A Abordagem Duginiana à História das Civilizações

Escrito por Shahzada Rahim
O filósofo russo Aleksandr Dugin possui uma maneira particular de abordar as histórias das civilizações. Profundamente influenciado por Martin Heidegger, as investigações de Dugin sobre a essência dos povos e civilizações foram lançadas na grande obra “Noomaquia”, que trata precisamente do “Ser” dos povos. Naturalmente, o ponto de partida é a questão do povo russo, cuja civilização se encontra em uma condição descrita por ele como “arqueomoderna, conceito que expressa a contradição entre as pressões ocidentalizantes e as raízes conservadoras do povo.

Alexander Dugin é uma figura política popular e renomado filósofo da Rússia pós-soviética. Sua obra fundamental,  “A Quarta Teoria Política”, tem como ponto de partida a historiografia e história russas. Ele estudou a história imperial russa a partir do contexto do “Tempo de Dificuldades” ou “Interregno”, que se refere ao período de caos social e político na história da Rússia no século XVII. Para Dugin, o termo “Tempo de Dificuldades” não é apenas uma convulsão social e política. Ele emprega o termo no contexto da filosofia para enfatizar uma profunda crise espiritual. Todo seu trabalho é permeado pela filosofia de Martin Heidegger e o pós-modernismo, através dos quais ele deduziu um segundo “Tempo de Dificuldades” na história russa contemporânea que ocorreu como resultado da desintegração soviética.

Assim, ele desenvolveu a Quarta Teoria Política com a queda do comunismo na Rússia, que marcou uma crise ideológica significativa em todo o mundo. Para Dugin, todas as três ideologias, Liberalismo, Comunismo e Fascismo, foram produto da modernidade européia, que se encontra em severo declínio. Além disso, o que Dugin enfatiza é a crítica pós-moderna à modernidade européia degenerada que deu ao materialismo uma vantagem sobre o domínio social tradicional.

Para Dugin, a chamada civilização iluminista do Ocidente perdeu suas tradições e valores na forma por meio do hipermaterialismo e da hipermodernidade. Nesse sentido, a queda do comunismo marcou um fim significativo das chamadas ideologias modernas, produtos da Renascença europeia. Segundo Dugin, com a queda do comunismo, a Rússia ressurgiu com uma nova integridade religiosa que faz da Rússia um estado pós-moderno no continente eurático que ainda mantém os valores tradicionais. No entanto, com a queda do comunismo na década de 1990, a Rússia se inclinou para uma forma degenerada da democracia ocidental que deu origem à cultura política arqueomoderna.[1] Basicamente, Aleksander Dugin contemplou a forma russa da arqueomodernidade a partir da perspectiva da modernidade ocidental e do conservadorismo russo. Para Dugin, embora tenha tentado várias vezes se tornar moderna, no seu cerne as tradições conservadoras da Rússia eram o denominador essencial. Além disso, na opinião de Aleksandr Dugin, a Rússia do século XVIII era mais moderna que a do século XIX, que, por sua vez, era mais moderna que a do século XX. No entanto, no contexto das civilizações, os escritos de Aleksander Dugin se preocupam com a “identidade”, porque várias nações ao redor do mundo estão perplexas quanto a sua identidade nacional. [2] Tais nações buscam-na na história de nações estrangeiras sem saber nada sobre a própria etnogênese e antropologia. No caso da Rússia, para Dugin, isso envolve as comunidades multiétnicas das estepes da Eurásia e é um símbolo de identidade coletiva – o Estado identitário puro. [3]

Por outro lado, a famosa obra de Dugin “A Quarta Teoria Política” é completamente fenomenológica, influenciada pelos escritos de Martin Heidegger. Foi a hermenêutica heideggeriana e o conceito fenomenológico de “Dasein” que moldaram os fundamentos da “Quarta Posição” de Dugin.  O conceito de “Ser” está no centro da filosofia de Martin Heidegger, pois, para o mesmo, a determinação dos seres humanos como “animal rationale” levou as características genuínas do homem da pureza à impureza. Nesse sentido, as melhores características do ser humano como zoon logon echon abrigam o discurso do antigo Logos, que determina a “pureza do ser” em um sentido fenomenológico. [4]

Para Dugin, entramos na era da hiperconfusão, onde a conexão entre causa e efeito foi alterada e poluída. Como resultado, isso deu origem ao mundo do niilismo, que se remete à dessacralidade e à desontologização, que destruíram a essência de tudo e causaram um caos identitário distorcido. No contexto da “analítica existencial heideggeriana”, o conceito de”Dasein” não se refere apenas ao “ser-no-mundo”, mas também denota “ser-adiantado-em-relação-a-si-mesmo-em-um-mundo”, que Heidegger chama de “cuidado”. Em contraste, a “analítica existencial heideggeriana” é uma discussão sobre a temporalidade existencial, que denota o Ser-para-a-morte  como o destino dos seres humanos. [5]

Por outro lado, não se pode negar o fato de que a filosofia de Martin Heidegger também influenciou enormemente a criação filosófica dos pensadores franceses ao longo do século XX. [6] Além disso, os modos de ser heideggerianos, a “autenticidade” e a “inautenticidade”, continuaram sendo uma contribuição significativa a teorias políticas de esquerda, especialmente ao nacional-socialismo.[7] Enquanto isso, seu discurso ontológico do ser é muito enfatizado na prática da política reacionária, por isso que alguns intelectuais de esquerda criticaram seu modo de política.[8] Dessa maneira, a semântica heideggeriana influenciou a abordagem teórica de Aleksander Dugin em relação à Filosofia da História. Com base na filosofia de Martin Heidegger, Dugin também criticou a abordagem pós-modernista da civilização e da história. Ele até criticou alguns dos filósofos pós-modernos, como Jürgen Habermas, que declarou como um dos mais vis da pós-modernidade.

No tocante ao processo de modernização da história da Rússia, vemos que a elite estrita durante o reinado do último czar foi defensora da ocidentalização, enquanto a maioria do povo russo era contra tal processo. A esse respeito, a abordagem de Dugin da arqueomodernidade em relação à civilização russa está enraizada na história imperial, soviética e pós-soviética da Rússia. Assim, para desenvolver a abordagem pós-modernista através do cânone da tradição, Dugin usou os insights metodológicos de Heidegger para escrever seu trabalho de catorze volumes, “Noomaquia: A Guerra do Intelecto”.[10] Para ilustrar, toda a análise histórica pós-moderna de Dugin sobre civilizações é baseada na metodologia de Martin Heidegger. Com a derrota do fascismo e do comunismo e a degeneração da ideologia iluminista do liberalismo, Dugin afirmou que cada uma dessas ideologias tem um núcleo e, se esse núcleo for rejeitado, então os elementos restantes perderão sua coesão que deve ser restaurada com algo novo – o novo caminho ou com novas possibilidades.

Da mesma forma, se revisarmos a era soviética, a ideologia marxista era de origem ocidental e até a intelligentsia russa costumava procurar orientação ocidental, mas ela era posta em prática pelas elites russas em linhas conservadoras. Como resultado, a ascensão do comunismo na Rússia salvou a Rússia da epidemia da modernidade degenerada ocidental. O comunismo emergiu precisamente como uma força de resistência contra a ocidentalização na Rússia. Nesse sentido, se quisermos entender a história arqueomoderna da Rússia contemporânea, devemos situar a Rússia entre a história imperial e a soviética. Aqui, a história soviética era mais arcaica que a história imperial russa, porque as pessoas na era soviética tinham uma visão de mundo mais antiga e eram mais eslavófilas, o que mais tarde contribuiu para superar as sombras hermenêuticas do comunismo. [11]

Por outro lado, em seu famoso trabalho “Nomos da Terra”, Carl Schmitt descreve a confusão sociopolítica interna da sociedade americana, que oscila entre a presença econômica e a ausência política e entre o isolacionismo e o intervencionismo global. Foi através do conceito de Nomos que o filósofo Schmitt deu à luz o campo da “teologia política” com um conceito diverso de soberania, como o “estado de exceção” e a distinção “amigo-inimigo”. Além disso, hoje o mundo passa por uma hiper-confusão nos níveis social, político e econômico, como resultado do “neoliberalismo” liderado pelos Estados Unidos, que desafiou as tradições principais das civilizações históricas. Nesse sentido, a resistência emergiu como resultado do “Retorno do Caos” ao desafiar a desordem neoliberal e, nesse sentido, o Nomos de Schmitt refere-se ao “aparato” e a “apropriação” dos recursos materiais do mundo. Da mesma forma, o Nomos de Carl Schmitt deu origem ao conceito de “geopolítica”, enquanto o trabalho foi posteriormente expandido pelo famoso filósofo francês Gilles Deleuze, que usou os conceitos de Carl Schmitt para desenvolver sua “geofilosofia”.[12] Assim, de acordo com Dugin, as tradições principais das civilizações na Terra estão sob a séria ameaça da desordem e do caos neoliberal. O conceito de “Nova Idéia Russa” tem como objetivo reviver a civilização russa da barbárie caótica da arqueomodernidade, a confusão absoluta na sociedade russa contemporânea.

Para Dugin, a história da civilização russa é única e distinta, porque nunca fez parte da chamada história universal dos europeus. Durante o domínio imperial, especialmente após a ascensão dos Romanov, a religião foi o numerador da sociedade russa, enquanto durante o regime stalinista, a religião se tornou denominador da resistência da essência escatológica. O famoso antropólogo americano Clifford Geertz introduziu o famoso conceito de “descrição densa” usando o famoso método da semiótica e, portanto, hoje, para entender a condição cultural contemporânea da sociedade russa, somos obrigados a usar o conceito de descrição densa de Geertz. [13] Nesse sentido, surgem as perguntas: um russo étnico pode permanecer russo fora de sua história? Como um russo comum se definirá como “parte” ao desligar-se do “todo”? O apego à cultura russa é necessário para definir a “identidade única”? Essas são as questões que impelem Dugin a descrever a sociedade russa contemporânea no contexto da arqueomodernidade, metade conservadora e metade ocidental.

Por outro lado, “A Interpretação de Culturas” de Clifford Geertz fornece um esboço básico para estudar a condição das culturas e civilizações contemporâneas. Além disso, o discurso da análise de diferentes culturas através do conceito de “descrição densa” fornece a compreensão contextual da complexidade dentro das culturas.

Notas

[1] Para Dugin, a Rússia contemporânea é um estado arqueo-moderno, culturalmente meio moderno e meio russo. Basicamente, Aleksandr Dugin usou a hermenêutica heideggeriana para traçar a essência da arqueo-modernidade como “eclipse hermenêutico”, cujos dois focos são o ocidental e o russo. Além disso, através de sua abordagem arqueo-moderna, Dugin traça os programas de modernização durante a Rússia imperial e soviética, que foram de fato parciais. Por exemplo, o programa de ocidentalização de Pedro, o Grande, no século XVIII, e a tentativa de “comunismo” sob forma do Bolchevismo têm sua própria semântica. Da mesma maneira, para Dugin, ao se revisar a história da sociedade soviética, fica claro que a era soviética era mais arcaica que a imperial.

O que Dugin diz; “Na minha opinião, pode-se imaginar o arqueomoderno como um sistema de frações: o numerador é o moderno e o denominador é o arcaico”.

[2] Basicamente, o “identitarismo” de Dugin é influenciado pelos escritos de Friedrich Nietzsche – sua famosa proclamação “Deus está morto e nós o matamos” denota que o ser humano deve superar Deus e o nada para recuperar sua identidade. Seu conceito de “Übermensch” foi usado pelo regime nazista na Alemanha para proclamar e transversalizar seu voto em prol da “Raça Ariana”. Basicamente, esta proclamação tem como fundamento o conceito de “ser” como o centro de tudo.

[3] Para Dugin, o “Übermensch” dá dois passos para superar os fenômenos: superar a Deus (que é o absoluto externo) e superar o nada. A este respeito, Dugin sugere a interiorização do Absoluto para descobrir a sacralidade do “Ser”. Ademais, isso só pode acontecer através da experiência do nada e do vazio. A maior parte da obra de Dugin é contra a modernidade em defesa de tradições e valores. Para Dugin, “O fim da era de Deus é uma transição da pré-modernidade para a modernidade”. Assim, a ascensão da modernidade sobre as tradições expôs o mundo do nada e esse nada é a própria modernidade. Neste sentido, é a superação do nada, o segundo passo, que dá origem ao “Übermensch”. Assim, o super-homem é a personagem lendária da pós-modernidade e, se olharmos para a pós-modernidade através das lentes das tradições, ela contempla os ciclos históricos no domínio das civilizações que evoluíram através dos ciclos: pré-modernidade-modernidade-pós-modernidade.

[4] A expressão aristotélica “Zoon Logon Echon” é usada para se referir ao homem como “animal racional” – a pureza do ser humano com características puras. A expressão “Zoon Logon Echon” também foi usada por Martin Heidegger em sua fenomenologia para descrever o “Dasein” que se refere ao “Ser-no-mundo”.

[5] Para Dugin, os heróis estão mortos e o mundo se transformou em um apocalipse trágico, pois a verdadeira realidade desapareceu e apenas as tragédias são o fato da vida. Assim, as horrendas tragédias são o resultado da confusão, perversão e degeneração, o que mostra o início das tragédias a partir do nada. Nesse sentido, Nietzsche quer duas coisas de nós: primeiro,  conquistar nossas necessidades metafísicas e, segundo, as certezas animais de nossa existência. Todavia, Nietzsche não falou sobre a conversão de pessoas para este tipo, porque “não admitimos facilmente que alguém tenha direito a isso”.

[6] A obra “Ser e Tempo” de Heidegger influenciou a filosofia existencialista de Jean Paul Sartre, que admirava o trabalho fenomenológico de Martin Heidegger em larga escala. Em particular, os conceitos de “Dasein” e “Temporalidade existencial” se tornaram a pedra angular do existencialismo de Sartre. Para vários filósofos contemporâneos, a filosofia de Martin Heidegger é a essência do debate crítico moderno e contribuiu em larga escala para o pensamento político de vários teóricos como Hannah Arendt, Levi-Strauss, Jacques Derrida e Jurgen Habermas.

[7] Os positivistas lógicos criticaram os escritos de Martin Heidegger, declarando-os como textos totalitários. Karl Popper, em seu famoso livro “Sociedade Aberta”, declara o pensamento político de Platão, Hegel e Marx como totalitário por causa de seu estilo de pregação ideológica. No caso de Martin Heidegger, foi sua associação com o Partido Nacional Socialista que atraiu muitas críticas a seus escritos. Pelo contrário, na minha opinião, as críticas de Karl Popper a Marx, Platão, Hegel e Heidegger são infundadas, porque seus escritos nunca foram contrários ao conhecimento científico, mas o que eles enfatizaram foi a essência lógica da ciência.

[8] Basicamente, Heidegger criticou a distinção sujeito-objeto e baseou sua ontologia na estrutura unificada do “Dasein”. Isto foi baseado em hermenêutica pura, que foi pioneira em um tipo diferente de política estética.

[10] Noomaquia é uma obra fundamental do professor Dugin que enfatiza o retorno do antigo Logos para lidar com a epidemia de confusão e guerras mentais. A esse respeito, pode-se dizer que o professor Dugin é um sério pensador filosófico e político de nossa época, que tentou reposicionar o pós-modernismo para a crítica da modernidade ocidental.

[11] Segundo Nietzsche, ao longo da história da humanidade, o intelecto produziu nada além de erros, embora alguns deles tenham se mostrado úteis e preservadores da espécis; aqueles que os herdaram travaram sua luta por si mesmos e sua descendência com mais sorte. Assim, no caso da Rússia, o conservadorismo permaneceu sua herança antiga e símbolo cultural que resistia a todos os atos de ocidentalização até hoje. No contexto nietzschiano, a vontade humana deve ser livre, porque ela é a verdade que muito recentemente emerge como a forma mais fraca de conhecimento.

Para Nietzsche, existem alguns errôneos artigos de fé que sobrevivem como herança e, assim, tornam-se parte do organismo humano como verdade… Foi muito recentemente que surgiram os negadores e céticos, que questionaram cada fragmento da fé e da verdade e, dessa maneira, o organismo foi engrenado com opostos, tendo todas as funções superiores e a percepção do sentido. Hoje, a cultura arqueomoderna do povo russo é bastante singular porque a sociedade russa está infestada por céticos e crentes firmes. Os céticos abraçam a modernidade, negando o conservadorismo antigo – ultimamente a verdade – enquanto os crentes firmes percebem a modernidade como um mau símbolo e uma tradição pecaminosa dos hereges europeus – a verdade religiosa escatológica.

Em seu famoso trabalho “o estadista”, Carl Schmitt escreve; “A lei nunca pode emitir uma injunção vinculativa a todos que realmente incorpore o que é melhor para cada um. A lei não pode prescrever com perfeita precisão o que é bom e perfeito para cada membro da comunidade num dado momento”. Se traçarmos as tradições de jurisprudência da lei russa “Russkaya Pravda”, que é freqüentemente conhecida como a verdade russa ou justiça russa, a própria história do conservadorismo russo é incorporada neste texto antigo – portanto, a jurisdição dessa lei é vinculativa para todos os cidadãos russos.

[12] Basicamente, para desenvolver sua ‘geo-filosofia’, Gilles Deleuze usou conceitos metafísicos, como as idéias de Platão, as faculdades de Kant e o uso do cogito por Descartes.

[13] A famosa obra  antropólogo Clifford Geertz, “A Interpretação das Culturas” é um trabalho de semiótica que revisa a essência dos diferentes padrões culturais existentes. Nesta famosa obra, ele desenvolve conceito de “descrição densa” que se refere ao processo de dar o contexto cultural e o significado a diferentes símbolos, palavras e ações. Assim, pela perspectiva da “descrição densa” de Geertz, uma pessoa pode criar um significado ou comportamento permanecendo fora da cultura existente.

Fonte: Geopolitica.ru

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