Com o conflito entre Rússia e Ucrânia e a perda de credibilidade do dólar em decorrência das sanções à Rússia, estamos testemunhando um dos últimos capítulos da tendência de desdolarização da economia mundial. Quais seriam as consequências dessa mudança para a economia americana? O economista Deivid Jorge comenta.
Um tema que anda bastante em voga é a respeito da ‘desdolarização’ do mundo, isto é, a perda da moeda americana como referências para as transações comerciais e financeiras em escala global. Impossível abordar esse tema sem citar a grande protagonista dessa mudança: China.
Isso se torna evidente tanto ao considerarmos que dois terços do comércio entre Rússia e China agora ocorrem por meio de suas próprias moedas, quanto ao analisarmos o acordo recente em que a China estabeleceu com empresas européias para comprar gás natural dos Emirados Árabes Unidos utilizando o renminbi. Outro episódio emblemático é o recente acordo com o Brasil, a maior economia da América Latina, para realizarem acordos comerciais usando suas próprias moedas.
Cabe, portanto, não apenas assistir essa transição, mas realizar uma análise antevendo as possíveis consequências dessa transição para a economia norte-americana. Contudo, uma questão importante:
Por que o dólar é utilizado como reserva de valor?
Vamos por partes:
Para que as transações comerciais/financeiras se realizem entre as nações, é preciso haver uma unidade de conta comum.
Assim como uma economia nacional precisa que seus cidadãos reconheçam um meio de pagamento comum, o mesmo acontece com o comércio internacional, onde uma unidade de conta compartilhada e reconhecida é necessária para resolver o problema de “dupla coincidência”.
Imagine que duas pessoas desejam realizar uma troca de bens, mas cada uma possui um bem diferente do que a outra parte deseja. Por exemplo: se uma pessoa tem uma bicicleta e quer uma guitarra, mas a outra pessoa tem uma televisão e quer uma bicicleta, não há uma coincidência entre as preferências e necessidades de ambos. Esse problema pode ser resolvido com uma unidade de conta comum, o dinheiro, que permite a troca de bens e serviços sem a necessidade de encontrar uma dupla coincidência de desejos materiais entre as partes.
O mesmo ocorre entre os países quando precisam negociar entre si, mas cada um tem sua própria moeda e não aceita a moeda dos outros países. Nessas circunstâncias, para que não ocorra uma rigidez do comércio internacional, pendendo para um sistema de escambo, é fundamental ter uma moeda (ou até mais, como no sistema atual) de referência aceita internacionalmente.
Uma moeda que você tenha a segurança de que, ao detê-la, poderá ser aceita futuramente em outras transações que você precise fazer com outros países. Hoje, embora o dólar seja amplamente aceito, outras moedas também concorrem com ele, como o iene japonês, o euro europeu ou até, mais recentemente, o renminbi chinês.
Pois bem, mas como essas moedas são definidas historicamente?
A unidade de conta comum entre os países é determinada por fatores políticos e ideológicos. Com o avanço da globalização e a intensidade do comércio entre as nações, a configuração do sistema monetário financeiro passou a refletir o poder das potências da época.
No século XIX, a Inglaterra era a fiadora do padrão ouro (1870-1914), detendo grande parte das reservas em ouro do mundo, o que tornava a libra esterlina uma moeda forte e de reserva mundial. Não cabia ficar contestando, afinal, o país sendo uma potência econômica e militar tinha seus meios de ‘convencimento’.
O padrão ouro, em resumo, funcionava assim: para equilibrar o balanço de pagamento entre os países e impedir uma tendência deficitária ou superavitária excessiva, a regra era que o país superavitário importasse ouro do país deficitário. Como a emissão de moeda estava atrelada à quantidade de ouro detida pelo país, ter mais ouro significava ter que emitir mais moeda, o que, de acordo com a Teoria Quantitativa da Moeda, poderia aumentar a demanda interna e, consequentemente, a inflação. Com uma inflação mais elevada, os preços dos bens internos também aumentariam, reduzindo a competitividade no cenário externo. O mesmo aconteceria para o país deficitário, que teria que exportar ouro, reduzindo a demanda interna e a inflação dos preços internos e tornando seus produtos mais competitivos (tornando sua balança comercial superavitária).
No entanto, com a eclosão da primeira guerra e a necessidade das economias financiarem seus gastos, o padrão ouro se tornava muito rígido, já que a emissão monetária estava atrelada à quantidade de ouro que cada país detinha.
Esse sistema ruiu, ficando o mundo ausente de um arranjo institucional monetário global entre o período de 1914 a 1944 (embora houvesse acordos bilaterais entre alguns países).
Durante o final da Segunda Guerra Mundial, com os EUA emergindo como potência dominante no âmbito econômico e militar, juntamente com a necessidade de construir uma estrutura econômica global capaz de enfrentar as inconveniências de um mundo marcado por fortes barreiras comerciais, foi consolidado em 1944 o Acordo de Bretton Woods.
Tal acordo foi realizado para estabilizar as taxas de câmbio do mundo e dinamizar o comércio global (países construindo barreiras comerciais, como anteriormente usando tarifas alfandegárias, diminuía o fluxo de bens e serviços).
Era necessário um mecanismo que corrigisse essa questão. O Acordo de Bretton Woods estabelecia que a moeda de reserva global seria o dólar, e sua emissão estaria atrelada ao ouro que os EUA detinham (os países tinham que confiar que os EUA emitia de acordo com a quantidade de ouro que possuía). As moedas desses países deveriam estar fixadas segundo o valor do dólar, criando um mecanismo de taxas de câmbio fixas, pareadas com o dólar, que teria como variável de ajuste essa moeda.
Ter sua moeda como reserva mundial lhe impõe algumas vantagens, como poder usá-la para comprar bens e serviços de outros países sem precisar produzir, além de poder negociá-la em transações internacionais. Isso significa que a moeda se torna mais estável e confiável, pois é amplamente aceita pelos demais países, o que pode fortalecer a economia e o prestígio do país em questão.
Imagine o real ser a moeda reserva do mundo, podendo o Brasil ter o privilégio de comprar bens e serviços dos outros países a partir de uma moeda que apenas ele emite?
Bem, esse sistema caiu devido à desconfiança dos demais países de que o dólar pudesse, de fato, estar lastreado com base no ouro. Isso ocorreu em função do intenso financiamento da guerra do Vietnã pelos Estados Unidos a partir da década de 60.
Após essa mudança, as moedas deixaram como lastro o padrão dólar-ouro, embora na prática, passaram a continuar tendo como referência o dólar. Isto é, passou-se do padrão ‘dólar fixo’ para o padrão ‘dólar flutuante’, como é até hoje.
Mas, ainda sim, e se o mundo se ‘desdolarizar’, quais são as consequências para os EUA?
Bom, como os EUA perderiam a capacidade de adquirir bens e serviços devido ao privilégio de ser o único país que emite a moeda amplamente aceita nas transações internacionais, ficaria mais caro financiar as bases militares e intervenções diretas (ou indiretas) ao redor do mundo. Isso poderia resultar em uma redução da influência política e cultural dos Estados Unidos pelo mundo.
Outra consequência seria no âmbito interno da economia americana, com aumento dos preços nos EUA. Para que sua moeda tenha uma forte participação na economia global, é necessário que os países usem sua moeda, o que é alcançado por meio de importações de outros países, empréstimos ou investimentos estrangeiros. Dado que a estrutura de produção global se deslocou para outros países, especialmente a China, não ter a sua moeda como reserva de valor implicaria em ter que reindustrializar a economia do país.
Talvez aí esteja a charada por trás dos movimentos de reindustrialização nos EUA. Enquanto isso não ocorre, a economia americana pode enfrentar um processo inflacionário drástico.
Outro fator relevante diz respeito ao aumento da dívida americana. Com a perda de posição de reserva internacional e a não aceitação nas transações internacionais, a liquidez em dólares circulando pelo mundo teria que ser enxugada. Isso pode ser feito com a emissão de títulos pelo FED americano, dos quais a China detém grande parte. Com o aumento da oferta de títulos, seus preços caem e seu custo de financiamento se eleva.
De tudo isso, conclui-se, portanto, que a hegemonia do dólar no sistema monetário internacional pode estar chegando ao fim. Os desafios em extinguir completamente o dólar das transações internacionais são enormes, mas a tendência é que outras moedas, como o renminbi, ganhem espaço e diminuam a influência do dólar.
A multipolaridade em todos os âmbitos indica que a possibilidade de uma multipolaridade também no sistema monetário internacional é real e pode trazer mudanças significativas para a economia global. Cabe aos países se prepararem e se adaptarem a essa nova realidade para aproveitarem as oportunidades e minimizarem os riscos.