O mundo de O Sétimo Selo é um mundo melancólico, de flagelos e penitências desesperadas, de tentativas humanas de encontrar uma razão para o sofrimento que se impõe – e para a tragédia que se anuncia. Uma realidade desencantada, fúnebre, onde o morto parece ser ninguém menos que o próprio Deus: a impactante cena do rito de autoflagelação coletivo, que ocorre sob o som gutural de um canto gregoriano, soa mais como um verdadeiro velório para a divindade do que uma ação que visa modificar o curso dos fenômenos naturais (no caso da trama, a peste endêmica).
Nesta complexa engrenagem, isto é, de um mundo esmagado pela praga e pelo morticínio, e no qual Deus – ao menos para a maior parte das pessoas – permanece em silêncio, a teatrologia de O Sétimo Selo nos fornece uma ilustração in loco da relação moderna entre a realidade humana e as realidades suprassensíveis, entre o homem e a divindade.
Protagonista da trama, e vetor primário de toda a narrativa, Antonius Block é o que parece mais afligir-se com as consequências fáticas do ocultamento divino: um guerreiro perturbado por questões metafísicas e existenciais profundas, Block é uma espécie de cavaleiro-filósofo em busca da Realidade Última. Nem as glórias conquistadas durante sua década lutando como cruzado, nem seu regresso ao lar, são suficientes para desanuviar sua mente da imensa carga de sofrimentos imposta por sua própria angústia teológica – angústia que só fará a acentuar-se quando, abruptamente, sem qualquer aviso prévio, na beira do mar, Block é confrontado com a presença inefável da Morte – a quem ele propõe um desafio sutil, mas ao mesmo tempo cósmico: uma partida de xadrez em troca da promulgação de sua sentença.
Entre jogadas e diálogos, trapaças e artifícios infames, o guerreiro sabe não poder prevalecer sobre A Inefável. Não é seu objetivo, porém. Block almeja apenas ganhar tempo para ter a chance de, em meio as ruínas, chegar a olhar nos olhos do Absoluto, de conhecê-lo em seus ossos, nem que para isso ele precise, primeiro, olhar nos olhos do Diabo. O cruzado, decididamente, recusa-se a aceitar que a putrefação do mundo represente, na verdade, a putrefação do corpo morto do próprio Deus. E estava certo.
Se o fenômeno da Morte de Deus é uma camada narrativamente relevante para o argumento da trama, sua métrica final ficaria incompleta, e até incompreensível, se não fizesse alusão, mesmo que indiretamente, a um outro fenômeno igualmente salutar, porém mais sutil: o dei otiosi.
A ociosidade divina, ou o afastamento de Deus, é um fenômeno antropológico observado em diversas culturas e civilizações, tanto arcaicas quanto clássicas e, claro, modernas. Mircea Eliade sintetizará o sentido etnológico do Deus longínquo em seu livro clássico O Sagrado e o Profano: “[…] os Seres supremos de estrutura celestial têm tendência a desaparecer do culto; ‘afastam se’ dos homens, retiram-se para o Céu, e tornam-se dei otiosi” (ELIADE, 2010, p. 103). E prossegue:
“O fenômeno do ‘afastamento’ do Deus supremo revela-se desde os níveis arcaicos da cultura […] Por toda parte, entre [as] religiões primitivas, o Ser supremo celeste parece ter perdido a atualidade religiosa; está ausente do culto e, no mito, afasta-se cada vez mais dos homens, até se tornar um deus otiosus. Os homens, porém, lembram-se dele e imploram-lhe em última instância quando fracassam todos os esforços com os outros deuses e deusas, antepassados e demônios. Conforme se exprimem os oraons: ‘Tentamos tudo, mas ainda temos a ti para nos socorrer!’. E sacrificam-lhe um galo branco, gritando: ‘Ó Deus! Tu és nosso criador! Tem piedade de nós!” (p. 106).
Neste quadro de catástrofes e silenciamentos alegóricos, duas interpretações emergem como metafisicamente possíveis, e é disso que, em última instância, se trata a película: teria Deus morrido, no sentido nietzschiano do termo, ou apenas se ocultado, sendo necessário percorrer uma via específica para alcançá-lo?
O eixo narrativo de O Sétimo Selo parece nos apontar para a segunda opção. Não é sem motivo que, na monumental conclusão da trama, todos tenham sido convocados a dançar a dança da morte, menos o artistas Jof, personagem mais puro da trama (munido da capacidade de visualizar o mundo angélico em sua volta), e sua sua esposa Mia (com seu pequeno filho Mikael). A família de estetas consegue escapar do ultimato da Morte, terminando sua trajetória num cenário semelhante ao do primeiro encontro entre Block e a Morte: na beira do mar, só que, dessa vez, sem o céu cinzento, mas sob o sol brilhante, caminhando em direção ao horizonte das águas (elemento que simboliza a substância originária do mundo), deixando nas entrelinhas que a função substancial da arte, para além das nuances, é servir de ponte entre a experiência humana ordinária e as realidades superiores. Não a arte burguesa, moderna e decadente, evidentemente, mas aquela produzida pela – tomando de empréstimo a expressão de Erza Pound – antena da raça, e que pavimenta o caminho para o (re)encantamento do mundo e para a ressacralização de todas as coisas.
Referência:
Eliade, Mircea. O Sagrado e o Profano. 3ª Ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010.