A relação fraternal entre os povos de pele negra, promovida e sustentada por diversos setores do movimento negro, em vários países, é apresentada como que se tratando de algo advindo de tempos imemoráveis: o que gera uma preconcepção, já há muito propagada em tais meios militantes, de que os nativos africanos conviviam de forma harmoniosa e pacifica antes do aparecimento do imperialismo colonial europeu.
Mas a história não foi bem assim, uma vez que o mencionado fenômeno da irmandade negra é ocidental e iluminista, não podendo ser considerado fruto de sociedades feudais extremamente religiosas, rígidas e hierarquizadas − já que muitas delas aplicavam politicas expansionistas e, em alguns casos, possuíam até mesmo economias escravagistas.
A ideia de que “nenhum povo é santo” é um fato neste sentido. Os diversos povos africanos como, por exemplo, os Tikar, Mali, Zulu, Xhosa, Daomé, Oyo, além de etnicamente, culturalmente e espiritualmente diversificados em vários aspectos, possuíram seus próprios respectivos governantes e sua próprias respectivas hierarquias sociais, além de como também seus próprios conflitos internos e externos. Assim como entre qualquer povo em eras passadas, eram povos que guerreavam constantemente, por diversos motivos, como comercio, recursos, territórios, dentre outros. É alienígena, portanto, afirmar que havia ali uma fraternidade continental entre esses povos, uma igualdade entre os negros na Idade Medieval africana, não apenas por conta da questão tecnológica (que impossibilitava o contato com povos distantes), mas também pelas gritantes diferenças nas identidades desses povos, bem como dos interesses dos governantes da época.
Nem mesmo militantes do movimento negro − principalmente da ala liberal-reformista − perceberam, mas afirmar que havia uma fraternidade, um império racial negro em pleno medievo africano, é concordar, mesmo que indiretamente e não intencionalmente, com o discurso homogeneizador que considero uma das piores formas de manifestação do racismo contra o africano, uma vez que, ao desconhecermos a riqueza de povos. que existiram e que existem até hoje, estaremos esvaziando o ethos de cada um deles: de cada tribo, reino e império que existiu ou existe na África − um esvaziamento político, cultural e espiritual, nivelando todos de forma padronizada e igualitária (no sentido negativo). E neste sentido, pouco importa se essa visão padronizada representa todos os africanos como canibais selvagens (como a mídia burguesa euro-americana vende), ou como iluministas-universalistas-pacifistas (como o movimento negro propaga): ambas são cosmovisões racistas, que devem ser criticadas e combatidas.
Alegar que houve, sim, impérios africanos escravagistas (por exemplo, Daomé e Oyo), ou que houve e ainda há disputas étnicas (como em Xhosa e Zulu), não é, de forma algum, contestar e desprezar a inteligência e a perspicácia desses povos, muito menos tirar das costas do imperialismo colonial europeu (lê-se: os interesses imperialistas dos líderes e das elites europeias, nada haver com o camponês e/ou pequeno comerciante europeu que, aliás, também sofreu efeitos dessas politicas: vide a Primeira Guerra Mundial) a culpa pela destruição de várias etnias e pela demarcação de fronteiras artificiais e instáveis para atender aos seus próprios interesses, em detrimento dos nativos, gerando danos catastróficos que arrasaram dezenas de centenas de povos africanos − sem contar que, mesmo após as diversas lutas anticoloniais que explodiram entre os anos 60 e 70, muitos dos grandes líderes e representantes do trabalhador africano emergentes, como Sankara (Burkina Faso) e Lumunba (Congo), entre outros, foram derrubados e mortos por agentes estrangeiros, sendo substituídos por lacaios corruptos que, ao invés de resolverem os graves problemas humanitários da região, oprimem o próprio povo para anteder exigências alógenas ao seu próprio país.
Concluo dizendo que o ideal de uma fraternidade negra mundial é um fenômeno legítimo e de grande valor, que foi essencial para a luta contra a escravidão e o colonialismo, e que o continua sendo, uma vez que, mesmo não sendo mais escravo, o negro ainda sofre em uma estrutura sistematicamente racista em muitos aspectos: daí a necessidade de beber e se inspirar em grandes lideranças históricas, como DuBois e Marcus Garvey, que foram os percussores do pan-africanismo. No entanto, devemos nos ater que respectivo fenômeno não ocorria (e nem poderia ocorrer) em tempos que antecederam o imperialismo europeu, uma vez que a realidade desses povos era extremamente distinta do que é atualmente. E mesmo havendo esse internacionalismo racial entre os negros atualmente, não devemos de forma alguma desprezar o ethos de cada povo africano, adotando uma cosmovisão padronizada aculturada.
Brilhante e irretocável. Demonstra conhecimento histórico e argumentação astuta, deixa transparecer que tem muito mais carga para um debate assim que os incautos começarem a atacar. Parabéns pelo concreto da super estrutura.
Gostaria de saber a opinião da Nova Resistência sobre as religiões brasileiras de matrizez africanas e como elas entrariam dentro da Quarta Teoria Política. Ainda n encontrei nada a respeito, será de grande valia. Obrigado.
As religiões de matriz afro-brasileiras são manifestações legítimas da organicidade dos povos brasileiros. A Quarta Teoria Política abrange toda e qualquer identidade étnico-orgânica. Em nossa Plataforma de 12 Pontos, fazemos menção às tradições africanas.