Escrito por Nicholas Blanford
Falar em Líbano é falar no Hezbollah, o partido político, associação civil e grupo paramilitar que constitui uma das principais forças políticas e sociais do Líbano hoje. Acusado por alguns países ocidentais de terrorista, o Hezbollah tem sido um dos principais baluartes na defesa de muçulmanos e cristãos no Oriente Médio, em sua luta contra o ISIS, a Al-Qaeda, a Frente Al-Nusra e outros grupos terroristas salafistas. Mas como funciona o recrutamento e o treinamento do Hezbollah? Quem pode ser membro? É isso que abordamos aqui.
O processo de adesão ao Hezbollah, a organização de resistência xiita muçulmana de quase trinta anos no Líbano liderada por Hassan Nasrallah, evoluiu à medida que a organização cresceu em tamanho e se tornou mais institucionalizada e entrincheirada dentro da sociedade xiita. Nos estágios iniciais após a invasão de Israel em 1982, o pessoal era recrutado no Vale de Bekaa através de um processo de mobilização em massa ao longo de linhas familiares e clânicas, o que ajudava a preservar a segurança interna, bem como facilitava a inscrição de centenas de combatentes voluntários. No sul do Líbano, os jovens devotos xiitas precisavam de pouco incentivo para se juntarem à resistência nascente, já que eram suas casas e terras que suportavam o peso da ocupação israelense.
Hoje, no entanto, as motivações para aderir ao Hezbollah são mais multidimensionais, misturando observância religiosa, hostilidade para com Israel, e o compromisso xiita com a justiça e dignidade. Em um nível mais prosaico, muitos jovens xiitas gravitam naturalmente em direção a uma organização que ajudou a fortalecer sua comunidade no Líbano e ganhou respeito por suas façanhas marciais ao longo dos anos. “Nossos combatentes são motivados por motivos complexos – tanto pelo patriotismo como por motivos islâmicos”, disse-me o sheikh Khodr Noureddine em 1996, quando era chefe político do Hezbollah no sul do Líbano. “Nossas crenças islâmicas fazem esses jovens se recusarem a aceitar a injustiça. Eles farão qualquer coisa para resistir a Israel. Sei que o Ocidente não entende, mas nossa juventude não pode viver com Israel”.
Recrutas provenientes do sul, que cresceram com uma desconfiança inerente a Israel, vão se deter mais no aspecto da defesa de suas comunidades fronteiriças contra a percepção da ameaça perpétua do Estado judaico.
“É uma honra servir”, disse um combatente veterano do Hezbollah, explicando em 2009 porque ele ainda servia com a Resistência Islâmica, apesar de Israel ter se retirado do Líbano quase uma década antes. “É assim. Se você tem uma casa ou uma vila e alguém poderoso toma conta dela, você tem uma longa luta e depois de um tempo ele lhe cede um quarto. Você luta um pouco mais e então ele desiste e lhe devolve a casa. Você pode pensar que a luta acabou, mas então ele estaciona seu carro na sua vaga de estacionamento do lado fora da casa. Você aceita isto? Estamos no sul porque Israel é como este poderoso usurpador e não há governo para nos proteger e a ONU também não pode nos proteger. É por isso que precisamos da resistência”.
Dada a perspectiva estratégica de longo prazo do Hezbollah e o compromisso de construir uma “sociedade de resistência”, o processo de mobilização e radicalização de seus potenciais recrutas começa desde cedo. Crianças de até seis ou sete anos são encorajadas a participar do movimento juvenil do Hezbollah, um primeiro passo no longo caminho para se tornar um combatente da resistência. As atividades incluem palestras, peças de teatro e eventos esportivos através dos quais os jovens participantes são imersos no meio moral, religioso, político e cultural do Hezbollah. As associações culturais afiliadas ao Hezbollah e as editoras elaboram livros e panfletos e realizam seminários e conferências para difundir o credo da resistência. Entre elas estão a Associação Cultural Islâmica Maaref, o Instituto Imam al-Mahdi e o Centro Cultural Imam Khomeini, que promovem os ensinamentos do Ayatolá Ruhollah Khomeini. Outros institutos produzem materiais que vão desde explicar o conceito de jihad do Hezbollah e promover a hostilidade para com Israel até tratados sobre o papel da mulher na sociedade islâmica e a importância de um estilo de vida saudável. Parte do material é destinado a um público jovem, com livros ilustrados contando histórias de combatentes da resistência ou contos de fadas apresentando israelenses vilões e crianças palestinas e libanesas heróicas.
Durante os meses de férias de verão, uma visão comum nos subúrbios do sul de Beirute são filas de crianças de olhos arregalados sentadas pacientemente nas escrivaninhas em aulas ao ar livre sendo ensinadas o caminho do Hezbollah. Elas são criadas em um ambiente fortemente militarizado, no qual os jovens são encorajados a venerar e emular o combatentes da Resistência Islâmica. Durante a comemoração de Ashoura ou os desfiles anuais do Dia de Jerusalém, crianças pequenas marcham ao lado de combatentes regulares, todas vestidas com uniformes camuflados e carregando rifles de brinquedo, usando fitas de cabeça inscritas com slogans como “Ó Jerusalém, estamos chegando”.
O processo continua na rede nacional de escolas Mustafa, ligada ao Hezbollah, [Nota do Tradutor: A rede de ensino Al Mustafá, na verdade, é internacional e está sediada no Irã] onde os alunos estudam religião e rezam pelos combatentes da Resistência Islâmica. Centenas de jovens a cada ano passam pelas dezenas de acampamentos de verão mantidos pelos Escoteiros de Imam Mahdi, organização administrada pelo Hezbollah, em vales e colinas no sul do Líbano e no norte de Bekaa, onde são imbuídos de uma sensação de fraternidade militar e disciplina repleta de uniformes, desfiles e bandas marciais.
O Hezbollah geralmente não aceita combatentes na Resistência Islâmica abaixo dos 18 anos de idade, mas o treinamento militar básico e a familiarização com as armas começam em uma idade muito mais jovem. Um combatente do Hezbollah, alto e cheio de cicatrizes em seus trinta e poucos anos, a quem chamaremos de “o Chefe”, uma vez me mostrou imagens de vídeo filmadas em seu celular de mais de cinquenta crianças entre seis e nove anos de idade vestidas com o uniforme camuflado marchando por montanhas escarpadas e bosques em um vale do sul do Líbano. As crianças eram filhos de “mártires” – combatentes do Hezbollah mortos em ação – e estavam participando de um exercício de treinamento de estilo militar. Instrutores adultos uniformizados caminhavam ao lado das crianças, ajudando-as a mergulhar em um rio estreito e a subir encostas íngremes e rochosas. Elas manchavam o rosto com terra, e alguns até disparavam algumas balas de uma AK-47, cada uma visando pedras no rio com um instrutor ajoelhado ajudando a sustentar a pesada arma.
“A próxima geração de mujahideen”, disse o Chefe com um sorriso de orgulho paternal.
Além do processo de indução infantil, o Hezbollah emprega recrutadores em todos os vilarejos e bairros onde o partido tem influência para procurar possíveis prospectos entre os jovens locais, homens e mulheres. O recrutador está procurando indivíduos piedosos, disciplinados, modestos, inteligentes, saudáveis e bem-comportados que poderiam se encaixar no estilo de vida do Hezbollah. Jovens homens que ouvem música, bebem álcool, dirigem carros rápidos e flertam com meninas têm poucas chances.
“A idéia é conhecer potenciais recrutas e cultivar uma amizade. Não se chega nele no mesmo momento com uma oferta para se filiar. Você o faz amar o Hezbollah primeiro. Você vende a idéia, então ele pode escolher se quer se juntar ou não”, explicou o Chefe, ele mesmo um recrutador.
Após observar um potencial recruta por um período de meses, até mesmo anos, o recrutador fará sua jogada, perguntando se ele ou ela consideraria se juntar ao Hezbollah. Se a pessoa aceita segue uma fase inicial intensiva conhecida como tahdirat, ou “preparação”, que dura até um ano, na qual os recrutas são ensinados os fundamentos ideológicos do Hezbollah. “Nesta fase, nós lhes damos lições islâmicas, éticas, políticas [e] sociais, como uma preparação, como parte da resistência. Ele viverá em uma atmosfera de religião e fidelidade”, diz o sheikh Naim Qassem, o líder adjunto do Hezbollah.
Nossa Vida Dita Nossa Morte
Os novos recrutas absorvem os princípios da revolução islâmica no Irã, obediência ao wali al-faqih [o chefe de um estado islâmico, de acordo com o sistema de wilayat al-faqih, que defende que a autoridade religiosa preeminente deve ser o governante supremo], e inimizade para com Israel. Eles são ensinados os textos islâmicos de acordo com a interpretação dos clérigos do Hezbollah, e aprendem a buscar a “Grande Jihad” de transformação espiritual para aproximá-los de Deus. “As lições religiosas vem primeiro”, diz o Chefe. “Religião primeiro, antes mesmo de você ver uma arma”.
Um recruta pode ter diferentes razões para se juntar ao partido em primeiro lugar – um desejo de resistir à ocupação, compromisso religioso ou simplesmente à pressão dos colegas – mas perceber a importância da jihad como é ensinada pelo Hezbollah é fundamental para entender o que impulsiona o combatente plenamente treinado e comprometido da Resistência Islâmica.
O sheikh Naim Qassem descreve o mundo como um “lar perecível”, um “lugar transitório de teste e tribulação para o homem”, e como uma pessoa escolhe viver sua vida irá ditar seu destino no futuro. A “Grande Jihad” é a luta espiritual diária dentro da alma carnal para resistir e superar as tentações e vícios da condição humana, a fim de alcançar o conhecimento divino, o amor e a harmonia espiritual. Segundo o Hezbollah, o sucesso na “Grande Jihad” – a luta espiritual interior – é uma condição prévia necessária para empreender a “Pequena Jihad” – a luta exterior, material. A “Pequena Jihad”, ou “Jihad Militar”, se enquadra em duas categorias. A primeira é a “jihad ofensiva”, na qual os muçulmanos podem invadir outros países ou fazer guerra contra outras sociedades com base no fato de que o Islã é a única religião verdadeira. Entretanto, a “jihad ofensiva”, de acordo com a interpretação dos clérigos do Hezbollah, não é considerada aplicável até o retorno do “imã esperado”. A segunda categoria é a “jihad defensiva”, que confere não apenas o direito, mas a obrigação dos muçulmanos de defender suas terras e comunidades da agressão e ocupação. Para o Hezbollah, o chamado para a “jihad defensiva” só pode ser feito pelo wali al-faqih. A campanha de resistência do Hezbollah contra a ocupação israelense no sul do Líbano e seu confronto militar pós-2000 com Israel foi conduzida sob a rubrica de “jihad defensiva” sancionada por Khomeini em seu papel de wali al-faqih, e mais tarde endossada por seu sucessor, o Aiatolá Ali Khamenei.
Assim, os combatentes do Hezbollah são ensinados que quando eles confrontam as tropas israelenses nas colinas e vales pedregosos do sul do Líbano, não estão apenas resistindo à ocupação, mas também cumprindo a obrigação religiosa mais profunda de buscar a jihad.
Central para a observância da “Pequena Jihad” pelo Hezbollah é a cultura do martírio. Para os xiitas, o paradigma da jihad, da resistência e do sacrifício é o Imã Hussein, cuja morte em Karbala contra as forças numericamente superiores de Yazid é a epítome da luta contra a opressão e a injustiça e serve como uma poderosa inspiração e exemplo para as novas gerações de guerreiros xiitas servindo com o Hezbollah. O Hezbollah ensina que o Imã Hussein buscou ativamente o martírio em Karbala, em vez de escolher o engajamento com o exército de Yazid sabendo que, apesar das probabilidades, havia uma tênue possibilidade de sobrevivência.
Um combatente do Hezbollah que tenha avançado na “Grande Jihad” terá se deslocado espiritualmente para além do medo humano da morte, acolhendo-a como um sacrifício em nome de Deus durante a realização da “Pequena Jihad”. Ao contrário do suicídio, que é proibido pelo Islã, o Hezbollah considera o ato do auto-sacrifício como uma demonstração de fé em Deus, distante das preocupações corpóreas e terrenas. Os motivos do martírio são inescapáveis nas bases do Hezbollah, onde ruas e estradas estão alinhadas com os retratos dos “mártires” – combatentes que morreram em batalha – e outdoors com pinturas de mártires caídos entrando em representações exuberantes do paraíso com paisagens ricamente coloridas de colinas verdes, flores selvagens, e rios cristalinos banhados pela luz solar brilhante. A comemoração anual do Dia dos Mártires realizada a cada 11 de novembro (o aniversário do atentado suicida de Ahmad Qassir na sede da IDF em Tiro em 1982) é um dos eventos mais importantes do calendário do Hezbollah. Cada combatente Hezbollah é fotografado para um retrato de “mártir” official ao aderir à Resistência Islâmica. Sua fotografia enfeitará os postes de luz de seu bairro caso ele seja morto durante o dever, e a cada ano ele atualiza uma “carta do mártir”, contendo seus últimos pensamentos e desejos.
Conversas com combatentes comprometidos do Hezbollah sobre o tema do martírio têm uma certa qualidade surreal. Quando conheci Maher, comandante de um setor no sul do Líbano, em maio de 2000, ele mencionou que dois de seus amigos haviam sido mortos dias antes em uma operação dentro da zona de ocupação. Normalmente, se ofereceria uma comiseração educada, mas Maher impediu qualquer expressão de condolências com a mão levantada. “Não tenha pena deles, fique feliz por eles”, disse ele com um sorriso de saudade. “Deus os escolheu para serem mártires e, se Deus quiser, um dia eu também serei martirizado lutando contra os israelenses”.
Maher tinha cabelos castanhos claros em corte militar e uma barba bem aparada, e seus olhos azuis pálidos brilhavam com inquestionável confiança na certeza de suas convicções. Aos trinta e três anos de idade, Maher era um veterano de combate, tendo se juntado à resistência em 1983. Ele estava encarregado de quatro unidades, duas de assalto e duas de apoio. Mas ele também era casado e pai de família; quando o conheci, sua esposa estava grávida de seu quarto filho. Se ele morresse em combate, o Hezbollah sustentaria sua família – uma casa, educação gratuita para seus filhos, assistência médica e uma pensão de cerca de 350 dólares por mês. No entanto, como ele poderia desfrutar da perspectiva da morte quando deixaria para trás uma viúva e quatro filhos sem pai? Maher sorriu novamente, acenando com a cabeça simpaticamente.
“É difícil para você entender porque você não é muçulmano. Minha esposa vai sentir grande alegria e orgulho se eu for martirizado”, disse ele. “O martírio é um conceito religioso e filosófico. O Islã é como o Cristianismo e o Judaísmo no sentido de que, se você seguir a Deus, irá para o céu. Mas no Islã, isso é explicado de maneira diferente. Nascemos para nos familiarizar com Deus. Nosso objetivo de vida é chegar a Deus. Para chegar a Deus, temos que passar do mundo vivo para o próximo mundo. Isto é feito pela morte. Todos nós vamos morrer, mas cada pessoa tem uma escolha de como morrer. A maneira como levamos nossa vida dita nossa morte. De acordo com o Islã, a melhor maneira de morrer é morrer por Deus”.
O combatentes do Hezbollah podem se voluntariar para se juntar à Unidade de Martírio (Istishadiyun), o que significa que eles poderiam ser selecionados para ataques suicidas ou missões particularmente perigosas onde as chances de sobrevivência são baixas. Embora o Hezbollah sempre tenha sido associado na mente pública aos atentados suicidas à bomba, ele conduziu apenas onze operações desse tipo no Líbano durante os anos da ocupação israelense entre 1982 e 2000. Dos onze, apenas quatro foram realizados durante a década de 1990.
“O martírio é uma iniciativa pessoal”, diz Maher. “Um potencial mártir toma sua decisão, depois diz a seu líder religioso [marja’]. O líder religioso decide se o candidato é adequado ou não. Sayyed Nasrallah é o único que pode decidir estas coisas no Líbano. Ele toma a decisão de acordo com as prioridades. Ele avalia se o resultado é digno do ato, e então decide. Depende também da situação no terreno. Um ato de martírio é como uma operação militar”.
Este tipo de martírio é um conceito alienígena na filosofia ocidental, que enfatiza a santidade da vida, mas para muitos combatentes do Hezbollah, buscar a morte é um resultado desejável, que é alimentado e constantemente reforçado pelo ambiente religioso e cultural em que ele vive. Pois ao contrário de um membro de um partido político no Ocidente, o recruta do Hezbollah se submete a um modo de vida que ditará quase todos os aspectos de seu futuro: escolha de amigos, emprego, amenidades sociais e, muitas vezes, até mesmo o casamento.
“Em uma casa você poderia ter um irmão que é comunista, outro que está com Amal e um terceiro que está com o Hezbollah”, explica o Chefe. “Todos eles são irmãos na mesma família, mas para o homem do Hezbollah, o Hezbollah é sua família”. Ele respira o Hezbollah, come o Hezbollah, tudo é Hezbollah”. . . . Nenhum de nossos combatentes se junta porque querem um emprego. Muitos de nós somos pessoas educadas – bacharéis da universidade, professores, médicos. Somos como todos os outros. Queremos viver em paz, mas também queremos viver com dignidade e sem que nossos direitos sejam atropelados”.
Após um recruta ter passado pela fase inicial do tahdirat, ele entrará na segunda fase de indução, conhecida como intizam, ou compromisso, que também dura cerca de um ano, durante o qual os rigores da disciplina partidária são incutidos juntamente com o treinamento militar básico. “Depois disso, depende de suas melhorias, ele poderá passar por outros cursos com níveis mais altos que lhe permitam ocupar cargos dentro da organização”, diz Qassem. “Alguns são graduais e outros são especializados. Pode-se dizer que é como uma universidade”.
Paradoxalmente, apesar dos aspectos de seita do processo de doutrinação e educação, o Hezbollah não está interessado em produzir um exército de robôs descerebrados que se sacrificam cegamente. Um grau de autoconfiança e autonomia é encorajado, desde que os parâmetros de disciplina partidária não sejam violados. Mesmo dentro do Hezbollah, há aqueles que praticam sua observância religiosa mais profundamente do que outros. Falando no contexto da resistência contra a ocupação israelense no final dos anos 90, Nasrallah admitiu que existiam duas categorias de combatentes na Resistência Islâmica: “Combatentes e oficiais cujo objetivo é eventualmente voltar para casa, e aqueles cujo objetivo é o martírio, puro e simples. Estes últimos têm um moral muito superior no campo de batalha, e independentemente do tipo de armas que carregam, sua fé e espírito os torna fortes e firmes e lhes permite dar um duro golpe ao inimigo”.
O longo e intenso processo de instrução religiosa tenta inculcar no recruta a retidão moral e religiosa da segunda categoria à qual Nasrallah se refere. Maher, por exemplo, se encaixava nesta categoria. Criado em um ambiente austero e violento no sul do Líbano e devoto desde a infância, ele não tinha conhecido nada além de resistência e da jihad durante toda sua vida adulta jovem. Maher era um combatente focado para quem o ato de resistir a Israel era considerado uma obrigação religiosa que chegava a prevalecer sobre seu desejo humano de acabar com a ocupação de Israel de sua aldeia natal.
O Chefe, por outro lado, embora piedoso, não havia atingido o mesmo nível de intensidade religiosa que Maher havia atingido. Ele admitiu para mim que sua principal motivação era o desejo de proteger o Líbano de Israel. A educação do Chefe era, de modo geral, secular, e ele tinha sido um atleta talentoso antes de se juntar ao Hezbollah. Sua natureza calma e amigável fez dele bastante popular em seu bairro, razão pela qual o Hezbollah o nomeou recrutador e colocou dezenas de combatentes sob seu comando. O Chefe era um organizador e um líder de equipe e não um buscador resoluto do martírio.
Uma Questão de Convicção
Ainda assim, apesar do árduo processo de indução, não há nenhuma compulsão para se juntar ao Hezbollah. O partido procura apenas aqueles que estão comprometidos sem reservas com sua ideologia e dispostos a seguir a doutrina da wilayat al-faqih, que é um pré-requisito incondicional para se filiar. Os recrutas que permanecem não convencidos após semanas de cursos educacionais são livres para partir.
“O wali al-faqih é o líder, no que nos diz respeito”, diz Qassem. “Seu status no Islã é religioso. Se quisermos ter certeza de que nossas aplicações do ensino de nossa religião são corretas, precisamos conhecer as restrições e as regras que a religião endossa. Ele nos dá essas regras e nosso desempenho político geral. Ele não interfere nos detalhes”.
Como exemplo, Qassem disse que a campanha de resistência contra Israel no Líbano desde 1982 foi religiosamente sancionada pelo wali al-faqih, Khomeini na época. Mas o wali al-faqih não se preocupou com os detalhes táticos de como o Hezbollah conduzia sua campanha de resistência. Da mesma forma, o wali al-faqih, desta vez Khamenei, foi o árbitro final da decisão do Hezbollah de entrar na política parlamentar em 1992. Mas as políticas parlamentares do Hezbollah são deixadas ao partido e não requerem aprovação individual do wali al-faqih.
“Durante este período, o [recruta] terá uma visão que se formará através da informação. Se ele se convencer … ele se tornará um membro. Se ele não acreditar nisso, ele nos deixará. É uma questão de convicção”, explicou-me Qassem. “O Hezbollah tem um código doutrinário intelectual islâmico de direito. Ele considera a wilayat al-faqih como parte de seu sistema. Nós acreditamos na liderança do wali al-faqih. Esta é uma questão religiosa, no que nos diz respeito. Todos aqueles que querem fazer parte do Hezbollah têm que se comprometer com seu código intelectual de direito, e o wilayat al-faqih é parte disso”.
Muitos recrutas recebem pouco ou nenhum salário do Hezbollah durante os dois ou três primeiros anos, e a maioria vai encontrar empregos quotidianos para proporcionar uma renda. Mais tarde eles receberão salários mensais e apoio financeiro para moradia, educação de crianças e necessidades médicas.
Após a guerra de 2006 com Israel, Nasrallah autorizou um pagamento único de US$ 100 para cada combatente Hezbollah e membros de sua família imediata em um simples gesto de agradecimento. A soma foi deliberadamente mantida pequena. “Se dermos Range Rovers a todos eles, eles não iriam querer mais lutar”, observou um oficial do Hezbollah.
O Hezbollah luta por Deus, não por Mammon, mas a liderança do partido sabe pelas experiências dos outros as tentações que surgem quando uma organização está inundada de fundos e pratica uma contabilidade frouxa. A atração do dinheiro pode facilmente entorpecer a ponta afiada do compromisso com a causa. Nos anos 70, os futuros líderes do Hezbollah tinham visto a liderança da OLP se tornar corrupta e preguiçosa quando ela era receptora de fundos substanciais de países doadores estrangeiros. O movimento Amal hoje é ineficiente e inchado, corrompido pelo acesso a fundos estatais para sustentar suas redes de patrocínio – um legado sujo para a integridade da visão original de Musa Sadr.
Espera-se que os recrutas no Hezbollah sejam financeiramente honestos e confiáveis, de acordo com os princípios islâmicos. Anis Naqqash, o primeiro tutor do jovem Imad Mughniyah, lembra-se de compartilhar um táxi de Damasco para Beirute com um jovem combatente Hezbollah que tinha acabado de voltar de uma sessão de treinamento no Irã. Naqqash ofereceu-se para pagar a tarifa de táxi de US$ 15 do combatente, mas o jovem insistiu em pagar por si mesmo. Naqqash se ofendeu e disse a ele: “Que vergonha para você. Eu sou como seu pai. Eu sou um homem de negócios e você é um estudante”. Mas o jovem não cedeu. Mais tarde, Naqqash discutiu o incidente com um amigo no Hezbollah.
“Sim, isto é normal”, disse o homem do Hezbollah. “Nós lhe teríamos dado os quinze dólares para a passagem de táxi. Era impossível para ele guardar o dinheiro para si mesmo”.
Embora os salários possam ser limitados, o membro do Hezbollah sabe que suas necessidades serão atendidas pelo partido, que atua como uma vasta rede de assistência social em um país onde o apoio social do Estado é quase inexistente. Se um combatente Hezbollah sofrer um acidente e precisar de hospitalização mas não tiver seguro ou fundos para ser admitido para tratamento, o partido intervirá e fornecerá a cobertura finaneira e cuidará da papelada. Ouvi falar de um jovem do Hezbollah que lutou corajosamente na linha de frente no sul do Líbano durante a guerra de 2006, que foi recompensado depois com uma doação de $40.000, permitindo que se casasse e comprasse uma casa.
A autodisciplina e a obediência são características integrantes do Hezbollah. Espera-se que os combatentes do Hezbollah obedeçam a todas as ordens pronta e plenamente quando elas forem dadas. Espera-se também que eles se comportem corretamente uns com os outros, bem como com as pessoas fora do partido, um resultado natural da busca bem sucedida da “Grande Jihad”. Os transgressores enfrentam o risco de multa, de ter o pagamento suspenso, ou passar um tempo na própria prisão do Hezbollah nos subúrbios do sul de Beirute.
Durante a fase preparatória, cada recruta é submetido a uma rigorosa verificação de segurança de antecedentes pelo aparelho de segurança interna do Hezbollah. Qualquer pessoa que tenha vivido no exterior por um longo período de tempo, por exemplo, será tratada como um risco potencial de segurança e enfrentará uma grande dificuldade ao aderir. A avaliação de segurança é constantemente atualizada durante a vida subsequente do recruta dentro do Hezbollah. O Hezbollah tem conseguido manter um alto nível de segurança interna ao longo dos anos devido ao aprendizado da autodisciplina de cada recruta e ao desenvolvimento de um senso de segurança. No entanto, o combatente individual do Hezbollah sente o puxão da emoção humana – perigo, ciúme, humor – como qualquer outra pessoa.
Muitos dos combatentes do Hezbollah que falaram comigo não estavam autorizados a fazê-lo, mas alguns deles tinham se tornado amigos meus ao longo dos anos, e outros estavam dispostos a falar sobre as garantias de conhecidos mútuos.
Os homens do Hezbollah tendem a desconfiar de estranhos e são obrigados a relatar qualquer contato com um estrangeiro a seus superiores. Os estrangeiros que aparecem em áreas controladas pelo Hezbollah são às vezes parados e questionados e ocasionalmente seguidos. De vez em quando, ouve-se histórias de turistas estrangeiros insuspeitos que são atacados por homens vigilantes do Hezbollah enquanto tiram fotografias inocentemente nos subúrbios do sul de Beirute. Um recém-chegado ao Líbano, sem dúvida, ficará perturbado, para dizer o mínimo, quando preso por homens corpulentos do Hezbollah ou seguido por um militante que anda de motocicleta enquanto dirige por vilarejos do sul. Mas o pessoal do Hezbollah é geralmente disciplinado e educado, embora firme, ao interrogar um visitante. Com o passar dos anos, eu já passei por toda a gama de procedimentos de segurança do Hezbollah, desde os suaves (ser parado e educadamente questionado por alguns minutos) até o levemente irritante (ser parado, educadamente questionado e ter um rolo de filme confiscado) até o desconcertante (ser parado, educadamente questionado, e fotografado, face a face e perfil, estilo mug-shot, por um oficial de segurança do Hezbollah) para o completamente irritante (ser parado, detido, interrogado, acusado de ser espião, entregue à inteligência militar libanesa, e jogado na cadeia para passar a noite).
Trilhando o Caminho de Ahl al-Bayt
Khodr nem mesmo havia nascido quando Israel invadiu o Líbano em 1982, mas o estudante universitário de fala mansa sabia desde a infância que um dia se juntaria ao Hezbollah e serviria nas fileiras da resistência, assim como seu pai havia feito. Criado em um ambiente piedoso nos subúrbios do sul de Beirute, Khodr tinha doze anos quando entrou no programa juvenil do Hezbollah em 1998.
Seu físico encorpado e seus braços musculosos são prova das horas que ele passa puxando ferro em uma academia local. Mas enquanto ele se mistura com seus amigos xiitas do bairro, mesmo que eles não compartilhem de suas crenças, Khodr não tem apetite para ouvir música, ir a festas, ou geralmente desfrutar da indolência da juventude. “Eu olho para meus amigos e os vejo perseguindo meninas e bebendo, mas no final eu estou rindo e eles estão chorando”, diz ele. “Tudo o que faço é com o Profeta Maomé e o Ahl al-Bayt [a linha familiar do Profeta através do Imã Ali] em mente. Estou trilhando o mesmo caminho”.
Cada recruta passa por um programa de treinamento militar inicial de trinta e três dias, durante os quais os rudimentos da guerrilha são ensinados e o básico do condicionamento físico é alcançado. Durante os anos 80 e início dos anos 90, grande parte do treinamento foi realizado em acampamentos estabelecidos nos vales áridos das montanhas Anti-Líbano no flanco leste do Vale de Bekaa, do lado da fronteira com a Síria. Não havia cobertura terrestre para mascarar as atividades do Hezbollah de jatos e drones israelenses, e os recrutas geralmente dormiam em barracas, cavernas e cabanas. O Hezbollah assumia que a presença de sistemas de defesa aérea – suas próprias armas rudimentares e os mísseis mais avançados da Síria do outro lado da fronteira adjacente – era suficientes para impedir que a Força Aérea israelense atacasse os locais de treinamento.
No entanto, na noite de 2 de junho de 1994, jatos israelenses e helicópteros Apache dispararam no acampamento Ain Dardara ao leste de Baalbek, onde cerca de 150 recrutas estavam dormindo em suas tendas. Os jatos lançaram bombas sobre o acampamento e as canhoneiras dos helicópteros descarregaram suas balas, usando imagens térmicas para localizar os militantes em fugas e os rasgando em pedaços com rajadas de suas armas de 30 mm. Mais de quarenta recrutas foram mortos na batida, a mais profunda no Líbano em sete anos. As unidades antiaéreas do Hezbollah e do exército libanês atiraram cegamente no céu noturno sem atingir nenhuma aeronave israelense, e as baterias SAM sírias permaneceram silenciosas. Foi a maior perda de vidas humanas do Hezbollah em um único incidente, e os líderes do partido foram rápidos em se vingar. “Estamos preparando uma operação que vai surpreender o mundo”, advertiu Hajj Hassan Huballah, um dos principais oficiais.
Seis semanas depois, em 18 de julho, um bombista suicida explodiu uma van cheia de mais de seiscentos quilos de explosivos ao lado do prédio de sete andares da Associação Mutual Israelita Argentina, um grupo guarda-chuva de instituições de caridade judaicas em Buenos Aires. A explosão matou oitenta e cinco pessoas e feriu outras trezentas e demoliu completamente o edifício. O Hezbollah negou responsabilidade, mas para Israel, o bombardeio demonstrou novamente a capacidade e a vontade do Hezbollah de se vingar, em escala global, de ações extraordinárias empreendidas pelos militares israelenses. Não está claro se Israel teria repetido o ataque aéreo de Ain Dardara tendo em vista o retorno dos bombardeios na Argentina, embora o Hezbollah não lhes tenha dado a oportunidade.
Podíamos Ouvir o Chiado do Pavio
Após o ataque de Ain Dardara, o Hezbollah mudou seus procedimentos de treinamento no Vale de Bekaa, mudando para o oeste mais arborizado do vale, o que proporcionava melhor cobertura de solo das aeronaves israelenses. O treinamento, embora tão intensivo e rigoroso quanto sempre, foi conduzido em um nível mais ad hoc, com os recrutas não mais dormindo em locais fixos regulares.
O treinamento militar básico começa com o recruta recebendo instruções para estar em um determinado ponto de encontro em um determinado momento. O recruta não traz nada consigo além de uma muda de roupa íntima e artigos de higiene pessoal. Ele é pego por um microônibus com janelas mascaradas por lençóis pretos de algodão, e junto com alguns outros recrutas começa a viagem para uma área de treinamento no Vale de Bekaa. Embora normalmente leve apenas cerca de noventa minutos para chegar às áreas de treinamento do Hezbollah mais próximas dos subúrbios do sul de Beirute, a viagem para os recrutas geralmente é consideravelmente mais longa, já que o motorista do microônibus segue deliberadamente uma rota tortuosa, dobrando mais de uma vez para desorientar completamente seus passageiros. Quando perto da área de treinamento, os recrutas deixam o microônibus, e para a etapa final da viagem ao longo de caminhos de terra ásperos, eles se sentam escondidos sob toldos de lona na parte de trás de caminhonetes ou grandes utilitários esportivos. Quando forem depositados na encosta de uma montanha junto com talvez mais dois grupos de recrutas de outros lugares no Líbano, nenhum deles terá idéia de onde estão.
A ênfase do primeiro período de treinamento de trinta e três dias é construir condicionamento e resistência. Os recrutas, em lotes de aproximadamente cinquenta e vestidos com uniformes camuflados, são enviados em marchas punitivas através das montanhas rochosas de calcário pesadas com rifles e mochilas cheios com pedras. Algumas vezes eles carregam tubos de munição cheios de cimento para o recoilless B-10 82 mm. Eles recebem um cantil de água por dia, que utilizam para beber e para se lavar antes das orações. Seus instrutores são veteranos de combate experientes, geralmente com mais de trinta anos, que mantêm uma pressão constante sobre seus jovens pupilos. As marchas são aumentadas por subidas de montanha e flexões aparentemente intermináveis.
“Eles me desgastaram”, lembra Khodr de sua sessão de treinamento inicial. “Eu tinha que fazer cinquenta flexões, mas só pude fazer trinta, então eles me fizeram correr de volta para cima da colina. Uma vez, eles nos disseram para tirar as botas e meias e subir uma montanha enquanto disparavam contra nós. Você deveria ver como sofremos. Passei noites em que não conseguia dormir por causa da dor das bolhas e dos músculos doloridos”.
O treinamento ocorre durante todo o ano, independentemente do tempo. Nos meses de inverno, o Hezbollah aproveita as condições nevadas das montanhas para ensinar técnicas de guerra alpina. O treinamento alpino não é tão incongruente quanto poderia parecer à primeira vista. Os picos do Monte Hermon entre o Líbano, a Síria e as Colinas de Golã ocupados por Israel, cenário de duros confrontos na guerra árabe-israelense de 1973, estão cobertos de neve durante cerca de cinco meses do ano. A Unidade Alpinistim da IDF está implantada no Monte Hermon para proteger a estação de inteligência de sinais (SIGINT) em um dos picos mais baixos.
“Quando está muito frio, eu fico longe da água”, diz Khodr. “A primeira vez que me banhei no inverno, não consegui respirar. Passámos uma noite em um campo aberto sem barracas ou sacos de dormir. Passei a noite toda acordado tremendo e tentando ficar um pouco mais quente. Um cara dormindo ao meu lado estava tão frio que se levantou e amaldiçoou e amaldiçoou e depois caiu de volta e foi dormir”.
À noite, cada recruta faz pelo menos uma hora de serviço de guarda, lutando contra o cansaço e tentando permanecer alerta no caso de os instrutores decidirem lançar outra surpresa. “Uma hora de serviço de guarda pode parecer um ano. As árvores parecem estar caminhando na escuridão. Vemos javalis, hienas, e no verão temos grandes problemas com cobras”, diz Khodr.
Os recrutas também têm que suportar um “dia difícil” quando são obrigados a rastejar sobre espinhos ou saltar das alturas. Os instrutores mantêm os recrutas no limite com “táticas de choque”, tais como emboscá-los pelo atirando contra seus pés e disparando RPGs acima de suas cabeças. “Em minha primeira sessão, estávamos alinhados em filas e os instrutores plantaram blocos de explosivos C-4 entre nós presos a pavios. Conseguíamos ouvir o chiado do pavio, mas tínhamos que ficar parados”, diz Khodr.
Ele se lembra de uma ocasião em que ele e alguns outros cinquenta recrutas tinham marchado por várias horas e estavam passando por um vale estreito quando foram emboscados por um grupo de instrutores escondidos nas rochas acima. “Eles detonaram uma bomba à beira da estrada perto de nós. Alguns dos recrutas ficaram em estado de choque. Os caras no meio da coluna se abaixaram enquanto os caras em ambas as pontas investiram colina acima para flanquear os instrutores que estavam atirando em nós com munição de verdade”.
Além de condicionamento e resistência, os recrutas são ensinados a usar o padrão básico de armamento do Hezbollah – o rifles de assalto AK-47 e M-16, a metralhadora leve PKC 7,62 mm, a metralhadora pesada calibre .50, o RPG-7 – até que eles possam desmontar, remontar e carregar cada arma com os olhos vendados. Eles praticam tiro durante o dia e à noite, utilizando munição traçante. Cada recruta recebe uma quantidade limitada de munição e ouve sobre a importância de conservar munição. Disparar tiros singulares bem mirados, eles são orientados, e evitar mudar o rifle para automático: perde-se precisão e desperdiça-se munição.
Os recrutas aprendem como plantar bombas de beira de estrada e minas terrestres. Eles estudam os diferentes tipos de veículos blindados utilizados pelo exército israelense e como disparar RPGs em seus pontos mais vulneráveis.
Os instrutores se empenham na necessidade de manter uma vigilância constante por mais cansados que os recrutas estejam. Rifles deve ser mantidso sempre à mão, inclusive quando dormindo, comendo ou rezando. Os recrutas são ensinados a estar totalmente acordados e prontos para o combate em cinco segundos após serem acordados no meio da noite. As comunicações por rádio devem ser respondidas de imediato. O não cumprimento destas regras básicas resulta em punição, como por exemplo, ser forçado a permanecer em posições de estresse por um período prolongado.
Eles aprendem a arte da camuflagem e da furtividade, vários tipos de rastejamento, e a capacidade de ficar em posição de observação sem se mover por horas a fio. Os recrutas são ensinados a navegar usando mapas e bússolas e instrumentos GPS antes de embarcar em viagens de orientação de cinco dias através das montanhas. Eles aprendem como encontrar sua direção a partir de um simples relógio de sol que consiste em um bastão plantado no chão, ou determinando o norte usando um relógio de pulso. Ocasionalmente, um grupo de recrutas será ordenado a lançar uma batida sorrateira contra outro grupo acampado a alguns quilômetros de distância nas montanhas ou a mantê-los sob observação sem serem vistos.
A Rebelião Contra o Medo
O treinamento militar é obrigatório para cada recruta do Hezbollah, mesmo que ele não pretenda servir nas fileiras da Resistência Islâmica depois disso. Ainda assim, nem todos os recrutas que aspiram a se tornar combatentes passam no programa de treinamento militar. Aqueles que não conseguem lidar com o cronograma punitivo, mas ainda acreditam na causa, podem desistir e são atribuídos empregos no aparelho administrativo do Hezbollah.
Cada combatente do Hezbollah é treinado em suporte médico e leva um pacote de primeiros-socorros para o combate. Em uma unidade de combate de tamanho médio de cinco combatentes, dois serão médicos. O Hezbollah dá grande importância ao tratamento médico no campo de batalha, em parte para garantir que meses de treinamento não sejam desperdiçados e que os combatentes vivam para lutar em outro dia, e em parte para fins de moral – um combatente do Hezbollah pode, em última instância, buscar o martírio na batalha, mas ninguém acolhe uma morte prolongada na lama de algum vale da linha de frente porque seus camaradas não possuem nem o kit nem o conhecimento para lidar com ferimentos. Além disso, qualquer cadáver deixado no campo de batalha poderia ser recuperado pelas tropas israelenses e tornar-se uma carta nas mãos de Israel durante qualquer futura negociação de troca de prisioneiros.
O Hezbollah oferece até mesmo um curso de treinamento em guerra nuclear, biológica e química, no qual combatnetes aprendem a lidar com as dificuldades do combate com roupas de proteção grossa, botas e luvas e com a visão obscurecida por máscaras de gás.
Nem é tudo trabalho físico; os recrutas realizam exames escritos e práticos no campo sob o olhar atento de seus treinadores.
Embora as áreas de treinamento estejam localizadas em vegetação rasteira densa e sob a cobertura de árvores, os “observadores do céu” estão constantemente atentos à aproximação de jatos israelenses ou veículos aéreos não tripulados (UAVs). Cada área de treinamento é protegida por unidades de defesa aérea armadas com armas antiaéreas e mísseis de ombro.
A fase inicial de treinamento é apenas a primeira de muitos no curso da carreira de um combatente. Como estudante universitário – o Hezbollah paga algumas das mensalidades – Khodr pode escolher quando participar de sessões de treinamento e cursos de atualização no Vale de Bekaa mesmo depois de optar pelo treinamento especializado em armas anti-tanque.
Quando o recruta tiver completado as etapas iniciais de instrução religiosa e treinamento militar para a satisfação de seus superiores, ele terá ganho um nível maior de confiança e poderá então ingressar nas unidades específicas ou seguir certas disciplinas militares avançadas como o curso de atirador de elite, o de mísseis anti-tanque, o de comunicações ou de explosivos. Apesar de haver flexibilidade em permitir aos recrutas selecionar sua área de especialização, os comandantes do Hezbollah às vezes os orientarão para unidades que estão experimentando uma escassez de mão-de-obra, ou os encorajarão a seguir certas disciplinas de acordo com a educação e o caráter do recruta.
“Temos um curso de treinamento gradual. Ele é variado de acordo com a especialização”, diz Maher, o comandante do setor na Resistência Islâmica. “Estudamos os pontos fortes de cada recruta, física e mentalmente. Se ele é bom em física, então estudará trajetórias [para artilharia]. Se ele for bom em química, então ele estudará explosivos. Em linha com seu treinamento básico, eles também recebem treinamento em suas habilidades”.
O programa de treinamento militar empreendido por cada recruta da Resistência Islâmica não só os prepara para futuras operações de combate, mas também ajuda a construir o esprit de corps, um recurso importante no campo de batalha além de um profundo compromisso com a fé islâmica. Os sucessos militares do Hezbollah, especialmente durante os anos 90, ajudaram a transmitir entre os quadros um sentimento de orgulho fraternal e comunitário, de realização e empoderamento, sentimentos que também inspiram novas gerações de voluntários a aderir ao partido.
O treinamento especializado geralmente ocorre no Irã, ou às vezes na Síria. O Vale de Bekaa é muito pequeno e de fácil acesso pelas aeronaves de reconhecimento israelenses para treinamento em sistemas de armas de maior escala, como foguetes de artilharia e sistemas de defesa aérea. Aqueles em treinamento no Irã geralmente viajam para Damasco, depois embarcam em vos para Teerã antes de serem transportados para um dos vários campos de treinamento dirigidos pela Força Quds da Guarda Revolucionária Iraniana perto de Kuraj, Isfahan, Qoms, ou Teerã. Os combatentes podem participar de vários cursos no Irã, com duração de várias semanas cada um. Os treinadores são instrutores do Hezbollah em tempo integral, veteranos que já deram provas em combate no sul do Líbano e compartilham a mesma bagagem cultural e a mesma língua árabe dos recrutas.
Os recrutas na unidade das Forças Especiais do Hezbollah, o elemento de combate de elite da Resistência Islâmica, suportam um curso intensivo de três meses dividido em dois programas de quarenta e cinco dias com uma pausa de cinco dias no meio. Enquanto a maior parte dos combatentes do Hezbollah são de meio período, ocupando postos de trabalho diários ou frequentando a faculdade e a universidade, os quadros das forças especiais são combatentes em tempo integral que treinam incansavelmente. Eles não só são combatentes altamente motivados, como também são a encarnação dos valores religiosos e culturais que compõem o caminho do Hezbollah. Mesmo dentro das fileiras geralmente homogêneas da Resistência Islâmica, os combatentes das Forças Especiais tendem a se destacar. A nível pessoal, eles são geralmente educados e modestos, com um senso de humor tranquilo, mantendo um nível de reserva e distância diante de estranhos.
O Hezbollah acredita que a incessante instrução religiosa e ideológica cria um combatente muito superior a seu número oposto no exército israelense e ajuda a superar as deficiências materiais da organização em tecnologia, armas e fundos, em comparação com Israel. Não importa que Israel tenha tanques Merkava, bombardeiros F-16 fighter e helicópteros Apache; o combatente da Resistência Islâmica é ensinado que Deus está do seu lado, uma inigualável afirmação da santidade da causa e supremo garantidor de um eventual triunfo sobre o inimigo. Além disso, o Hezbollah acredita que sua cultura de martírio – esta “rebelião contra o medo”, como Sayyed Mohammed Hussein Fadlallah uma vez a colocou – impõe ao combatente individual um nível inigualável de bravura, pelo menos no sentido secular da palavra. Afinal, como se pode derrotar um exército de combatentes que acredita que sua luta é sancionada por Deus e onde nenhum deles tem medo de morrer em batalha?
Os líderes do Hezbollah sustentam que é a dimensão psicológica do combatente indivíduo, e não o equipamento e as armas à sua disposição, que está no coração dos triunfos do partido no campo de batalha. “Este grupo de combatentes não vai à guerra para flexionar seus músculos militares, dar um golpe publicitário ou para obter vantagens materiais; eles lutam e fazem jihad com sérias intenções e uma profunda convicção de que a única maneira de recuperar seu território usurpado é travando uma guerra contra o inimigo”, explicou Nasrallah.
Enquanto outras organizações militantes islâmicas que operam ao redor do mundo também tiram direção do Corão e perseguem a jihad, o shaykh Naim Qassem insiste que é a qualidade da fé do combatente da resistência que é a base da “particularidade excepcional” do Hezbollah.
“Primeiro, [é] a fé no Islã e o que isto significa em conexão com Deus, o exaltado, e alcançar um estado moral que dá a alguém autoconfiança, força, esperança para o futuro, prontidão para sacrificar [a si mesmo] . . desenvolvimento, e auto-aperfeiçoamento. Isto é algo essencial que temos”, disse-me ele.
O segundo componente, Qassem continua, é “prontidão para o martírio” e um entendimento de que “o martírio não encurta nem prolonga a vida porque o momento da morte é predestinado por Deus. . . . Como o resultado deste martírio é uma recompensa divina no céu, isto é algo bastante importante quando se trata de mobilização, especialmente que temos líderes históricos que apresentaram este exemplo, como o Profeta Maomé, o Imã Ali, o Imã Hussein e outros”.
A terceira vantagem é a qualidade e a integridade da liderança do Hezbollah, acrescenta Qassem, citando o martírio de Sayyed Abbas Mussawi em 1992 e do filho mais velho de Nasrallah, Hadi, em combate em 1997, como exemplos da disposição da liderança de ficar na mesma trincheira que o combatente comum.
A combinação destes três ativos – fé no Islã, prontidão para o martírio e uma liderança “honesta, confiante . . esclarecida” – garante que as “capacidades [materiais] limitadas ou potenciais [de um ator não-estatal] se tornem de valor”.
“Imagine a metralhadora individual com fé em Deus e prontidão para o martírio e uma fé e interação com a liderança, e então você tem uma pessoa de grande poder que não teme a morte”, explica Qassem. “Isto difere do inimigo do outro lado que faz muitos cálculos [para se proteger]. Então nossa metralhadora se torna mais poderosa do que a artilharia deles. Esta questão moral é bastante essencial”.
Fonte: The Cairo Review