Esquerda e Pós-modernidade

Por José Alsina Calvés

Quais foram as principais linhas de influência para o pensamento da esquerda nos séculos XX e XXI? Quais são as diferenças fundamentais entre o pensamento da esquerda das primeiras gerações e a esquerda pós-moderna? Neste artigo, José Alsina Calvés faz um diagnóstico da situação atual da esquerda e aponta seus fundamentos filosóficos. Amparado na análise do filósofo Gustavo Bueno, Calvés propõem uma terminologia para a classificação do pensamento de esquerda desde seu surgimento como pensamento inconformista até sua fase atual, já transformado em aliado e ferramenta ideológica do capitalismo global.

A palavra esquerda nos sugere, a princípio, duas coisas distintas: uma atitude e uma ideologia ou família de ideologias. Como atitude é um inconformismo, não aceitar o que é dado sem no mínimo submetê-lo a uma análise crítica; pensar que os princípios estão acima dos interesses, que as coisas e as situações podem alterar-se e que é a vontade heroica do ser humano o que realmente construiu a história. Como ideologia ou conjunto de ideologias remete a uma série de pautas: igualitarismo, uma antropologia que supõe que a plena realização do humano passa pela liberação anárquica de toda compulsão, que toda ideia de limite, hierarquia, disciplina ou sacrifício é negativa per se, e uma concepção linear e progressista da história, que tende a um final de plena realização do humano.

Em outra ocasião me referi a essas duas visões da esquerda como situacionista, à primeira, e essencialista, à segunda [1]. É certo que durante muito tempo a atitude e as ideologias de esquerda estiveram juntas, mas de um tempo para cá podemos observar uma cisão entre as mesmas. É certo que o conjunto de pautas ideológicas que sempre havia caracterizado a esquerda foi diluindo em intensidade e passou a formar parte de uma ideologia comum do conjunto das sociedades ocidentais. Atualmente quase todo mundo é “progressista”, “antiautoritário” e “fazedor do bem”, e quem não o é corre sério perigo de exclusão social.

O pensamento “politicamente correto”, isso é, o conjunto das coisas que se deve pensar, dizer e acreditar se não quisermos ser qualificados de “fascistas”, “homofóbicos” ou “machistas” está edificado sobre os pautas ideológicas tradicionais da esquerda. Isso o transforma em pensamento conformista. O curioso é que o sistema econômico em que vivemos, o capitalismo, caracterizado pela ideologia da acumulação de capital, o domínio da economia financeira sobre a real, o poder político dos bancos e o estímulo da competição frente à cooperação, não sente em absoluto qualquer incômodo com essas pautas ideológicas, pelo contrário. Assim, percebemos como a publicidade incita ao consumo em nome dos “direitos individuais”, a “liberdade de escolha”, “não renunciar a nada”, “atrever-se a querer tudo” e outras frases que parecem inspiradas nos lemas do maio de 68. As empresas se vendem a si mesmas como “revolucionárias”, “originais”, “defensoras dos direitos individuais”, “inimigas do antigo e do ultrapassado”.

Quando um conjunto de pautas ideológicas se transformou no principal sustento doutrinário de um sistema político e econômico, dificilmente pode atuar como motor de mudança deste. Por isso ocorreu essa cisão entre as “ideias” da esquerda e a atitude inconformista e revolucionária. Por isso, a esquerda, em qualquer de suas versões, parece incapaz de liderar uma autêntica revolta contra o Sistema, e na melhor das hipóteses aspira a ser uma espécie de “consciência pesada” deste, de apontar o que “ainda” não foi alcançado, e em alguns casos, também, transforma-se em autêntica “tropa de choque” do Sistema. Tudo que não tenha origem nas pautas estabelecidas pelo “politicamente correto” é automaticamente acusado de fascista, e aí está a esquerda antifascista disposta a fazê-lo recobrar a razão (ainda que para isso tenha que utilizar métodos fascistas)

O que levou a essa situação? O que causou essa cisão entre o inconformismo e as ideias “de esquerda”? O que provocou essa crise e essa perda de identidade da esquerda?

Para tentar responder a essa pergunta precisamos remontar a um passado recente: o maio de 68 e suas causas.

No ano de 2018 completaram-se 50 anos dos fatos ocorridos na França geralmente conhecidos como “Maio de 68”. Esse meio século que nos separa dos fatos nos permite fazer uma análise e uma avaliação política (ou melhor, metapolítica), histórica e filosófica de seu significado e sua influência real na história posterior no século XX e início do XXI.

A interpretação mais comum e superficial desses acontecimentos é que representaram a irrupção de um novo grupo social, “os estudantes”, como suposto sujeito revolucionário, e a aparição da chamada nova esquerda, que em realidade de nova não tinha nada, mas foi, na verdade, a revitalização de grupos marginais, como os situacionistas (anarquistas), trotskistas e maoístas.

Com a perspectiva de meio século podemos observar fenômenos curiosos, como o fato de que alguns dos famosos “slogans” que adornavam as paredes de Nanterre ou da Sourbonne sejam atualmente utilizadas pela publicidade, que um dos principais líderes estudantis, Daniel Cohn Bendit, que tornou-se um respeitável deputado socialdemocrata, aplaudiu os bombardeios estadunidenses contra a Sérvia como parte de uma política de “defesa dos direitos humanos” (???).

A tese que vamos defender é que os acontecimentos do “Maio de 68”, especialmente em sua “fase estudantil”, têm muito pouco de revolucionários e que formam parte do processo de destruição das ideias socialistas, na medida em que abandonam a ideia de “classe” como sujeito da teoria política e que convergem com a eclosão do neoliberalismo dos anos 80 na construção de um pós-indivíduo da globalização mundialista.

Como sempre aconteceu em todos os movimentos sociais e políticos, o “Maio de 68” foi precedido por uma série de autores (filósofos e politólogos) que iniciaram uma revisão do marxismo ocidental e que contestaram o papel da classe trabalhadora como “classe revolucionária”. Nos referimos concretamente à chamada Escola de Frankurt e especialmente a um de seus membros mais destacados: Herbert Marcuse.

A Escola de Frankfurt

A origem da Escola de Frankfurt remonta ao ano de 1922, em plena república de Weimar, quando Félix Weil, filho de um abastado comerciante de grãos (é impressionante a quantidade de filhos milionários que há entre os intelectuais de esquerda), financiou um encontro entre intelectuais marxistas (Lukács, Kosch, Pollok, Wittfogel) que ocorreu em IImenau [2] (Turíngia).

O sucesso do encontro levou à concepção do projeto de um Centro de Estudos estável, que foi financiado por Hermann Weil, pai de Félix, que seria reconhecido pelo Ministério da Cultura e associado à Universidade de Frankfurt. Foi batizado oficialmente como “Instituto para a Investigação Social” e inaugurado oficialmente em 3 de fevereiro de 1923.

O primeiro dirigente do Instituto foi o economista Kurt Albert Gerlach, e na ocasião de sua morte, em outubro de 1922, foi sucedido pelo historiador Karl Grünberg. Com a demissão de Grünberg em 1929 por motivos de saúde, a direção foi assumida, de forma provisória, por F. Pollok, e em 24 de janeiro de 1931 foi assumida por Max Horkheimer, um dos teóricos mais importantes dessa escola.

Em 1933, com a ascensão do nazismo, a maioria dos membros do instituto emigraram para os Estados Unidos (devido à sua dupla condição de marxistas e, a maioria, de origem judaica), onde continuaram sua atividade. Com o término da Segunda Guerra Mundial muitos permaneceram nos EUA (Marcuse, Fromm, Wittfogel, Neumann, Löwenthal), enquanto que outros (Horkheimer, Adorno, Pollok) voltaram à Alemanha, onde tiveram um papel destacado como ideólogos da “desnazificação”.

Em geral, os autores dessa escola se caracterizam por suas tentativas de sintetizar o marxismo e a psicanálise, um rechaço do estalinismo soviético que consideram uma ditadura burocrática e um capitalismo de estado, uma crítica muito dura contra a sociedade ocidental e seu suposto “totalitarismo” e um certo pessimismo sobre as possibilidades revolucionárias da classe trabalhadora. Suas figuras mais destacadas são, sem dúvida, Horkheimer, Adorno e Marcuse. Não podemos nos deter na análise dos três autores, mas iremos nos concentrar em Marcuse, que foi sem dúvidas o mais influente sobre a Nova Esquerda em geral e particularmente sobre o Maio de 68.

Herbert Marcuse

Marcuse foi, sem dúvida alguma, um dos teóricos mais importantes na formação da chamada Nova Esquerda. É um autor essencialmente “negativo”, no sentido de que realiza críticas, as vezes muito acertadas, ao capitalismo e à sociedade de consumo, mas as alternativas que propõem são vagas, nebulosas e utópicas. É impossível negar que ostenta uma sofisticada formação filosófica, ainda que às vezes seu estilo seja algo obscuro e hermético. Entre suas contribuições mais importantes é preciso destacar:

  • Sua recuperação de Hegel
  • A tentativa de síntese entre o marxismo e alguns elementos da psicanálise
  • A crítica da sociedade de consumo e ao “homem unidimensional”
  • A busca por novos sujeitos revolucionários

Marcuse sai em defesa de Hegel, atacado como “filósofo do fascismo” por sua teoria do estado e porque seu discípulo italiano, Giovanni Gentile, havia sido um dos intelectuais orgânicos do fascismo mussoliniano. Marcuse se concentra sobretudo na noção hegeliana da razão, dotada, em sua percepção, de um caráter claramente crítico e polêmico. Não é por mera casualidade que o próprio Marx veio da chamada “esquerda hegeliana”.

A reinvindicação hegeliana de Marcuse tem sua lógica: Descartes, Kant e Hegel são, sem dúvida, as três figuras fundamentais da Modernidade e toda filosofia do “fim da história” é devedora de Hegel em maior ou menor grau. Ramiro de Mazteu [3], em uma das críticas mais radicais já escritas contra a modernidade, A crise do humanismo, classifica Hegel como “heresiarca máximo”.

Mas se Marcuse está corretíssimo em sua reinvindicação de Hegel (um dos pais da modernidade), também existe alguma verdade naqueles que apontam a influência de Hegel no fascismo. O que nos leva à tese de Alexander Dugin, segundo a qual tanto o fascismo como o marxismo eram alternativas ao liberalismo, mas não alternativas à modernidade, e que em realidade participavam, em maior ou menor grau, do espírito da modernidade.

Outro aspecto interessante da obra de Marcuse, e que teve grande influência no desenvolvimento da nova esquerda, foi a introdução de elementos da psicanálise em seu discurso, ainda que realizando uma virada nas concepções freudianas, que são essencialmente conservadoras e inclusive reacionárias. Essa virada se realiza especialmente no livro de Marcuse [5], Eros e Civilização.

Segundo Freud (o Freud “filósofo” e não o “terapeuta”) a civilização teria se desenvolvido graças à repressão dos instintos, em particular do “princípio do prazer”, que representa o núcleo fundamental do indivíduo. Esse princípio havia sido sacrificado pelo “princípio de realidade” para poder aumentar a produtividade e manter a ordem. A neurose, o mal estar da cultura, era o preço que a humanidade tinha que pagar pela civilização. Marcuse contorna o argumento de Freud ao considerar que não é a civilização enquanto tal que exige a repressão do “princípio de prazer”, mas unicamente a sociedade autoritária e “de classe” que conhecemos.

Para Marcuse, o “princípio de realidade” se transformou em um repressor “adicional”, que vai além das necessidades de sobrevivência do grupo humano, e que conduz a uma utilização e manipulação das energias “psicofísicas” do indivíduo para a produtividade e a disciplina social, contra toda a demanda subjetiva de felicidade e prazer.

A virada “psicanalista” de Marcuse tem, em nossa perspectiva, importantes implicações ideológicas, que terão uma notável influência na nova esquerda de maneira geral e especialmente no maio de 68. Sua origem deve ser buscada no psiquiatra Wilhelm Reich, autor de Psicologia de Massas do Fascismo.

Em primeiro lugar, representa uma heterodoxia importante a respeito do marxismo, na medida em que situa o foco de interesse em elementos “superestruturais”, que considera tão importantes (ou mais) que os elementos estruturais (as condições de produção). Para um marxista ortodoxo esses elementos “superestruturais” carecem de importância e, em nenhuma circunstância, podem atuar retroativamente sobre os elementos estruturais. Para Marcuse e a nova esquerda, esses elementos são fundamentais, o que está de acordo com outra tese que veremos mais adiante: o fim do papel revolucionário do proletariado, que será substituído pelas “minorias marginais”: homossexuais, imigrantes, mulheres, estudantes, etc.

Mas, acima de tudo, essa virada psicanalista significa um reforço da metafísica da subjetividade, iniciada em Descartes. A grande diferença é que o indivíduo cartesiano se fundamenta no pensamento, ao passo que essa nova versão do indivíduo se fundamenta em pulsões e desejos. Se o indivíduo cartesiano corresponde a uma primeira fase do capitalismo e está caracterizado pela autodisciplina imposta pela razão, o pós-indivíduo corresponde ao capitalismo global, disposto a satisfazer todas as suas pulsões e desejos (sempre que possa pagá-las)

Marcuse opõe à figura de Prometeu, o herói cultural símbolo da inventividade produtiva, as figuras de Orfeu e Narciso. Orfeu, “voz que não manda, mas canta” significa uma ordem sem repressão. Muito mais sintomática é a figura de Narciso, que contempla deslumbrado seu próprio corpo e se apaixona por si mesmo. O narcisismo da cultura pós-moderna é já reivindicado por Marcuse.

Outro aspecto muito interessante do pensamento de Marcuse é sua crítica à sociedade industrial, desenvolvida em seu livro[6] O Homem Unidimensional: Estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. Neste livro há elementos interessantes de crítica à sociedade de consumo, ao vazio existencial dos seres humanos, à manipulação das mentes pela publicidade e à farsa da democracia liberal.

Em paralelo, Marcuse critica toda autoridade, hierarquia e tradição. Não percebe que com a destruição de todas essas instituições está abrindo o caminho para o capitalismo globalizado, que quer indivíduos desenraizados, narcisistas, preocupados unicamente por seus desejos e pulsões, que o próprio capitalismo se encarrega de satisfazer.

As instituições hierárquicas e tradicionais (a família, a autoridade do pai ou do mestre, etc.) são anteriores ao surgimento do capitalismo. Podem ter sido manipuladas pelo capitalismo nas fases iniciais de sua existência (a etapa da acumulação de capital), mas para o capitalismo globalizado são um obstáculo, pois limitam a capacidade de consumo. Algo parecido ocorre com o Estado Nacional: produto do desenvolvimento da burguesia, que cumpre sua função como unificador do mercado no interior do território nacional, mas se transforma num obstáculo quando o capitalismo passa para sua fase globalizada.

Finalmente, consideraremos o aspecto mais importante do pensamento marcusiano: seu rechaço ao proletariado como classe revolucionária e a busca de novos “sujeitos revolucionários”. Essa rejeição é consequência de tudo o que foi dito até agora. Na sociedade industrial avançada a repressão não se produz fundamentalmente pela força física, mas pela alienação e manipulação das consciências. A classe trabalhadora é particularmente sensível a esses processos de alienação e manipulação, o que a torna incapaz de ser sujeito revolucionário. As próprias organizações de trabalhadores, os sindicatos, há tempos que esqueceram suas pretensões revolucionárias e se limitam a um ativismo que reivindica somente na esfera econômica e na defesa exclusiva dos interesses de seus afiliados.

Essa consequência pessimista do pensamento de Marcuse está compensada por uma saída muito mais otimista: a dinâmica da sociedade industrial gera novos sujeitos revolucionários. Em primeiro lugar, aqueles que estão marginalizados dos processos de produção-consumo: marginais, desempregado, lumpemproletariado, imigrantes ilegais, etc. Em segundo lugar, setores da sociedade que por sua forma de vida tendem a enfrentar ou serem críticos com a sociedade e seus valores: homossexuais, mulheres, estudantes. Esse último setor (que não é classe) recebe atenção especial. Os estudantes, distanciados (temporalmente) dos processos de produção-consumo por sua própria atividade, tendem a ser críticos com a sociedade que os rodeia.

Esta “grande recusa” situa o pensamento de Marcuse não somente fora da tradição marxista, mas de qualquer pensamento materialista. Os setores sociais de que fala Marcuse estão absolutamente dissociados dos processos de produção e não têm nenhuma relação com as classes sociais (O que há em comum entre uma mulher da alta burguesia com outra da classe trabalhadora que trabalha dez horas por dia? O que há em comum entre um estudante de família rica, com todo o tempo do mundo para se dedicar a atividades “revolucionárias” com outro de família pobre que precisa trabalhar para pagar os estudos ou conseguir notas boas para obter uma bolsa?)

A ideia de que elementos psicológicos ou ideológicos podem realmente atuar e produzir mudanças nas relações de produção situa Marcuse no marco do idealismo. E aqui poderíamos voltar ao princípio, à sua reivindicação de Hegel e da “razão em movimento”.

Os novos sujeitos revolucionários a que se refere Marcuse haviam suscitado o desprezo absoluto de Marx. Para o autor de O Capital e de O Manifesto Comunista, o lumpemproletariado era o produto da putrefação dos estratos mais baixos da sociedade e era facilmente manipulável pela reação, ao passo que os estudantes não eram mais que uma excrescência da burguesia, que, acabados os anos de suposta “rebeldia”, se reintegravam tranquilamente à sociedade.

Os estudantes foram os grandes protagonistas do Maio de 68 e isso fazia parecer que Marcuse estava certo. Se prestarmos atenção aos demais “sujeitos revolucionários” percebemos que são objeto de “culto” da esquerda pós-moderna, tanto a socialdemocrata como a de “extrema esquerda”. Luta contra a “exclusão”, a “discriminação” e a “desigualdade”. Direitos humanos, direitos dos homossexuais e transexuais, imigrantes ilegais, lutas feministas e “refugiados wellcome” são os vetores mobilizadores da esquerda pós-moderna, que faz tempo que esqueceu qualquer referência à revolução e ao proletariado (entre outras coisas, porque o neoliberalismo transformou o proletariado em “precariado”).

Gustavo Bueno e “O Mito da Esquerda”

Devemos a Gustavo Bueno[7] uma análise profunda da ideia da esquerda. Vamos destacar três elementos muito importantes: a associação da esquerda com o racionalismo, as seis gerações da esquerda e a ideia de “esquerda indefinida”.

Esquerda e Racionalidade

Para Bueno, todas as manifestações políticas da esquerda estão ligadas, de um modo ou de outro, ao desdobramento da racionalidade. O exemplo mais característicos pode ser encontrado na primeira manifestação da esquerda (ou primeira geração): os revolucionários jacobinos franceses. Usando métodos inspirados na Revolução Científica, os revolucionários submetem o Antigo Regime a um regressus, isso é, à decomposição de todas as suas estruturas e à redução à suas partes atômicas, os indivíduos. Em seguida, procedem a um progressus: estas partes atômicas ou indivíduos serão usadas para construir as novas estruturas da Nação Política Jacobina.

As subsequentes manifestação políticas de esquerda (as gerações sucessivas) abandonaram o indivíduo como parte atômica e tomaram a classe social como referente (socialdemocracia, comunismo, comunismo asiático). Nunca se abandona a ideia de racionalidade, pois a classe é definida em relação aos processos produtivos e a filosofia marxista, que está na base dessas três gerações de esquerda, se declara como uma “ciência”.

A esquerda pós-moderna, tanto em sua versão “socialdemocrata” (que na Espanha estaria representa pelo PSOE) quanto em sua versão “radical” (Podemos e CUP) abandonou a classe social como sujeito da ação política e, na esteira de Marcuse e da escola de Frankfurt, atribui a função “revolucionária” às “minorias oprimidas” (mulheres, homossexuais, transexuais, imigrantes). Ainda que os setores mais radicais (CUP) eventualmente falem de “revolução anticapitalista”, sua ação política se realiza na luta contra a “exclusão”, o “racismo”, o “machismo”, o “heteropatriarcado” e a “homofobia”.

Na verdade, o sujeito político dessa esquerda pós-moderna é o indivíduo. Mas é um indivíduo diferente daquele da esquerda radical jacobina. O regressus é muito mais radical uma vez que não se pretende unicamente destruir as estruturas tradicionais, mas qualquer componente de identidade que limite a liberdade desse indivíduo, incluída a própria racionalidade, que limita as possibilidades e coloca o indivíduo diante da oposição entre o “princípio de realidade” e o “princípio de prazer”.

“Liberto” de toda identidade e da própria racionalidade, esse indivíduo pós-moderno está reduzido ao “desejo”. Toda oposição aos “desejos” do indivíduo soberano é “fascismo”, “racismo” e “machismo”. É preciso eliminar as fronteiras, pois são um obstáculo ao desejo de alguns indivíduos de transitarem livremente pelo planeta. É preciso eliminar os gêneros, pois se opõem ao desejo de alguns indivíduos de mudar de gênero ou de inventar “gêneros” novos. É preciso acabar com a maternidade, pois aprisiona o indivíduo-mulher a uma fatalidade biológica e discrimina o indivíduo-homem que não pode vivenciá-la. Por fim, é preciso construir o cyborn, assexuado e potencialmente imortal.

Não obstante, uma esquerda que renunciou à racionalidade pode continuar se denominando como esquerda?

As seis gerações da esquerda

Bueno nos apresenta seis gerações da esquerda “definida”, isto é, daquela que se manifesta em termos políticos por sua relação com a ideia de estado.

A primeira geração é constituída pelos revolucionários franceses jacobinos.

A segunda pelos liberais dozeanistas.

A terceira pelos anarquistas ou libertários.

A quarta pelos sociaisdemocratas (marxistas que defendiam a tomada de poder da classe operária através de um processo pacífico e eleitoral)

A quinta pelos comunistas soviéticos (marxistas que defendiam a tomada de poder da classe operária através de um processo revolucionário e a ditadura do proletariado)

A sexta pelos comunistas asiáticos (marxistas heterodoxos, que incluem o campesinato como classe revolucionária e defendiam uma ditadura e uma “revolução cultural” dentro de um marco cultural asiático, muito influenciados pelo confucionismo)

As três primeiras gerações da esquerda concebem o indivíduo como sujeito. As três últimas tomam a classe social como sujeito. Mas a esquerda pós-moderna não se enquadra em nenhuma dessas definições: abandonou a classe social como sujeito político e o indivíduo a que se referem é essencialmente diferente do indivíduo das primeiras manifestações da esquerda.

Para Bueno, toda esquerda “definida” se caracteriza por sua relação com o político e, mais concretamente, com o Estado (ainda que seja para negá-lo, como é o caso da esquerda libertária). Todo o resto se enquadra na categoria de “esquerda indefinida”.

A Esquerda “pós-moderna” como “esquerda indefinida”

Segundo Bueno, formam parte da “esquerda indefinida” aquelas correntes sociais que se consideram e são consideradas “de esquerda” sem que em seu ideário e em suas manifestações apareça uma definição de posições em função de “variáveis políticas”. Se identificam em função de variáveis tomadas do terreno artístico, literário, psicológico, social, filosófico ou etnológico-folclórico. Aqui encontramos toda trama de ONGs, grupos feministas, SOS-racismo, coordenadora de gays, lésbicas e transexuais, grupos nacionalistas, etc.

Dentro da “esquerda indefinida”, Bueno distingue três correntes: a extravagante, a divagante e a fundamentalista, contudo, na realidade admite que elas estão profundamente interligadas. A extravagante se caracteriza por variáveis que não constituem parte do campo político (geralmente correntes artísticas). A divagante estaria formada por elementos procedentes de alguma das famílias da esquerda definida, mas que tendem a ultrapassar os marcos políticos e elevar-se para uma esquerda “cultural” e “ética”, uma esquerda profunda, como “consciência da humanidade”. Por fim, a esquerda fundamentalista se caracteriza por critérios preferenciais ou valores muito díspares, mas que se mantêm fortemente associados, e, sobretudo, pela exigência de “educar a partir de valores” (SEUS valores) a juventude a ao povo em geral.

Essa esquerda fundamentalista, ao mesmo tempo extravagante e divagante, está caracterizada, no mínimo, por três eixos de atuação.

  • O eixo circular, caracterizado pelo “multiculturalismo” e a “sociedade aberta”. Tolerância (mas tolerância zero com os “intolerantes”), pacifismo, diálogo e rechaço a qualquer símbolo de nacionalismo canônico (a bandeira), mas, paradoxalmente, apoio à todos os nacionalismos fragmentadores.
  • O eixo radial, caracterizado pelo “ecologismo” e o animalismo. O elemento “animalista” tende a assumir cada vez mais importância, vinculado à correntes veganas, à luta contra a caça, corrida de touros, e, no geral, a qualquer manifestação de “especismo”, que é definido como a dominação “fascista” de uma espécie (a humana) sobre as outras espécies.
  • O eixo angular, é o agnosticismo teológico, o que não o impede de simpatizar com as ideias mais estranhas, desde o Feng Chui até a crença na vida extraterrestre.

Em nosso entendimento seria necessário adicionar um quarto eixo (que poderia estar incluído no primeiro): a luta contra o heteropatriarcado, na qual se dá voz às reinvindicações feministas, às dos homossexuais e transexuais.

Todo o aparato ideológico da esquerda pós-moderna, tanto em sua versão moderada como radical, está de acordo com esse esquema. Não falam da configuração do Estado, nem de relações de produção, nem de dinâmica de classes (isso é, não falam em termos políticos), mas de “progresso”, de “luta contra a exclusão” e de “minorias oprimidas”.

Longe de uma doutrina revolucionária, a mensagem que transmite a esquerda pós-moderna é a de um sermão moralista, com tons de puritanismo.

Referências:
[1] José Alsina Calvés (2011) “La generación del 98. Introducción” Nihil Obstat, revista de historia, metapolítica y filosofía, nº 16, pp. 35-40.
[2] Abbagnano, F. Y Fornero, G (1996) Historia de la Filosofia, vol. IV, Tomo I. Barcelona, Hora SA, p. 113.
[3] De Maeztu, R. (1919) La crisis del humanismo.Los principios de Autoridad, Libertad y Función a la luz de la Guerra. Barcelona, Ed. Minerva. Alsina Calvés, J. (2013) Ramiro de Maeztu. Del regeneracionismo a la contrarrevolución. Barcelona, Ediciones Nueva República.
[4] Dugin, A. (2013) La Cuarta Teoría Política. Barcelona, Ediciones Nueva República.
[5] Marcuse, H. (2010) Eros y Civilización. Barcelona, Ed. Ariel.
[6] Marcuse, H. (2016) El Hombre unidimensional. Barcelona, Ed. Planeta.
[7] Bueno, G. (2003) El mito de la izquierda. Las izquierdas y la derecha. Barcelona, Ediciones Grupo Z.

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