Ambientada na Alemanha pós-Muro, a película aborda o contraste entre o velho mundo socialista e os valores liberais da sociedade capitalista que emergia.
Que a comédia-dramática do início do século, Good Bye, Lenin! (2003), trata-se no fundo de um ode às democracias-liberais e ao primeiro-mundismo unipolar que ia se desenhando mundialmente com o esgotamento do bloco comunista, não é necessário demonstrar com precisão. Mas se, por um lado, aquilo que poderíamos denominar de um “consenso ocidental”, manifesto num anticomunismo sutil (que, na realidade, é um anti-qualquer-coisa-que-não-seja-o-liberalismo-político), é um pressuposto da película, por outro lado, também é verdade que tal aspecto não diminui o desdém com que o filme fotografa os valores liberais que se fixavam com a queda do Muro.
Deng Xiaoping dirá com precisão: ao se abrirem as janelas, junto com o ar fresco entram também as moscas. De onde se segue que a dicotomia contemporânea entre Muros e Pontes (popularizada pela afirmação anti-trumpista com um quê de demagogia do Papa Francisco) não possui qualquer significação do ponto de vista ético e axiológico: muros, sob a forma de represas, protegem vilarejos da brutalidade das águas – pontes podem vir a ser a via de acesso para tanques de guerra, e por aí vai. A funcionalidade orgânica de um ou outro depende muito mais da finalidade desejada do que de um suposto caráter de pureza inata – como quer nos fazer crer o ethos cosmopolitista liberal e globalista.
Em linhas gerais, portanto: ao caírem os muros, sai o monocromatismo estético da “Arte Proletária” estatal e sub-estatal – entra a cultura pornográfica e a estética pornô objetificante. Sai a monotonia alimentar – entra a Coca-Cola, o Burger King, o MC Donald e a carreta da cancerogenia. Sai a devoção à pátria e as cantigas de devoção ao país – entra o culto ao consumo e o espírito festivo, pseudo-rebelde e pseudo-subversivo, das juventudes desenraizadas. Sai o totalitarismo comunista – entra um novo totalitarismo: um Terceiro Totalitarismo, nas palavras de Aleksandr Dugin.
Mais de 50 anos se passaram desde a queda do Muro de Berlim narrada no filme e podemos dizer que, desde então, várias versões do Muro foram sendo derrubadas aos poucos, em diferentes países. O Verão chegou para muitos povos e as janelas foram fatalmente abertas. Entraram as moscas. Mas ainda não vimos o ar fresco – o prometido ar fresco. Fomos convidados, ou melhor, convocados a abandonar nossas “velhas superstições”, nosso amor ao nosso solo, aos nossos ancestrais, às nossas tradições, costumes, religiões, raízes e riquezas culturais. Não obstante, o que recebemos em troca foi terapia de choque neoliberal, invasões imperialistas, bombardeios humanitários e uma imposição vertical e horizontal de um modelo de representação de mundo que, rigorosamente, fez de nossas casas verdadeiras fábricas de neuróticos e suicidas. Em suma: a barbárie comunista se foi. A estátua de Lênin – como na película – saiu voando para fora. E o que ficou foi a barbárie do Capital, estruturada em torno do bezerro de ouro do Mercado – o monumento simbólico à ruína das civilizações humanas que persiste em ficar.
Mais de 50 anos se passaram desde a queda do Muro de Berlim narrada no filme e nunca precisamos tanto de muros. Porque um mundo civilizado pressupõe as civilizações como protagonistas. E o governo das civilizações sobre si mesmas, isto é, o domínio dos povos sobre seus próprios destinos históricos indica necessariamente a existência de muros, de limites, de circunscrições territoriais onde cada um deles seja capaz de cultivar e fazer germinar suas próprias mitologias políticas, suas próprias psicologias, suas próprias formas de organização sócio-política, suas próprias peculiaridades e singularidades.
Good Bye, Lenin! é um filme que ensaia todas essas problematizações em um nível micro. Ao se ver obrigado a esconder de sua mãe – recém-desperta de um estado de coma – os eventos que se sucederam durante sua hibernação, teatralizando um mundo supostamente idílico que já não existia mais, Alexander buscava tão somente blindá-la do impacto da chapa de aço quente sobre a água fria (por mais que nosso protagonista tampouco acreditasse nas potencialidades projetivas da finada República Democrática Alemã).
Como eu dizia, a dicotomia entra Muros e Pontes é despida de sentido. E deste modo, para nossa própria sobrevivência, precisamos de novos “Muros de Berlim” – claro, caso queiramos que a sociedade futura seja revestida de cores, tonalidades e matizes, pitada com o pincel civilizacional dos povos. Caso contrário, o que nos aguarda é a distopia liberal-capitalista: cinza, pós-humana (“a humanidade sem Dasein” de que fala Dugin), anti-humana, imersa na poluição físico-espiritual, no aniquilamento das identidades orgânicas e na super-exploração do homem pelo homem.