O Cão fila

Por Hugo Maas

Somos os antropófagos de O. De Andrade. Mestiçamos! Somos como Midas: tudo que tocamos tornamos mais valioso. É este o nosso Ser. É esta nossa Tradição. E este será nosso legado para o Mundo. É assim que somos Ocidente, é assim que seremos Humanidade.

Não inventamos o futebol: mas o transformamos em arte. Não criamos os cães, mas geramos o Fila.

De origem indeterminada, teria como ascendentes os mastins ibéricos, originados dos molossos, dos alanos, da antiga Roma imperial. Entretanto, a teoria mais elaborado indica sua origem nos cães-de-guerra, trazidos para o Nordeste, pelos holandeses : o Engelsen Doggen. Copiando uma velha tática de combate romana, empregada com sucesso pelos espanhóis na América, eram usados nos combates contra os contingentes indígenas de Felipe Camarão na “guerra cabocla” que este travava. Com a expulsão dos neerlandeses estes cães permaneceram aqui. E foram se miscigenando, se adaptando aos trópicos, à nova alimentação, sobrevivendo às doenças, aos diferentes trabalhos e funções, adquirindo características próprias e dando início à formação de uma nova raça.

O “onceiro”, o “cabeçudo”, o “boca-negra”, foi se revelando um cão versátil e resistente. Empregado como cão de guarda, pastor boiadeiro, caçador de onças e na perseguição e captura de escravos fugidos, adquiriu suas características de companheiro leal, obediente, corajoso e determinado. Animal de rara resistência orgânica e física desenvolveu qualidades únicas e próprias.

A compleição robusta e sólida, ossatura pesada e uma musculatura poderosa o habilitaram a enfrentar os predadores na proteção dos rebanhos e à caça grossa. Aliado à robustez o instinto de matilha permitiam o trabalho em equipe para encarar animais maiores, bovinos selvagens e os grandes felinos.

A biomecânica do “passo de camelo” e as patas largas, características da raça, lhe deram a resistência para marchar durante longas jornadas acompanhando as comitivas de Bandeirantes, de tropeiros a cavalo e seus muares, por terrenos difíceis e inóspitos. O tamanho físico equilibrado, desenvolvido apenas o suficiente, deu-lhe a rusticidade de sobreviver se alimentando de rações pobres e limitadas. Foi o inestimável e anônimo companheiro do desbravamento e conquista do espaço nacional.

Mas a evolução não cessou. Com a descoberta do ouro seguiu as caravanas que subiam o Velho Chico e fez das alterosas de Minas seu novo habitat. Surgia o “boiadeiro das Minas Gerais”, alimentado com o angu com leite tão abundante naquelas paragens. Imperturbável, de comportamento sereno, palmilhou as montanhas e matas do Caminho do Ouro.

Empregado na perseguição de escravos fugidos aguçou o faro – é uma das poucas raças de farejadores capaz de “cheirar o ar”; suas orelhas, quando baixa a cabeça rastreando o solo, funcionam com coletores de odores. Impetuoso e determinado foi adestrado a não ferir o escravo perseguido, assim desenvolveu um ladrar com uivos para mostrar sua posição e também o instinto de procurar encurralar a presa, evitando o ataque.

Pela imposição de cruzar os cursos d’água das serras tornou-se um exímio nadador. As patas largas e a cauda com uma base grossa, onde acumula gordura corporal, se fizeram valiosas ferramentas como remos e leme. Ainda usado como guardião dos rebanhos, das tropas e acampamentos, lutou contra onças e suçuaranas, contra bandidos e saqueadores. Ali a conhecida pele solta da raça se revelou como importante defesa. O adversário não conseguia atingir facilmente suas carnes; quando agarrado, presas e garras somente atingiam a pele.

O cão-de-fila seguiu por três séculos submetido a uma seleção empírica de cruzamentos descontrolados. O único padrão solicitado era a pura eficiência, não encontrou atitude indulgente. Viveu escondido no passado histórico do país, nas condições sociais e econômicas de sua existência.
A partir do fim da II GG alguns criadores abnegados começaram um projeto de regulamentação da raça. Em 1954, o Dr Paulo Santos Cruz, dedicado e entusiasta patriota, considerado o “pai da raça”, estabeleceu seu primeiro padrão oficial.

A descrição do padrão revela toda a grandeza acumulada nos séculos de vivência no Brasil. O instinto possessivo e territorialista, a forte aversão aos estranhos – a ojeriza (o padrão internacional da raça, que é obrigatoriamente escrito em inglês, conserva a palavra em português) junto a uma docilidade e tolerância extrema com os “de casa” são as heranças do guardião, protetor feroz e confiável. O temperamento forte, a bravura quase cega, a obstinação, a atividade diuturna, a resistência rústica notável, a compleição física poderosa, mas ágil, a inteligência, são os resultados de suas lides como cão-de-guerra, caçador e rastreador, companheiro de longas e difíceis empreitadas e aventuras.

Quem conviveu com um jamais esquecerá!

É uma obra de arte viva criada inconscientemente por nossa gente – fruto verdadeiro de nossa Tradição. E a arte é a forma que o Homem encontrou de ir além da Necessidade. De se fazer maior que o animal e a máquina. De expressar um Ser-aí. Assim, se a primeira grande característica de uma autonomia é sua natureza ôntica, preservar este patrimônio nacional é defender nosso Ser.

O Fila é a metáfora da Nação em forma canina. Materializa todas as características de nossa gente: a rusticidade, a versatilidade, a obstinação e a capacidade de se reinventar e continuar existindo. Forjado em séculos, como nosso povo: os mortos marcham em espírito em nossas fileiras.

Para os que enxergam, a Pátria está ali: em resumo, bem simples; em quatro patas e latindo; servindo lealmente, forte e seguro de si, pronto para o sacrifício, sem duvidar. Amor incondicional aos seus e ojeriza aos que os ameaçam, aos que almejam estrangular a vitalidade brasileira.

Há um antigo ditado mineiro que diz: Fiel como um Fila.

É um convite para trilhar uma senda bem estreita.

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Nova Resistência
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