Mudanças na área de propriedade intelectual podem fazer com que a biotecnologia e a farmacêutica saiam cada vez mais do controle dos Estados nacionais; que os institutos de pesquisa fiquem cada vez mais concentrados em países que já hospedam grandes conglomerados; que o investimento em ciência e tecnologia vai ter ainda menos retorno em países de terceiro mundo, bem como fuga de cérebros.
Em 11 de março de 2020, o Covid-19 foi decretado como uma pandemia pela OMS. Desde então, o mundo tem procurado desenvolver medicamentos e vacinas para o vírus. É nesse contexto que surge um intenso debate sobre os rumos da propriedade intelectual.
No começo do ano, o Instituto de Virologia de Wuhan havia solicitado uma patente cobrindo o uso de remdesivir, um antiviral da estadunidense Gilead Sciences. Essa ação foi fortemente criticada internacionalmente, com o entendimento de que a China deveria focar em conter o vírus, e não em buscar patentes, ainda mais de um medicamento que não desenvolveu. A resposta foi se defender clamando ter feito o pedido por interesse nacional.
Após esse episódio, diversas empresas abriram mão de suas patentes relacionadas a terapias, medicamentos e equipamentos que pudessem conter o vírus. Para completar, os países membros da OMS aprovaram uma resolução apoiando a licença compulsória de vacinas e tratamentos relacionados ao Covid-19.
Vale explicitar que a PI, ou propriedade intelectual, é um ramo do direito referente aos interesses do autor sobre a sua criação. Já a patente é o direito ao monopólio de exploração dessa tecnologia por um determinado período de tempo. A lógica é que a falta desse direito desencorajaria os esforços em pesquisa e desenvolvimento, já que sem essa proteção seria fácil copiar a fórmula de um remédio através de engenharia reversa, por exemplo.
Como o direito à patente é uma relação de propriedade, consiste em um privilégio no qual o titular está em posição de vantagem sobre seus concorrentes. No caso da biotecnologia, a eficácia de um tratamento poderia levar a serem cobrados altos preços pelo mesmo. Com isso em vista, o Acordo Sobre Aspectos Comerciais de Direitos de Propriedade Intelectual (TRIPS – Trade Related Aspects on Intellectual Property Rights) previu uma flexibilização: a licença compulsória de patentes.
As licenças compulsórias permitem que indústrias farmacêuticas fabriquem legalmente versões genéricas de medicamentos patenteados durante crises públicas, emergências nacionais e outros casos de extrema necessidade. Para compensar o detentor da patente, as autoridades competentes exigem que os fabricantes paguem um preço considerado justo pelo medicamento.
Então a notícia é de que o caráter urgente de um medicamento eficaz contra o Covid-19 pressiona a indústria farmacêutica e faz com que soluções sejam buscadas para solucionar a questão delicada da proteção patentária, para garantir um maior alcance global à cura.
Contudo, existem ressalvas a se fazer. Uma das soluções defendidas é o agrupamento da propriedade intelectual de forma global para fomentar a criação do fármaco e a redução de seus custos. Mas o que isso significa na prática? Empresas de vários países trabalhando conjuntamente e dividindo lucros e dividendos.
Seria então um passo em direção a uma internacionalização ainda maior da indústria farmacêutica? Não há motivos para pensar o contrário. Se diminui os custos de fabricação, a tendência é essa mesma. Mas isso não significa que os custos de venda também vão diminuir, apenas na fantasia liberal da mão invisível.
O que significa então? Que a biotecnologia e a farmacêutica vão sair cada vez mais do controle dos Estados nacionais. Que os institutos de pesquisa ficarão cada vez mais concentrados em países que já hospedam grandes conglomerados. Que o investimento em ciência e tecnologia vai ter ainda menos retorno em países de terceiro mundo. E uma fuga ainda maior de cérebros.
Toda grande movimentação em torno de uma maior “cooperação” entre Estados, mediada pelos fóruns internacionais vigentes, deve ser vista com cautela.