Grande parte da História do Ocidente, desde meados do século XIX, foi a história de dois sistemas econômicos adversários. O Manifesto do Partido Comunista, de 1848, apregoava que “um espectro paira sobre a Europa” – e não só sobre a Europa, mas, na verdade, sobre todo o mundo. No entanto, não se tratava apenas do espectro do comunismo, mas de sistemas econômicos e sociais rivais que, por vezes, convulsionaram a humanidade.
Para muitos, essa rivalidade chegou ao fim: o comunismo e o socialismo foram derrotados e, assim, resta ao capitalismo reinar triunfantemente sobre o mundo. Porém, não é este o caso.
Numa passagem negligenciada da encíclica Centesimus Annus, João Paulo II destaca que as escolhas da humanidade não estão limitadas ao capitalismo e ao comunismo: “[…] é inaceitável a afirmação de que a derrocada do denominado «socialismo real» deixe o capitalismo como único modelo de organização económica” (no. 35). Sendo assim, é obrigação dos católicos olhar para o Distributismo, um sistema econômico defendido por algumas das melhores mentes da Igreja na primeira parte do século XX – homens como G. K. Chesterton, Hilaire Belloc, Fr. Vincent McNabb, e muitos outros. Vejamos em que consiste o distributismo e porque ele é considerado por muitos católicos como um modelo mais alinhado ao pensamento católico do que o capitalismo.
Em primeiro lugar, devemos fazer algumas definições acerca dos principais termos que iremos utilizar, especialmente no que tange ao capitalismo. Muito frequentemente, esta palavra não é definida, e cada um lhe dá um significado, bom ou mau, conforme suas próprias crenças, nunca traçando uma definição clara. Então, o que é o capitalismo?
O capitalismo não é a posse privada da propriedade, mesmo que estejamos falando da propriedade produtiva, pois tal tipo de propriedade existe, na maior parte do mundo, desde tempos muito remotos, enquanto que o aparecimento do capitalismo é geralmente situado na Europa do final da Idade Média. Talvez a melhor maneira de proceder seja escolher a definição de uma autoridade, e depois analisaremos como a mesma se enquadra com os fatos históricos. Voltemos a nossa atenção para a encíclica Quadragesimo Anno (1931), do Papa Pio XI, em que o capitalismo é definido, ou caracterizado, como “o sistema econômico em que o trabalho e o capital necessários para a produção são fornecidos por pessoas diferentes” (no. 100). Em outras palavras, no sistema capitalista, normalmente trabalha-se para outra pessoa: alguém (o capitalista) paga a outros (os trabalhadores) para que trabalhem para si, e recebe os lucros do seu empreendimento, isto é, o que sobra depois de pagar o trabalho, as matérias-primas, amortizações, débitos, etc.
Há algo de errado com o capitalismo nos termos da separação da posse e do trabalho? Não há nada de errado em possuir uma fábrica ou uma loja e pagar a outros para trabalharem nelas, desde que lhes seja pago um salário justo. No entanto, o sistema capitalista é perigoso e insensato: os seus frutos foram nocivos para a humanidade, e o sumo pontífice tem apelado à mudanças que eliminariam, ou pelo menos diminuiriam, o âmbito e o poder do capitalismo.
Deixem-me explicar as afirmações que acabei de fazer. E para o fazer, tenho de fazer primeiro um breve desvio para discutir o propósito da atividade econômica. Por que que Deus deu ao homem a necessidade e a possibilidade de criar e utilizar bens econômicos? A resposta é óbvia: necessitamos desses bens e serviços para levarmos uma vida humana.
A atividade econômica produz bens e serviços para servir a toda a humanidade, e qualquer ordenamento econômico deve ser avaliado pela capacidade de preencher este objetivo.
Quando a posse e o trabalho estão separados, tem necessariamente de existir uma classe de homens, os capitalistas, que estão afastados do processo de produção. Os acionistas, por exemplo, ignoram o que é que a empresa (da qual eles são formalmente os donos) faz ou produz. Só lhes interessa saber se as ações sobem ou quais os dividendos que será possível extrair delas. De fato, na Bolsa, as ações mudam de mãos milhares de vezes por dia, ou seja, diferentes pessoas ou entidades, como fundos de pensões, são em parte donos de uma empresa durante alguns minutos, horas ou dias, e depois vendem-na, tornando-se donos de outra entidade qualquer. Naturalmente, esta classe de capitalistas passa a encarar o sistema econômico como um mecanismo pelo qual dinheiro, ações, títulos e outros equivalentes podem ser manipulados para enriquecimento pessoal, ao invés de servirem à sociedade, produzindo bens e serviços. Como resultado, fortunas são geradas através de takeovers hostis, fusões, encerramento de fábricas, etc., em outras palavras, aproveitam o direito de propriedade privada, não para adentraram na atividade econômica produtiva, mas para se enriquecerem, independentemente dos efeitos nos consumidores e trabalhadores.
Os Papas justificaram a posse privada de bens, porém, se analisarmos os motivos e os argumentos utilizados por eles, veremos que seus pontos de vistam diferem radicalmente do capitalismo. Examinemos, por exemplo, a famosa passagem da encíclica Rerum Novarum (1891), do Papa Leão XIII:
“Os homens trabalham mais e com mais prontidão quando trabalham naquilo que é seu. E mais: aprendem a amar o solo que trabalham com as suas mãos, e lhes provê, não apenas comida para comer, mas uma abundância para ele e para os que lhe são queridos” (no. 35)
Mas o que ocorre sob o capitalismo? Os homens aprendem a amar os papeis das ações que lhes renderão dinheiro, em resultado do trabalho de outra pessoa. Do contrário, a justificação que os Papas sempre forneceram à propriedade privada está ligada, pelo menos idealmente, à unidade entre Propriedade e Trabalho. Acrescenta Leão XIII: “A lei, portanto, deve favorecer a propriedade privada, e o seu objetivo deve ser tornar o maior número possível em proprietários” (Rerum Novarum, no. 35), e este ensinamento é repetido por Pio XI na Quadragesimo Anno (nos. 59-62, 65), por João XXIII em Mater et Magistra (nos. 85-89, 91-93, 111-115) e por João Paulo II em Laborem Exercens (no. 14). Se “o maior número possível […] se tornar proprietário”, então a separação fatal entre trabalho e posse será, se não removida, pelo menos o seu âmbito e influência será diminuída. Já não será a característica fundamental do nosso sistema econômico, mesmo que continue a existir.
E isso nos leva diretamente ao distributismo, uma vez que o distributismo não é nada mais que um sistema econômico em que a propriedade privada está distribuída num nível ótimo, no qual “o maior número possível” é verdadeiramente proprietário.
A melhor exposição acerca do distributismo, provavelmente, pode ser encontrada no livro de Hilaire Belloc, The Restoration of Property (1936). Atente-se no título, o Restabelecimento da Propriedade. Os distributistas argumentaram que, no regime capitalista, a propriedade produtiva era prerrogativa só dos ricos, e que isto lhes conferia um poder e uma influência sobre a sociedade muito maior ao que tinham direito. Embora formalmente todos tenham o direito à propriedade privada, na prática, esta restringe-se aos ricos.
Outra característica do distributismo – que decorre desta – é que, numa economia distributista, haverão limitações sobre grande parte da propriedade. Antes que nos acusem, dizendo que isso parece socialismo, devemos recordar o comentário de Chesterton (em What’s Wrong With the World, cap. 6), a respeito do qual a instituição da propriedade privada não significa o direito ilimitado à propriedade, tal como a instituição do casamento não significa o direito de ter mulheres ilimitadamente.
Na Idade Média, as corporações de ofício, exemplo perfeito das instituições católicas, frequentemente limitavam a quantidade de propriedade que cada dono/trabalhador podia possuir (por exemplo, limitando o número de empregados), dentro da perspectiva de evitar que alguém expandisse demasiadamente o seu negócio, levando outros à falência. Porque, se a propriedade privada tem um objetivo, como Aristóteles e São Tomás diriam, ele é assegurar que cada homem, junto com sua família, possa levar uma vida digna, servindo à sociedade. Uma vida digna, e não duas ou três: se o meu negócio me permite sustentar a mim e minha família, então que direito tenho de o expandir, privando outros do meio de se sustentarem e suas famílias? Pois os medievais viam aqueles que se dedicavam a uma mesma atividade, não como rivais ou concorrentes, mas como irmãos empenhados no relevante trabalho de providenciar bens e serviços necessários ao público. E como irmãos, uniam-se nas corporações, tinham padres para rezarem pelos seus mortos, apoiavam as viúvas e os órfãos e, de modo geral, trabalhavam em prol do bem-estar uns dos outros: quem será capaz de negar que semelhante concepção de sistema econômico é mais ajustada à fé católica do que a ética selvagem do capitalismo?