O POÇO (2020) – A miséria, a classe média e os abastados

Filme recorre aos absurdos visuais para retratar miséria e fome em um contexto brutal e animalesco.

Contém possíveis spoilers

O Poço (2020) é um filme claro e sem muitas delongas, apesar de nem de longe ser simplório e irrelevante – tanto quanto obra de arte como quanto matéria-prima para que possamos refletir sobre certos elementos da nossa própria sociedade. Um filme óbvio, por assim dizer.

Uma mega-prisão construída sob a forma de um gigantesco prédio vertical dividido em níveis é o pano de fundo da trama. Cada nível possui uma cela retangular, com elementos retangulares (espelho, pia, lâmpadas), e um buraco igualmente retangular em seu centro: diariamente, uma mesa (retangular) desce por ali trazendo comida; mas não qualquer comida: a comida que sobra dos níveis situados mais acima — aquilo que não foi possível comer. E os retângulos? Bem, estão ali para simbolizar que o Poder é imanente naquela forma absurda de organização (anti)social.

Trimagasi, o sarcástico e sagaz senhor companheiro de cela do protagonista Goreng, nos informa que O Poço conta com três categorias de níveis: os níveis “de cima”, onde a brincadeira começa (e onde, logicamente, a comida chega em maior volume); o intermediário (onde a comida já chega mexida e bagunçada, mas ainda chega) e o nível baixo (onde… bem, você já deve ter entendido). Essa divisão tripartite se repete em diferentes momentos do longa: em sua frase inicial (“Existem três tipos de pessoas: as que de cima, as debaixo e as que caem”); no número de colegas de cela de Goreng ao longo das passagens de nível; e no número do nível mais baixo possível d’O Poço (333). 

Claramente, o filme está nos informando com isso (ou nos fazendo lembrar) que, na hierarquia social, há os super-ricos, a classe média e os miseráveis: uma óbvia reminiscência da distribuição de recursos vertical que permeia nosso cotidiano.

Eis uma analogia prática: pensem num condomínio de classe média brasileira. Ali há os moradores (geralmente pequenos e médios empreendedores ou servidores públicos) e, abaixo deles, os funcionários que os servem dia e noite (porteiros, Auxiliar de Serviços Gerais, etc.). Acima dos moradores, para os que moram de aluguel, os proprietários dos apartamentos — e para os que não moram de aluguel, os donos do empreendimento. E fora do condomínio, nas calçadas e arredores, os moradores de rua, acometidos de todos os males psíquicos e físicos da miséria. 333. Cima, baixo e queda. Fartura, migalha e fundo do poço.

Cinematograficamente, a estrutura estético-narrativa de O Poço reverbera levemente o volume primeiro da franquia “Jogos Mortais”: um cárcere enigmático onde dois homens, do seio do confinamento (retratado em múltiplos planos fechados), compartilham histórias e medos e, aos poucos, ao serem expostos a situações cada vez mais drásticas, vão vendo suas humanidades serem dilapidadas na mesma medida em que vão mergulhando cada vez mais fundo nos aspectos mais animalescos desta mesma humanidade. E as comparações podiam parar por aí, se não fosse mais um detalhe: a sanguinolência. Como na saga de Jigsaw, O Poço também é um filme brutal, violento, cheio de situações limite: o que não poderia ser diferente em um enredo que lida, essencialmente, com a questão da fome.

A fome que não dorme e não deixa dormir — a luz vermelha hiper-saturada que entra em cena sempre que os presos se deitam para dormir aponta isso: o vermelho do alerta, ou seja, quem teme pelo básico necessário, não é livre nem mesmo para repousar.

Outras metáforas mais periféricas na trama também merecem destaque (obviamente, sem esgotar outras possíveis interpretações): o protagonista é um viciado em cigarro que, para a surpresa de todos, decide levar um livro para o confinamento (aparentemente, buscando desintoxicação do corpo e da alma); seus colegas de cela são, respectivamente, um assassino imerso em um tipo de “niilismo de consumo”; uma burocrata com consciência social (mas cujos métodos não possuem qualquer efetividade) e um negro tentando ascender na escala de níveis com as próprias mãos (e sendo repetidamente impedido pelos de cima).

Enquanto isso, n’O Poço, as coisas só parecem ver uma leve mudança de fluxo quando alguns prisioneiros decidem usar a força bruta para forçar mudanças concretas naquela topografia social insana — onde uns comem (e esbanjam devassidão) e outros não. Pode parecer simplório e clichê, mas está longe disso: a questão política de primeira ordem é e sempre será essa, a capacidade de maximizar o acesso das massas aos frutos da terra. E só depois de (pela força) resolvida essa questão — como bem sabiam todos os grandes nacionalistas do passado — é que o acesso as maiores riquezas culturais e espirituais será humanamente possível. 

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