Começando pela tradição oral (Dona Militana) e anônima, mãe e seiva de todos os cancioneiros e de todas as literaturas, esta lista compreende, na medida do possível, e com as idiossincrasias e lacunas típicas desse gênero textual, os Nordestes ameríndio, ibérico, africano, caiçara (Caymmi), caboclo, sertanejo, da Zona da Mata (Mestre Salustiano) etc. Excluímos “Luar do Sertão” e “Asa Branca” porque tais clássicos constituem ponto pacífico, já quase se situam no patrimônio cultural coletivo.
O cancioneiro nordestino também revela muito sobre questões como desterro, a relação homem e solo, relações de propriedade e estrutura fundiária. No extremo Sul do país, onde o clima é temperado, a pequena propriedade rural encontrou condições mais propícias para um desenvolvimento relativamente seguro, ainda que lento. Já a prosperidade da agricultura no Nordeste, cujo clima é mais pronunciadamente tropical, era relacionada ao sistema plantation, baseado no latifúndio e em alguma monocultura de exportação. Na velha região, a expansão da pequena propriedade foi resultante da mais rudimentar ocupação da terra por povoadores humildes, os posseiros, desprovidos de títulos de terras, dando origem ao minifúndio, um tipo de propriedade incapaz de prover medianamente o proprietário e sua família. Enquanto no Sul os campos nativos eram (e ainda são) formados por abundantes espécies vegetais, a grande maioria possuindo aptidão forrageira, no Nordeste a criação extensiva do gado se deu em meio a arbustos e espinhos catingueiros, dependendo exclusivamente das condições climáticas. Era preciso apartar o gado, bezerros, novilhos, machos e fêmeas, pegar boi fugido etc. Esse tipo de atividade deu origem à corrida de mourão nas fazendas e à vaquejada, demonstrações de perícia e coragem do vaqueiro, temas de aboios, toadas e forró – vide Vavá Machado e Marcolino.
Na Bahia, Elomar, que faz algo entre o violêro e o menestrel, mostrou que a influência ibérica na cultura nordestina não viera apenas do eixo PE/PB/RN (Movimento Armorial) e do Ceará.
Enfim, a lista que se segue tenta espelhar o mosaico cultural da região, tanto o aspecto popular como o erudito.
1 – Dona Militana – Romance da Nau Catarineta
Militana Salustino do Nascimento era natural de São Gonçalo do Amarante, no Rio Grande do Norte. Considerada uma das maiores romanceiras do Brasil, herdou de seu pai estórias e romances de origem ibérica medieval.
2 – Missa do Vaqueiro – Luiz Gonzaga
A Missa do Vaqueiro tem origem na morte do vaqueiro Raimundo Jacó, perfidamente tocaiado nas olvidadas caatingas. Esta celebração ocorre ao ar livre, como convém ao espírito livre do vaqueiro, num sítio em que foi erguido um altar de pedra em forma de ferradura. Esta missa é, a um só tempo, uma confraternização do catolicismo popular, símbolo da reforma agrária e da “Civilização do Couro”. Os vaqueiros cantadores fazem oferendas com peças de suas vestes de couro e arreios, improvisando aboios e toadas a partir das peças ofertadas. A primeira missa, rezada pelo padre João Câncio, foi idealizada por Luiz Gonzaga.
“Numa tarde bem tristonha
Gado mugir sem parar
Só lembrado do vaqueiro que não vem mais aboiar
Não vem mais aboiar tão dolente a cantar
Bom vaqueiro nordestino
Morrer sem deixar tostão
O seu nome é esquecido nas quebradas do sertão
Nunca mais ouvirão seu cantar meu irmão
Tengo lengo tengo…
Ê gado oh…
Sacudido numa cova
Desprezado do senhor
Só lembrado o cachorro que ainda chora a sua dor
É demais, tanta dor não tem mais seu amor
Tengo, lengo, tengo, lengo, tengo…
Ê gado ohhh”
3 – Mestre Salustiano – Toada de Cavalo Marinho
Tanto os interessados no movimento armorial quanto os fãs do manguebeat têm a obrigação de conhecer a obra e o legado de Mestre Salustiano, um dos grandes responsáveis pela preservação dos folguedos populares do folclore regional.
4 – Jackson do Pandeiro – O Canto da Ema
“Sua desenvoltura em baião, marchinhas de carnaval, samba e rojão é emblemática, e deveria encorajar tantos quantos se interessem por sincretismos e sínteses.” Leia mais em: “Sobre Parahybas, entreguismo e Jackson do Pandeiro”.
“A ema gemeu
No tronco do Juremá
Foi um sinal bem triste, morena
Fiquei a imaginar
Será que o nosso amor, morena
Que está pra se acabar
A ema gemeu…
Você bem sabe
Que a ema quando geme
Vem trazendo no seu canto
Um bocado de azar
Eu tenho medo, morena
Pois acho que é muito cedo
Muito cedo, meu benzinho
Para esse amor se acabar
Vem morena
Vem, vem, vem
Me beijar
Me beijar
Dá um beijo
Dá um beijo
Pra esse medo se acabar”
5 – Dorival Caymmi – Coqueiro de Itapoã
A Bahia de Dorival Caymmi ainda era a Bahia das romanceiras pretas da sua infância, malgrado a modernização e urbanização tardias. Um dos compositores mais versáteis desta lista, compôs sambas de rodas, sambas urbanos, tocava temas folclóricos, considerado um dos patronos da bossa nova, além de criar o gênero canções praieiras.
“Oh vento que faz cantiga nas folhas
No alto dos coqueirais
Oh vento que ondula as águas
Eu nunca tive saudade igual
Me traga boas notícias daquela terra toda manhã
E joga uma flor no colo de uma morena de Itapoã”
6 – Dominguinhos – Lamento Sertanejo
https://www.youtube.com/watch?v=eSbb0JT14gc
“Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga e do roçado
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigo
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado
[…]
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão, boiada caminhando a esmo”
7 – Luiz Gonzaga – Assum Preto
“Tudo em vorta é só beleza
Sol de Abril e a mata em frô
Mas Assum Preto, cego dos óio
Num vendo a luz, ai, canta de dor
Tarvez por ignorança
Ou mardade das pió
Furaro os óio do Assum Preto
Pra ele assim, ai, cantá mió
Assum Preto veve sorto
Mas num pode avuá
Mil vezes a sina de uma gaiola
Desde que o céu, ai, pudesse oiá
Assum Preto, o meu cantar
É tão triste como o teu
Também roubaro o meu amor
Que era a luz, ai, dos óios meus”
8 – Vavá Machado e Marcolino – Calor da Vaquejada
https://www.youtube.com/watch?v=06ey82lALUU
9 – Quinteto Armorial – Romance da Bela Infanta
No cenário musical, o principal expoente da estética Armorial, movimento articulado por Ariano Suassuna com o intento de promover expressões artísticas profundamente nacionais e nordestina, calcadas no popular e erudito.
10 – Elomar – Na Quadrada das Águas Perdidas
O Sertão Profundo de Elomar, conquanto marcadamente geográfico, é antes de tudo atemporal, situado na dobra do tempo, baseado em teorias dos mundos paralelos. O conceito dessa canção e o encante da Jurema do Nordeste setentrional talvez sejam correlatos. Os encantes são lugares paralelos ao mundo que conhecemos habitualmente, presentes em rochas, grutas, rios, árvores, matas e até nas profundezas dos solos pedregosos da região. Existe uma Geografia Sagrada na obra elomariana.