A cegueira dos especuladores – aliada ao desespero social brasileiro – é tão grande, que sempre que se fala em Bitcoin, muita gente não consegue nem ao menos distinguir se está se falando para um público de investidores ou se está se falando a partir de uma perspectiva social e política.
Abordaremos, aqui, o Bitcoin em sua função social e política, ou seja, este não é um texto sobre como você pode ficar rico ou sobre se o Bitcoin é vantajoso, ou não, do ponto de vista dos investimentos. Se for apenas isso que lhe interessa, não perca seu tempo aqui:
PROPOSTA FRACASSADA:
A proposta original do Bitcoin era a de servir como moeda alternativa. Inicialmente, ele realmente apresentava características comuns com as moedas alternativas, como o fato de ter sido criada para o uso de pessoas com pouco poder aquisitivo – no caso, pessoas que, em geral, se enquadravam no perfil “nerd antissocial”, que dependiam da mesada de seus pais e a utilizavam em trocas de serviços e produtos entre si, criando, então, a poupança da moeda em que receberiam sua mesada (no caso, dólares).
O Bitcoin, assim, pegou carona no hype das “economias compartilhadas”, vendendo uma promessa de alternativa às moedas oficiais dos governos. Em determinado momento, porém, ao invés de uma moeda alternativa (para o uso entre de “nerds antissociais”), a moeda virou papel especulatório, e o público comprador do Bitcoin, bem como seus apologistas, hoje, já possui um perfil completamente distinto de seus usuários originais. Isso não é nenhuma novidade, isto é, uma coisa surgir com a aura underground e se transformar em mainstream, tendo o seu uso comercial difundido por grandes corporações. Em parte, a retórica “antigoverno” é culpada disso, pois não questiona em nada as ações das entidades privadas, ao mesmo tempo em que, no mundo real, são essas grandes entidades financeiras privadas que sempre estiveram por trás de várias crises – crises que, ao que parece, vão migrar para as carteiras em bitcoins em 2018. E então, quando as grandes financeiras e bancos aderirem à moeda, a mesma será regulada por governos que não permitem a quebra destes bancos ou destas grandes financeiras.
FINANCIANDO UMA NOVA BOLHA NORTE-AMERICANA COM POUPANÇA EXTERNA?
A crise de 2008 tem ligação com a especulação imobiliária nos Estados Unidos. Imóveis eram comprados sob a expectativa de serem valorizados amanhã. Nesta lógica, basta trocar o “possuir imóveis nos EUA” por “possuir bitcoins” para se visualizar um roteiro parecido. A hiper-valorização fazia com que títulos diversos, ligados a esse mercado, fossem usados como moeda de negociação em mercados de derivativos (mercados futuros) e em rolagem de dívidas: destino que o Bitcoin está tomando, nesse exato momento, com a entrada de grandes financeiras neste mercado. Aqui cabe até dar algum pano para manga para teóricos conspiracionistas, já essa corrida ao Bitcoin coincide com a subida dos juros nos Estados Unidos realizada por Donald Trump, além de outras medidas para atrair poupanças externas. Trump também removeu mecanismos de regulação de mercados financeiros criados na era Obama.
DESREGULAÇÃO PARA O QUÊ MESMO?
A crise de 2008 foi antecipada pela grande desregulação dos mercados financeiros realizada pela administração Bush. E o Bitcoin, segundo os seus adeptos, é livre de regulação. No entanto, sabemos que os mercados de derivativos/créditos prime, que geraram a crise de 2008, eram altamente desregulados.
Grandes financeiras e especuladores causaram a crise – essas mesmas que agora migram para o Bitcoin.
DIFERENÇAS ENTRE O BITCOIN E AS MOEDAS ALTERNATIVAS DE VERDADE:
POUPANÇA EXTERNA:
(a) Em moedas alternativas de verdade, como o Palmas, utiliza-se da mesma para a compra e venda de mercadorias entre uma comunidade e, quanto mais isso é feito, menos reais (R$) são usados, criando, assim, uma poupança da moeda oficial do país e aumentando o poder de compra nas duas moedas. Passa sobrar reais (R$) na comunidade, que são usados pelas pessoas para comprar produtos e serviços não produzidos por aquela comunidade: a comunidade, em si, passa a ser mais rica. Já no (b) Bitcoin, as pessoas a, b e c não trocam bitcoins entre si via aquisição de produtos e serviços, mas se limitam a vender e comprar em dólar: o aumento do poder de compra depende do próprio crescimento da bolha e da expectativa de crescimento futuro: esse é o “enriquecimento” do Bitcoin, que não gera valor comunitário. Se várias pessoas de uma mesma comunidade adquirem bitcoins, não há criação de poupança da moeda oficial de seus países, mas, ao contrário, cria-se déficit dessa moeda.
LAÇOS COMUNITÁRIOS E CRIMINALIDADE:
(a) Nas experiências de moedas alternativas, os laços comunitários são reforçados. O aumento da atividade comercial gera empregos e o maior volume de transações comerciais inter-comunitárias reforça e crias novos laços sociais locais: a comunidade passa a se “conhecer melhor”. Esse ciclo de “virtuosidade” e de geração de empregos reduz a criminalidade como um todo, pois há o incentivo à participação na economia local e, portanto, à inclusão social. (b) No caso do Bitcoin, seus adeptos se veem como concorrentes, uns contra os outros, sendo crescente a tendência ao secretismo, partindo do princípio de que controle e posse de informação são vitais em mercadores de teor especulatório. Quem já lidou com corretores de imóveis, percebe rapidamente a semelhança do perfil com especuladores profissionais. Quem não aderir ao perfil será um perdedor nessa corrida. Não se cria valor comunitário, mas uma guerra de todos contra todos, bem como a divisão entre perdedores e vencedores. Há um flerte com contrabando, lavagem de dinheiro e usos ilícitos (na falta de palavra melhor).
DESENVOLVIMENTO SOCIAL:
(a) É notável o desenvolvimento social e a melhora nos índices de qualidade de vida nas comunidades que adotam moedas paralelas. (b) No caso do Bitcoin, não se existia noticia ainda de bairro, comunidade ou país que tenha seu desenvolvimento social ligado à aquisição de bitcoins.
JUROS E CIRCULAÇÃO: (a) Moedas alternativas têm como meta o máximo de circulação possível, permitindo, assim, a criação de poupanças de outras moedas e valores. Seus juros são mantidos baixos e a acumulação é desincentivada: quanto mais a comunidade usar, melhor. Não é atraente para uso em forma de empréstimos, visto que o controle de escassez não está nas mãos de especuladores individuais, mas nas mãos do banco comunitário. (b) Em se tratando de bitcoins, estes tendem a sere usados no futuro em rolagem de dívidas, mercados de derivativos (mercados futuro). Ora, obviamente, uma “moeda” que só valoriza se vier a ser usada em empréstimos terá juros nas alturas. Sua circulação é desincentivada e ninguém jamais pagará salários com bitcoins.
VENCEDORES:
(a) Nas moedas alternativas, os maiores vencedores são micro-comerciantes locais que, por sua vez, viram os maiores geradores de empregos. A moeda alternativa destas comunidades incentivada a circulação, e não a acumulação. A acumulação ocorre na moeda “externa” à comunidade, no caso os Reais (R$). (b) Nos bitcoins, os vencedores são uma minoria de grandes especuladores que detém um grande porcentagem de propriedade destas moedas e a manuseiam com maestria nos ciclos de compra e venda.
PRODUÇÃO E O MITO DO TRICKLE-DOWN:
(a) Comerciantes e industriais que vivem em comunidades que usam moedas alternativas comunitárias sempre falam em continuar ou em expandir os negócios. (b) Já os “bitcoiners” esperam parar de trabalhar. Os que ganham dinheiro, pensam em usar esse dinheiro para reaplicação em bitcoins: é a especulação pela especulação em si mesmo, um mercado de teor entrópico.
CONCLUSÃO:
O Bitcoin, de ponto de vista político, é outra demonstração dos fracasso das ilusões libertárias, anarco-capitalistas e liberais. Desregulação anda de mãos dadas com especulação. E especulação financeira inviabiliza o uso comunitário e social de qualquer tipo de valor, no caso, da moeda. Ter ricos apenas por ter ricos, por si só, em determinados setores (como bancos), não leva a lugar algum e, em muitos casos, leva até mesmo à estagnação da economia, dependendo de para onde os investimentos finais são direcionados.
(Texto de Marcelo R. Rodrigues)