dois níveis de pertinência e tomada de decisão escolhidos em quase todos os lugares. Não surpreende: é onde as solidariedades se entrelaçam que elas são mais eficazes. O lar e o país delimitam em seu nível a fronteira: o interior e o exterior, o aqui e o ali, cada um jogando à sua maneira a dialética do Mesmo e do Outro, da identidade e da alteridade (nunca um sem o outro). O espaço privado é o quadro da propriedade doméstica, o espaço público o da soberania nacional. Inclusão no interior, exclusão para o exterior. No caso da espécie pandêmica com a qual estamos lidando, a fronteira é mesmo a primeira linha de defesa imunológica. Ela funciona como uma barreira filtrante. Os países que melhor resistiram à contaminação são os que primeiro estabeleceram controles rigorosos em suas fronteiras.
Os Soluços do Pensamento Papagaio
Mais uma vez, as fronteiras resistiram ao seu apagamento programado. De todos os mitos universalistas, este havia sido o mais tenaz. A vocação da humanidade seria celebrar sua unidade perdida e apressar a vinda de uma alteridade radical. Tudo o que restava era abrir as fronteiras – ou empurrá-las ainda mais. Neste esquema, a única identidade concebível não era sequer relativa, mas negativa. Era a identidade da ausência de identidade, como um lugar vazio, esvaziado de lugar. Um deserto, em resumo. Este foi o raciocínio por trás do pensamento pronto contemporâneo, entre jornalistas, políticos, universitários. O pensamento papagaio. Escutar um era ouvir repetir o outro.
Lance em um mecanismo de busca “sem fronteiras”, você verá que todas as profissões já o experimentaram. Ginecologistas sem fronteiras, sementes sem fronteiras, engenheiros sem fronteiras, galgos sem fronteiras, radioterapeutas, oftalmologistas, advogados, etc. Centenas e centenas de ocorrências somente na França. Se tudo isso não desenha um horizonte religioso – o sem-fronteirismo, o sem-documentismo, o sem-discriminacionismo – é difícil de entender. O sem-fronteirismo concentrava as crenças das elites. É ou era o novo horizonte da humanidade: a humanidade sem horizonte. O longínquo, não o próximo, sob o olhar terno do Big Other, do Grande Outro, do Totalmente Outro.
Dificilmente questionamos esta recusa de identidade em suas conseqüências finais. Qual é o nome dessa negação? Não se esconde por trás da retórica exagerada e divertida da abertura um desejo de desaparecimento, de apagamento, de aniquilação, que emerge nas obras de Maurice Blanchot e de Michel Foucault, o mestre secreto da desconstrução e seu discípulo mais conhecido? Seria então uma recusa da condição humana, um desejo de exumanização, visível no transumanismo (recusa da fronteira entre homem e máquina), na teoria do gênero (recusa da fronteira entre homem e mulher), no antiespecismo (recusa da fronteira entre homem e animal). Esta é a questão mortífera do niilismo contemporâneo: por que há nada em vez de alguma coisa, por que esta extinção do desejo, esta renúncia de si mesmo?
Um Mundo de Migrantes e de Vagabundos
Como interpretar de outra forma, e sob que signo obscuro, esse horror de ser, esse horror do Ser, de ser para o Ser. Ninguém mais do que Michel Foucault era o seu assento, ele que queria viver em “heteropia”, segundo o neologismo que forjou, ou seja, nos “lugares outros” (Foucault falará de “espaços outros”, ainda mais difusos, ainda menos atribuíveis a uma toponímia precisa). Quais são esses lugares de heteropia? São lugares localizados no interior de uma sociedade, mas que são radicalmente exteriores, estrangeiros, hostis. Os cemitérios, os asilos, os hospícios. Por extensão, as prisões, os acampamentos, os centros de detenção. Um mundo de migrantes e de vagabundos.
Pois bem, este mundo, que aspirava substituir paredes por pontes em um simulacro de alteridade, encontrou sua parede invisível. O sistema de crenças do esquerdismo caiu sobre ele, em bloco: a realidade da fronteira – seu apocalipse viral. Argumentar-se-á que a peculiaridade deste sistema de pensamento é que há muito tempo ele desertou o real. Portanto, tenhamos certeza de que a epidemiologia não vai de forma alguma diminuir o crédito que a ideologia adquiriu aqui. Não obstante, o cidadão do mundo está hoje tão órfão quanto possível, preso em uma terra de ninguém, uma imensa zona de fronteira com as dimensões do mundo regulada pela permanente indefinição de identidades. Confusão, desordem, indeterminação, o meio termo. Uma esquizoquimera que não terá resistido à primeira pandemia com que se deparou.
Relocalizar a Produção, Deslocalizar a Humanidade
Espetáculo revigorante. A Torre de Babel desaba como um castelo de cartas, para dar lugar a uma cartografia de riscos que obedece à perenidade, não ousamos dizer à intangibilidade geopolítica, das fronteiras. Raramente, se é que alguma vez, uma consciência mundializada, por falta de ser mundial, surgiu tão rapidamente, com tamanha intensidade, mas para acabar paradoxalmente em uma crise sem precedentes da globalização. O global está agora contando com o local. É irônico ver um esquerdismo desterritorializado defender, sobre as ruínas do aterglobalismo, a causa do localismo, ele que vive na prisão mental da utopia (etimologicamente, que não está em lugar algum). O esquerdista não possui direito de crédito a fazer valer. O mundo de antes é o seu, não obstante suas negações; o próximo deve ser feito sem ele, contra ele, a despeito dele. Isso se aplica a toda a nebulosa esquerdista, que já fez saber pela boca da Attac que a esquerda deve se apropriar do tema do localismo para não conceder o monopólio à direita populista, tendo o cuidado de deixar claro que o enquadramento necessário para a circulação de capitais e bens não deve ser aplicado às pessoas. Seja qual for o assunto, sempre recaímos nas mesmas contradições culturais. Elas são intransponíveis, na ordem da quadratura do círculo. Como poderíamos escondê-las? Como defender a relocalização da produção e, ao mesmo tempo, a deslocalização das pessoas? Como regular as trocas comerciais sem controlar a circulação de pessoas, quando além do mais são elas os vetores privilegiados da contaminação? Por que santuarizar as espécies animais e negar ao homem um lar seu e entre os seus? Poderia ser ódio por si mesmo? Então nenhuma vacina será capaz de acabar com isso.
Artigos Precedentes
Biopolítica do Coronavírus (I) – A Lição de Michel Foucault
Biopolítica do Coronavírus (II) – O Paciente Zero é a Globalização
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Fonte: Éléments