Após a derrota eleitoral municipal nas últimas eleições, a esquerda brasileira ensaia uma “autocrítica”, mas sem sinceridade alguma.
Agora a moda na esquerda liberal-progressista é criticar o espantalho do “identitarismo”. Ninguém mais é o pai da criança.
Todos os paladinos do tal “identitarismo” agora são os seus principais críticos. “Descobriram” que o “identitarismo” era aquilo que prejudicava eleitoralmente a esquerda.
Em primeiro lugar, você tem aí o fenômeno óbvio do “gatekeeping”. É semelhante com a pandemia. Todos os jornalistas que eram os carrascos dos céticos passaram, nos últimos meses, a se posicionar como “vanguarda” na revelação de “efeitos colaterais” e “ineficiências” de vacinas cuja obrigatoriedade eles consideravam, pouco antes, questão de vida ou morte para o planeta.
É assim, agora, com as pautas do liberalismo pós-moderno. Os seus críticos e opositores foram demonizados, anatemizados e exorcizados. Quem se levantou contra as narrativas e técnicas progressistas foi cancelado e silenciado.
E agora, os mesmos que eram os seus principais defensores, se apresentarão como seus “críticos autorizados”. Onde não havia nenhuma crítica possível, agora haverá a “crítica politicamente correta” do liberalismo pós-moderno.
O controle dos fluxos de informação e a garantia do monopólio sobre esses fluxos é ainda mais importante do que o conteúdo informacional específico. “Se a crítica é inevitável, que ela seja nossa”. Essa é a lógica desse tipo de gatekeeping.
É por isso que os principais críticos do “identitarismo” à esquerda são, agora, personagens como Marcia Tiburi e Jessé Souza, entre outros. Em breve provavelmente até somarão a isso Djamila Ribeiro e Silvio Almeida. Todos juntos contra o “identitarismo”.
Em segundo lugar, a preocupação da esquerda é exclusivamente com o discurso, não com o projeto. O que é objeto de suas reflexões é como desenfatizar as pautas liberal-progressistas em período eleitoral para, estando no poder, avançar com elas silenciosamente.
Isso tende a ter baixa eficácia porque existe, já, tamanho ranço em relação à esquerda no Brasil que apenas umas poucas pessoas deixarão de lado as suas desconfianças para votar num candidato de esquerda apenas porque ele não fala em linguagem neutra.
Aliás, a normalização do conservadorismo aponta para o aprofundamento do conservadorismo. Boa parte dos brasileiros hoje não querem apenas que não haja educação com linguagem neutra, eles empurram para a revogação de todo o arcabouço legislativo e jurídico de teor liberal-progressista dos últimos 10 anos.
Finalmente, esse fenômeno reforça os motivos pelos quais eu não usei, sigo não usando e sou contra o uso do termo “identitarismo” com a conotação que ele tem hoje.
Como eu já apontei antes, o colapso das narrativas de pretensão universalista, típicas da Modernidade, abriu o caminho para reflexões identitárias. Identitarismo, repito, não é sobre “linguagem neutra”, sobre “mil gêneros” ou sobre “racismo” – mas sobre o lugar que se ocupa no mundo em distinção com o Outro.
Onde houver reconhecimento da existência de um “Outro”, emerge a reflexão sobre a Identidade. E onde ela não existir é porque estamos diante de um projeto que tenta se impor como norma para tudo e todos; ou seja, diante do globalismo.
Nesse sentido, quando refletimos sobre o que significa “ser brasileiro”, estamos mergulhados no identitarismo. Quando se pensa o lugar da Cristandade vis-à-vis outras religiões; quando se reflete sobre a singularidade do pertencimento ao mundo ibero-americano; quando se cultiva uma preocupação com a “masculinidade” (ou a “feminilidade”); tudo isso é reflexão sobre a Identidade e, portanto, identitarismo – especialmente quando aponta para repercussões políticas.
O argumento de que esses debates “criam divisões na sociedade” é absurdo porque a sociedade já está objetivamente e visivelmente dividida por natureza. Ao contrário, é necessário lavagem cerebral para não enxergar o “Outro” dentro da própria sociedade brasileira. O jogo da Pátria, porém, é garantir que a percepção do “Nós” seja mais forte que a percepção do “Outro”.
O problema fundamental da esquerda liberal-progressista não é pensar em termos de identidade e diferença, mas especificamente trabalhar no sentido da corrosão das identidades tradicionais (associadas a um “mal” heteropatriarcal, branco, cristão, etc.) e no fortalecimento de identidades contrapostas e sectárias – indo ao ponto do relativismo identitário, da invenção artificial de identidades, cuja aceleração aponta para a dissolução de todos no Nada.
É por isso que essa esquerda se sente bastante confortável também no anti-identitarismo. A dialética identitarismo/anti-identitarismo pode ser facilmente navegada por essa esquerda porque as fraturas identitárias são meios para o mesmo fim universalista e cosmopolita.