Uma agradável coincidência se produziu nestes dias quando logo após ter participado no México de um congresso sobre as identidades, recebemos uma das melhores e mais atualizadas revistas de pensamento como a francesa Krisis, que trata do tema da identidade.
Isso nos move a voltar a escrever ou reescrever aquilo que temos sustentado há anos para que, não já no âmbito reduzido de um congresso, mas no mega-âmbito da internet, o ponhamos para o conhecimento de muitos.
Em realidade, a pergunta pela identidade tem que ser mais precisamente a pergunta pelas identidades. Assim, se do mundo não há uma única versão ou visão, mas várias segundo as ecúmenes culturais que o constituem, é lógico que estejamos obrigados a nos perguntarmos pelas identidades e não pela identidade.
Esclarecido isso, quando falamos de identidade, falamos de identidades. Isto é, que cada um aplique a sua.
Não devemos buscar a identidade de homens e povos na repetição mecânica do idêntico. Esta radica na repetição ritual de modos, maneiras e costumes como o fazem os centros tradicionalistas quando desfilam ou se vestem de camponeses (charros no México, gauchos na Argentina, tiroleses na Itália ou bretões na França). Isso não é ruim, mas se está limitado à ordem da repetição. A questão é que a repetição tem muito de arremedo, de cópia mal feita.
A repetição é chamada pelos latinos idem, o igual, enquanto que a identidade devemos buscá-la no ipse, na busca de si mesmo.
As identidades dos povos e dos homens não são algo pétreo, algo consolidado de uma vez e para sempre, mas que se conquista, se alcança através da reencarnação de valores de geração em geração que formam parte de cada uma de suas tradições. As identidades são um fazer-se quotidiano.
O que é a tradição? Não é juntar coisas velhas, mas a transmissão de valores, de coisas valiosas de uma geração para a outra. O substancial é o que se transmite como valores, o acidental é a forma ou maneira como esses valores se expressam.
A tradição se funda em valores e vivências. Estas últimas são as experiências histórico-políticas de um povo ou de um indivíduo ao longo de sua vida, enquanto que os valores são, como dissemos, os atos ou produtos transformados em valiosos, porque neles se encarnou um valor. Assim, a América Ibérica possui vivências que lhes são comuns como suas lutas pela emancipação onde o anglo-americano é vivido como o inimigo e onde a liberdade é seu ideal a conquistar ou valor máximo a realizar.
Para entender a identidade temos que partir do ipse, do ser si mesmos. E como somos nós mesmos? Quando preferimos a nós mesmos, quando não imitamos. Perón dizia: “Não sejamos um espelho opaco que imita e imita mal”. A imitação é o que tem tilintado em toda a intelligentsia cultural iberoamericana que pensa assim: vamos ver o que está na moda, traduzimos, apresentamos, trazemos e adotamos.
Este é o passo prévio: erradicar o arremedo, o ser um espelho opaco, a má imitação. Preferir a si mesmo é dizer: vou preferir os valores que fazem minha tradição cultural que se expressa bem em uma língua, que é a língua que eu falo. A preferência de nós mesmos nasce do ato primordial pelo qual privilegiamos o nós aos outros.
Isso não quer dizer que reneguemos ao outro, vamos vê-lo em seguida, mas que o ato primordial do acesso à identidade é um ato de preferência, que como ato valorativo, prefere uns valores e pretere outros.
Mas a identidade não se esgota na preferência de nós mesmos, este é o primeiro passo de acesso a ela.
Ainda que nós pensemos e nos preferimos formando parte de tal ou qual ecúmene cultural, de tal ou qual identidade, isso é um ato subjetivo que tem o valor da convicção pessoal, mas nada mais. É necessário, então, introduzir a categoria de reconhecimento, que só se consegue se “o outro” me reconhece como tal. Por isso os velhos crioulos nos ensinavam: “nunca digas que és gaucho, espera que os outros te digam”.
O outro ou os outros desempenham aqui, neste segundo momento, um papel fundamental pois é ele ou eles quem produz o que a fenomenologia chama de verificação intersubjetiva, pela qual sabemos que uma coisa é o que é, e não um simples produto de nossos desejos ou de nossa imaginação.
Agora, dado que a preferência de si mesmo é o ato primordial na busca do ipse, alguns autores distraídos como André Lalande sustentaram que “le principe d’identité déclare la superiorité du même sur l’autre”, quando em realidade o que estabelece o princípio da identidade através da preferência de si mesmo é a diferença, a distinção de um com o outro, do si mesmo com o outro de si, e não a superioridade de um sobre o outro.
Grande parte das taras de nossa sociedade radicam na não-distinção entre igualdade e diferença.
Os homens são iguais em dignidade, mas naturalmente desiguais por estarem dotados de diferentes talentos e características. Isto foi tratado pela filosofia desde sempre apelando à noção de analogia que foi definida como parte idem, parte diversa.
Se colocamos a ênfase na igualdade caímos no igualitarismo, que é uma das tantas construções ideológicas da modernidade e se colocamos a ênfase na desigualdade, caímos em um nominalismo como o de Ockam, que nos leva ao erro do univocismo.
Certamente, nós na vida prática política, nos aproximamos a remarcar as diferenças acima da uniformidade de mundo do pensamento politicamente correto. O enfrentamento com a homogeneização do homem e sua cultura não tem que nos fazer cair na dissolução do homem e sua cultura. Assim, rechaçamos tanto a definição da identidade como “a de todos por igual”, como a de que “cada um faça e se sinta como quiser”.
A partir da teologia, os homens somos iguais em dignidade enquanto filhos de Deus. Cristo veio redimir a todos os homens, não a alguns sim e outros não. Esta igualdade de direitos não tem como, nem pode se confundir com o igualitarismo promovido pela modernidade em geral e pela Revolução Francesa em particular. Nem atribuir a culpa do igualitarismo moderno ao cristianismo, porque isso é pôr a carroça na frente do cavalo.
Todo homem é um animal rationale. A desigualdade dos homens se dá, basicamente, em seus atos e ações, em suas escolhas e postergações, em seus valores e desvalores. O mundo não é um universo, mas sim um pluriverso onde convivem várias ecúmenes culturais: a iberoamericana, a anglo-saxã, a eslava, etc.
A desigualdade, ou melhor, as desigualdades culturais são a raiz da diferença, e esta diferença é a que nos faz ser “si mesmo”, a que nos dá a identidade de ser e existir no mundo. Tanto a título individual ou como nações que, como afirma o grande professor espanhol Dalmacio Negro Pavón, são a melhor e mais sã invenção política da modernidade. Quando a querida Bolívia nos fala de um Estado plurinacional com 36 nações (que não inclui aos crioulos, que são a maioria) produz um sem sentido, um desatino.
As diferenças, do latim differre, ir por outro caminho, buscam a caracterização em seu ser, de um algo qualquer que seja. Enquanto que as distinções estão vinculadas com a separação, com a discriminação (perdão por semelhante palavrinha) de uma coisa em relação a outra.
Quando nós afirmamos que hoje o grande inimigo das identidades é a proposta do one World, de mundo uno com suas ideias de homogeneização cultural sob um único modelo, a do deus capitalista do livre-mercado, o da sociedade de consumo que possui milhares de meios, mas que confunde os fins, a do homo oeconomicus dolaris, o que estamos fazendo é dando-nos conta de que na conformação de nossas diversas identidades tomou primazia a visão e versão “do outro”, a da ecúmene anglo-saxã, com os EUA à cabeça.
É que a identidade não é uma ideia complexa, como sustentam alguns autores, mas que o que é complexo é seu acesso. Pois, primeiro é a afirmação subjetiva do que somos, depois o enraizamento em uma tradição nacional, com a atualização de valores, para finalmente buscar o reconhecimento do outro.
E é neste último ponto que surge a verdadeira complexidade para a conquista de uma verdadeira identidade. Alguns autores, quando chegam a este ponto, caem na inocente atitude de falar de “construção dialógica da identidade”, quando em realidade não existe tal diálogo, pois o diálogo autêntico só se dá entre amigos, isto é: com o outro de si mesmo. Porque só com o amigo se dá o trato em igualdade, Aristóteles dixit.
Se buscamos a identidade no diálogo entre ecúmenes diferentes, o que conseguimos é pôr em marcha o mecanismo de dominação já assinalado por Hegel na dialética do amo e do escravo.
A identidade nesta instância há de ser buscada na explicitação da relação dialética com o outro, evitando cair na colonização cultural, hoje entendida como americanização pelos europeus.
Não podemos, filosoficamente falando, conformar nossa identidade mais genuína em diálogo com os outros, mas em tensão dialética com eles, do contrário seremos dominados e terminaremos perdendo nossa identidade.