Escrito por Antonin Campana
O pensamento político moderno se funda no mito do “contrato social”, a noção de que indivíduos abstratos, livres e racionais teriam “entrado em acordo” para constituir uma sociedade, abrindo mão do caráter ilimitado de seus supostos “direitos naturais” em prol de segurança ou da garantia de respeito por esses “direitos”. As sociedades constituídas com base nesse mito são Estados supranacionais, que ignoram as pertenças de sua população e a enxerga como um amontoado de cidadãos atomizados. Esses Estados fundados no contrato social são os principais responsáveis pela promoção do globalismo e pelo impulso de constituição de uma sociedade sem fronteiras. Não obstante, a pandemia atingiu mais duramente esses Estados.
Nossas sociedades ocidentais foram construídas, ou pelo menos afirmam ter sido construídas, em torno de um “contrato social”. Essas sociedades contratuais seriam o produto de uma livre reunião de indivíduos que decidiram “fazer sociedade” em torno de valores universalmente compartilhados por toda a espécie humana, seja qual for a origem, raça, religião e cultura das pessoas que compõem a espécie humana.
O Contrato Social como Fundamento
Sabemos que esses “valores”, que se diz derivar da natureza humana, na verdade, mais certamente, das ilusões filosóficas do século XVIII, são os que sustentam o “pacto republicano”, o contrato social da República dita “francesa”. Graças ao contrato social, ou pacto republicano, uma sociedade pode se organizar e funcionar com pessoas de todo o mundo, pois os valores e princípios que regem esta organização e funcionamento derivam da natureza humana universal, e não de qualquer cultura em particular. Assim, uma sociedade baseada nos direitos humanos naturais (o direito à liberdade, à igualdade, à propriedade) seria aceitável para todos, pois não contradizeria as aspirações essenciais de ninguém. Os flautistas de Hamelin simplesmente se esqueceram de definir o que significava “liberdade”, “igualdade” ou “propriedade”…
De qualquer forma, os pensadores do “contrato social” previram, contudo, que alguns parceiros não respeitariam a sua parte do contrato e, por exemplo, infringem a propriedade de outros parceiros. Uma punição legítima é prometida àquele que não respeita a “lei social”. Assim Rousseau fala de “criminosos” e “malfeitores” que, violando o “tratado social”, merecem a “pena de morte”!
Observar-se-á que as sociedades que se pretendem fundadas em um contrato social são sempre sociedades supranacionais. Isto é lógico, pois não são nações que estão unidas pelo contrato, mas indivíduos de todas as nações. Como já foi dito, a origem nacional desses indivíduos é irrelevante, uma vez que o contrato não se baseia em especificidades nacionais, mas na natureza humana e nos direitos inerentes a ela. O indivíduo associado torna-se um “cidadão” e o conjunto de indivíduos associados (o “corpo de associados” como Sieyès o chamou) torna-se, dependendo do contexto, um “corpo político”, uma “república” ou uma “nação”. Ao contratar, o indivíduo ganha, assim, cidadania e nacionalidade. Mas aqui, cidadania e nacionalidade se fundem: todos os cidadãos franceses são automaticamente de nacionalidade francesa.
Cidadania/Nacionalidade
Pelo contrário, as sociedades que não querem se basear em um “contrato social” ou são “mononacionais” (Japão, Coréia…) ou “multinacionais” (Rússia, China, Sérvia…). Aqui, não são indivíduos associados que formam uma empresa, mas uma “nação” histórica, no sentido étnico do termo, ou mesmo, em alguns casos, várias “nações”. Quando várias nações compõem a sociedade global, o Estado multinacional reconhece cada uma delas (ao contrário do Estado supranacional, que as nega) e distingue cuidadosamente entre cidadania (pertença a um Estado) e nacionalidade (pertença étnica a um povo). Um cidadão russo pode assim ser um cidadão russo, tártaro ou judeu. Um cidadão chinês pode ser de nacionalidade han, mongol ou tibetana. Um cidadão sérvio pode ser de nacionalidade sérvia, húngara ou cigana.
A geopolítica dos Estados supranacionais projeta as ilusões do contrato social sobre o mundo. Esta geopolítica simplista apreende as nações como se fossem indivíduos. Propõe-se, portanto, a uni-los, atomizados, em uma única sociedade planetária, com base em valores e interesses que considera universais e aceitáveis para todos, para além das diferenças religiosas, culturais e políticas que especificam cada uma delas. Assim, por exemplo, os direitos humanos ou a necessidade de “salvar o planeta”. Logicamente são os Estados supranacionais que criaram instituições supranacionais como a ONU, a OMS ou a OMC, assim como as principais instituições políticas com vocação supranacional como a União Européia. O ato de fé dos Estados supranacionais é que é possível estabelecer uma sociedade global que esteja organizada e funcione de acordo com valores e princípios aceitáveis para todas as sociedades particulares, logo se dissolvendo em uma sociedade planetária unificada sob um Estado supranacional global.
Por causa de sua construção, história e herança cultural, os Estados nacionais e multinacionais não podem aderir a tais fantasias. Mais uma vez, é de acordo com a ideologia do “Contrato Social” que os Estados supranacionais julgam esta recusa. Estados nacionais e multinacionais são vistos como Estados que não respeitam o “tratado social” universal ou as “leis internacionais”. São “Estados párias” ou Estados criminosos que justificam, à maneira de Rousseau, as sanções da “comunidade internacional”, ou mesmo a sua “intervenção” militar.
A Crise Sanitária que estamos vivendo traz um novo elemento
Por um lado, ela confirma a fragmentação e a iminente explosão dos Estados supranacionais. Pela simples aplicação de seus princípios fundadores, eles substituíram sociedades heterogêneas por sociedades homogêneas. No entanto, na Europa, a crise sanitária revela o abismo que separa as populações não indígenas das populações indígenas, mas também as tensões e o separatismo de facto das “zonas sem lei”. Mesmo nos Estados Unidos, a idéia de secessão parece estar aproveitando o coronavírus para se espalhar ainda mais na mente das pessoas. Em suma, “no interior”, como sabemos desde os ataques terroristas, o contrato social está em uma situação de fracasso. Por outro lado, Estados nacionais e multinacionais estão se mostrando muito mais eficazes na contenção da epidemia do que estados supranacionais. Deve-se lembrar que 90% das mortes no mundo são registradas nos Estados supranacionais da Europa Ocidental e dos Estados Unidos. Pior, talvez, os Estados supranacionais se vejam obrigados a renunciar aos princípios que vêm proclamando até agora: estão restabelecendo fronteiras e (por enquanto) rompendo qualquer desejo de associação supranacional. Geopoliticamente, “no exterior”, o contrato social está assim, aí também, em uma situação de fracasso.
Ainda é muito cedo para dizer, mas pode ser que o coronavírus venha a pulverizar a ideologia do contrato social. Se assim fosse, os Estados supranacionais sofreriam um colapso que, devido à sua heterogeneidade étnica, seria pior do que o colapso da URSS. Eles deixariam as sociedades que dominam em ruínas. Entretanto, parece improvável que os líderes dos Estados supranacionais admitissem a derrota tão facilmente quanto os da URSS. Os soviéticos ainda tinham um senso de interesse público que os oligarcas não possuem. As críticas à Rússia e agora à China, abertamente acusadas de terem fabricado o vírus e causado o colapso da economia mundial, sugerem estratégias conflitantes. Trump liga o coronavírus a um laboratório chinês e já está ameaçando a China com taxas aduaneiras punitivas. Tudo isso com o risco de uma guerra que não seria apenas econômica? Nada é impossível, nem mesmo uma guerra de Estados supranacionais contra Estados multinacionais russos e chineses. Devemos nos ater aos fatos: durante dois séculos o “Contrato Social”, um contrato com o diabo, foi assinado com o sangue do povo. O “Contrato Social” sela a morte dos povos e o surgimento de multidões. Para a oligarquia que governa os Estados supranacionais, os povos não existem mais. Há apenas números e cifras nas linhas. Portanto, o que importa se existirem algumas linhas a mais ou a menos?
Fonte: Ligue du Midi