A compreensão do Brasil enquanto “espaço multipolar”- mais de direito do que de fato – deve se dar a partir de determinados princípios balizadores na terminologia aplicada. Por exemplo, se quisermos provar que somos uma “civilização jovem”, hipótese que já veio à baila em diversas ocasiões nos círculos intelectuais nacionais, teríamos que compreender, primeiramente, em que termos é possível falar em civilização brasileira. O apontamento detalhado de tais princípios, entretanto, geraria extensas diatribes intelectuais, seguidas das conhecidas réplicas retóricas que são, invariavelmente, coloridas pelas ideologias dos debatedores. Isso posto, partimos de um conceito norteador bastante elementar: o Brasil possui um projeto de civilização singular que ainda não foi medido, e tampouco analisado, com as ferramentas antropológicas e historiográficas consagradas pelo Ocidente (supondo, é claro, que elas serão satisfatórias e suficientes para tal empreitada). Para dizer mais precisamente, é necessário questionar, com base em instrumentos metodológicos apropriados ao nosso caso, a validade da idéia de um “Brasil Ocidental”, já que os próprios intelectuais ocidentais nos enxergam como um povo bastante complexo. Assim, uma sociologia antropológica legitimamente nacional deve saber, para dizer como Alain Touraine, “pensar outramente”.
No que tange ao ideal de um “Brasil Ocidental”, é preciso recordar do antropólogo brasileiro Darcy Ribeiro, figura importantíssima nos estudos culturais do país, e de sua definição da situação epistemológica basilar para o entendimento dos chamados “Povos Novos”:
“Os Povos Novos da América são, também, o resultado de formas específicas de dominação étnica e de organização produtiva sob condições de extrema opressão social e deculturação compulsória, que, embora exercidas em outras épocas e em distintas áreas do mundo, alcançaram na América colonial a mais ampla e rigorosa aplicação.” [1]
Sem a compreensão dessa situação, é impossível colocarmos a idéia do “pluriverso brasileiro” em exame. Para destacar a posição única do Brasil dentro do conjunto dos Povos Novos, é preciso enumerar algumas diferenças fundamentais com relação aos demais povos da América do Sul: o afastamento contínuo da língua e da cultura espanhola e a adoção de uma certa heterogeneidade nacional com a adoção da língua portuguesa, a influência fortíssima, principalmente nas áreas litorâneas, dos elementos culturais africanos e falta de “unidade imperial”, se é que podemos falar nesses termos, dos indígenas que aqui viviam à época das primeiras explorações de colonização. É bem verdade que todos esse elementos de singularidade podem passar a falsa impressão de uma riquíssima e harmônica síntese de tendências que formou, por seu turno, uma totalidade homogênea. Nada mais falso. Embora o Brasil seja um país relativamente pacífico (não temos registros de guerras totais em território pátrio), os elementos supracitados sempre estiveram em choque nos costumes, nos modos de dizer, agir e pensar que se perpetuaram após a chegada dos navegantes europeus.
“O caráter de Povo-Novo da etnia nacional brasileira assenta-se na sua formação multicultural e multirracial em que representaram papéis decisivos, o negro e o indígena, além do europeu. Os processos de destribalização e deculturação destes contingentes para plasmar a etnia nacional operaram sob as compulsões da escravidão e, simultaneamente, com a miscigenação de uns com outros e todos com o português..”[2]
Darcy Ribeiro chama, de maneira mui acertada, essa configuração inicial do povo brasileiro de “protocélula”. A protocélula, no entanto, é também uma espécie de marca indelével de um determinado povo e atua como um espectro, uma Gestalt que não deixa de operar mesmo quando não é percebida.
Há, entretanto, um elemento cultural e civilizador que passou desapercebido para a maioria dos estudiosos da antropologia brasileira: a influência da cultura oriental no Brasil. Embora o assunto seja extenso e complexo- provar a tese da influência oriental no Brasil exigiria, por si só, um tratado completo- é possível recorrer ao relato apurado do sociólogo Gilberto Freyre. Freyre, como nenhum outro antes dele, percebeu nos costumes do povo, na arquitetura, na culinária e nos trajes, a onipresença do elemento extremo-oriental. Para ilustrar sua tese, o sociólogo chegou a chamar o Brasil de “China Tropical” e fez questão de ressaltar que também os orientalismos nos vieram, fundamentalmente, através dos lusos.
“A verdade é que o Oriente chegou a dar considerável substância, e não apenas alguns de seus brilhos mais vistosos de cor, à cultura que aqui se compôs dentro de condições predominantemente patriarcais de convivência humana, em geral, e de exploração da terra pelo homem e dos homens de uma raça pelos de outra, em particular. E não só substância e cor à cultura: O Oriente concorreu para avivar as formas senhoris e servis dessa convivência entre nós: os modos hierárquicos de viver o homem em família e sociedade. Modos de viver, de trajar e de transportar-se que não podem ter deixado de afetar os modos de pensar”. [3]
Gilberto Freyre escreveu longas digressões tentando defender sua tese de que os modos de viver, trajar e transportar também moldam os modos de pensar; o fato é que sua teoria de um “Brasil Oriental” permanece pertinente.
Para que possamos compreender a pluralidade do Brasil é necessário termos em mente, portanto, a necessidade de uma abordagem específica que leve todas as matrizes culturais aqui citadas – africana, ameríndia, ibérica e extremo-oriental – em conta. Além disso, temos que observar que as condições gerais dos povos novos, conforme observou Darcy Ribeiro, são únicas e inescapáveis. É desse modo, e somente através dele, que poderemos pensar no Brasil como um país pleno de possibilidades para um diálogo multipolar que vá além das falácias multiculturalistas e relativistas.
Reconhecer, estudar e especificar as linhas de força na formação brasileira são etapas naturais para qualquer sociólogo interessado no Brasil. Contudo, é necessário operarmos essa busca através de novos paradigmas e conceitos norteadores: é aqui que as noções de “pluriverso” e “espaço multipolar” se fazem mandatórias.
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[1] Ribeiro, Darcy. As Américas E a Civilização: Processo De Formação E Causas Do Desenvolvimento Desigual Dos Povos Americano. Rio De Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
[2] Ribeiro, Darcy. As Américas E a Civilização: Processo De Formação E Causas Do Desenvolvimento Desigual Dos Povos Americano. Rio De Janeiro: Civilização Brasileira, 1970.
[3] Freyre, Gilberto, and Edson Nery Da. Fonseca. China Tropical: E Outros Escritos Sobre a Influencia Do Oriente Na Cultura Luso-brasileira. Brasília: Editora Universidade De Brasília, 2003.