Para que analisemos mais corretamente uma série de novas tendências políticas relacionadas ao crescimento do fator identitário, sugiro a seguinte abordagem metodológica, que explica os três níveis da identidade coletiva nas sociedades:
1. Identidade difusa
A maioria esmagadora dos membros de uma sociedade possui este tipo de identidade como uma percepção vaga, geralmente subconsciente, da unidade de pertencimento a um povo, uma história, um Estado, uma linguagem ou religião. A identidade difusa quase nunca domina a vida cotidiana, sendo secundária, ou mesmo terciária, em relação à identidade individual. É comum que aqueles que possuem uma identidade difusa deem prioridade ao próprio “eu”, ao conforto, aos sentimentos e a segurança e, só depois, aos de familiares e amigos – e somente após um vago entendimento a respeito de sua pertença a uma determinada sociedade ou povo (e não a uma ou a outra). Em circunstâncias normais, a identidade difusa não requer ações específicas e é percebida de maneira fraca: seus portadores podem até não ter noção de seus conteúdos e estruturas.
Ela só emerge em casos excepcionais: guerras, conflitos, cataclismos políticos ou, às vezes, sob a forma de uma vitória da pátria em eventos desportivos ou em alguma outra conquista significativa. A identidade difusa não impulsiona a pessoa a pertencer a um determinado partido e pode se exprimir através de cosmovisões e de ideologias muito distintas.
2. Identidade extrema
Tal forma caracteriza aqueles que priorizam a identidade coletiva: eles não só sentem-na de forma aguda, como também tentam compreendê-la e moldá-la. Aqueles que possuem uma identidade extrema forjam ideologias patrióticas ou nacionalistas (identitárias), situando a identidade como o mais alto valor e usando-a como base para programas e projetos políticos. A identidade extrema é construída sobre a variante difusa, mas enfatiza certos aspectos de forma intensa e bastante exagerada. Consequentemente, aqueles que possuem uma identidade difusa muitas vezes não conseguem se reconhecer nos portadores da variante extrema: as estruturas são diferentes. Ao exacerbar certos aspectos da identidade difusa, os portadores da identidade extrema (os “nacionalistas”) muitas vezes perdem de vista ou distorcem outros aspectos da identidade.
A identidade difusa é natural e orgânica, enquanto a identidade extrema é artificial, construída e mecânica. A identidade extrema é mais comum durante períodos de perturbação coletiva, desastres nacionais, guerras, etc.
3. Identidade profunda
A terceira forma de identidade coletiva é um paradigma intelectual consciente, uma forma de identidade que se transmite na medida em que se projeta sobre as massas. Se a identidade difusa é o produto de uma disseminação, a identidade profunda é o que é disseminado: o coração do espírito de um povo, um hieróglifo histórico, o centro existencial do Ser de um povo e de uma sociedade. Tal identidade, profunda, pode ser desvelada pelos filósofos, por mitos, profetas e não se concentra na construção, na projeção e na manipulação política (como ocorre com os portadores da identidade extrema), mas na descoberta, na libertação e a manifestação do próprio espírito de um povo – ao invés da maneira como é imaginada. Neste sentido, a identidade profunda não é uma estrutura acima da identidade difusa, mas, antes, sua base, sua raiz (radix), seu fundamento.
A identidade profunda é o elemento que singulariza uma sociedade, um povo, uma cultura ou uma civilização – que faz com que eles sejam o que são. Desdobra-se de maneira difusa através de gerações e através das massas, mantendo sempre sua singularidade e frescor.
A identidade extrema é sempre relativa, individual e condicional. A identidade profunda é absoluta, universal – no âmbito de uma sociedade em específico – e não depende da expressão individual. A identidade extrema é um produto específico da identidade difusa. A identidade profunda precede a identidade difusa e funciona como a potência espiritual que a constitui.
Semelhante análise é muito importante para uma compreensão precisa do desenvolvimento do nacionalismo no mundo atual.
Na Rússia, a identidade difusa (patriotismo) está em ascensão. Concentra-se particularmente no Estado e em Putin, especialmente após o ocorrido na Crimeia. Os Jogos Olímpicos ajudaram a cultivar e a revitalizar tais formas em particular.
A identidade extrema é representada por uma ampla gama de movimentos nacionalistas russos. Eles são díspares, oferecem sua própria formulação do nacionalismo e, sob a liderança de líderes fúteis e incoerentes, lutam uns contra os outros, não contando com o apoio dos portadores da identidade difusa.
A identidade profunda está no centro de tudo para aqueles que estão sinceramente preocupados em buscar o ideal russo – não como uma construção ideológica artificial, mas como um fundamento espiritual profundo.
O que observamos na Ucrânia é o oposto, ou seja, se trata de um desenvolvimento da identidade extrema na caricatura “banderista” ocidental-ucraniana. Este modelo distorce completamente a identidade difusa natural: ignorando a identidade profunda, tenta impor uma construção artificial para todos os ucranianos – a despeito das estruturas identitárias difusa e profunda, que são a base destes, terem muito pouco em comum com eles.
Essa observação nos coloca a seguinte pergunta: o que é o ideal ucraniano? Não é uma caricatura “banderista”, nem um vago nacionalismo difuso, mas também não tem a ver com a compreensão ortodoxo-imperial da Grande Rússia ou com a nostalgia soviética do problema ucraniano. Em face dos eventos catastróficos e da cisão em curso na Ucrânia, tais observações podem soar como abstratas, no entanto, a busca pela identidade profunda da Ucrânia, a compreensão do ideal ucraniano, sua “evocação”, são, ao contrário, desafios supremos.
O mesmo pode ser aplicado à Europa, onde estamos testemunhando o surgimento de uma onda identitária. O nacionalismo difuso das comunidades europeias está crescendo, apesar das políticas liberais anti-nacionais das elites europeias. Como resultado, há também um crescimento da identidade extrema, representada por grupos e movimentos nacionalistas – às vezes abertamente neonazistas. Não obstante, em meio a tudo isso, sabemos qual é o maior problema: a questão da identidade profunda da Europa. Afinal, o caso ucraniano serviu para expor toda uma série de questões – questões e desafios que são de uma relevância histórica colossal e que vão muito além do contexto específico da situação na Ucrânia ou das relações russo-ucranianas.
Hoje, a identidade está no centro de todos os problemas contemporâneos mais agudos na Europa e em outros lugares.