Os principais eventos de 2024 apontam para um ano de caos, conflito e instabilidade, com 2025 podendo ser um ano fatídico.
O ano de 2024 foi um ano de eventos surpreendentes, apesar de não ter sido nem o ano de “começos” nem de “fins”. Foi um ano de mudanças e de transições, que serviu mais como ponte para um ano que tende a ser mais “derradeiro”.
Os atores da geopolítica utilizaram o ano de 2024 para se adaptar às condições do mundo contemporâneo e da atual fase de transição geopolítica e tentar abalar o tabuleiro por meio de jogadas inesperadas que mudaram as regras do jogo geopolítico.
E, de fato, se houve alguma grande vítima no ano de 2024 foi precisamente o Direito Internacional e as “regras do jogo”. Todos os pressupostos principiológicos e paradigmáticos que têm regido o mundo pós-Guerra Fria – democracia liberal, respeito às soberanias nacionais, primado dos direitos humanos, não-intervenção, resolução pacífica dos conflitos, estabilidade das fronteiras, respeito aos tribunais internacionais, etc. – foi categoricamente descartado, de forma aberta e generalizada, nos conflitos contemporâneos.
Resultados eleitorais foram invalidados sem justificativa, fronteiras foram violadas sem explicação, massacres foram cometidos sem represálias, embaixadas atuaram abertamente como focos de militância contra os governos dos países anfitriões, tribunais internacionais viraram motivo de piada.
Como eu já comentei antes, 2024 pacificou a percepção já subjacente de que retornamos ao primado da força como único sustentáculo de qualquer possível Direito Internacional. Os países fortes serão capazes de impor sua vontade e fazer valer as suas prerrogativas e zonas de influência. Os países fracos serão pisoteados e, alguns, correm até o risco de desaparecer.
Agora, resumidamente, analisemos os vários cenários continentais:
América do Norte
A principal transformação na América do Norte é a vitória eleitoral de Donald Trump. Nenhum outro evento se compara. O retorno de Trump era inesperado quando se iniciou o ano, mas já havia se tornado uma inevitabilidade com a insistência de Biden em disputar (e sua substituição…por Kamala Harris!) e com os atentados à vida de Trump.
Mas a sua vitória foi, na verdade, pavimentada pelas ruinosas políticas bidenistas em vários setores: uma política externa que bordejava uma guerra nuclear, uma política fronteiriça que abriu o país para hordas de imigrantes, uma política econômica pouco eficiente que foi incapaz de gerar empregos suficientes, uma política sociocultural hostil aos valores mais básicos da sociedade estadunidense, além da total incapacidade de lidar com desastres naturais, com a decadência da infraestrutura e da logística de transportes, com a crise de opioides, etc.
Na medida em que Harris representava a intensificação do bidenismo, a vitória de Trump representa uma grande coisa pela possibilidade de mudanças radicais em, pelo menos, algumas posturas e direções do governo anterior.
Mas o mais importante na vitória de Trump é que ela sepulta a fé na “normalidade” liberal-democrática. Estão refutados os “analistas” que previram a “morte do populismo” após a primeira derrota de Trump, compondo adágios aos populistas de todo o mundo.
O liberalismo político enquanto tal está de saída, e só poderá se segurar nos lugares em que implementar ditaduras e estados de exceção permanentes. De resto, a vitória de Trump anuncia que o trumpismo não foi mero acidente político, mas representava um movimento profundo de rechaço popular ao status quo.
América Ibérica
Na América Ibérica, os destaques ficam para a péssima escolha do Brasil de atuar como sátrapa dos EUA na região, sendo seu porta-voz nas críticas e ataques do atlantismo à Venezuela e à Nicarágua. O Brasil, de um modo geral, achou que valia a pena evitar tomar posição geopolítica no conflito entre potências unipolaristas e potências multipolaristas e, com isso, não apenas atuou como um “peso”, atrasando a expansão dos projetos geopolíticos da Rússia e da China, como inclusive ensaiou aproximações e alinhamentos com os EUA. O destaque aí vai para o bloqueio brasileiro ao ingresso da Venezuela nos BRICS, prejudicando nossa reputação no bloco.
O grande problema é que este cálculo se baseou na crença de que os Democratas permaneceriam no poder em Washington. Ledo engano, chegou ao poder Trump, que apesar de ter jogo de cintura para lidar muito bem com Lula, possui uma clara preferência por um retorno de Bolsonaro ao poder.
Mais vergonhosa do que essa gafe geopolítica é a aproximação com a decadente União Europeia, simbolizada pela insistência no Acordo UE-Mercosul, um acordo que tende a destruir a já combalida indústria brasileira, sem realmente render um nível de crescimento para o agronegócio que compense essa perda.
Aqui do lado, Milei confirmou todas as expectativas racionais e afundou a economia argentina. Fala-se em “superávit” e em uma ligeira queda na inflação…às custas da produtividade, do emprego, da renda, do empreendedorismo, das reservas internacionais do país e de todo o resto. Na verdade, a impressão que se tem é que Milei está basicamente queimando a Argentina a fogo baixo.
Enquanto isso, Maduro resistiu a uma tentativa de revolução colorida e a tentativas de desestabilização pelo uso de mercenários, e López Obrador foi substituído por Claudia Scheinbaum, que para mim ainda representa uma incógnita. Boric e Petro não surpreenderam minimamente por seu alinhamento ao Ocidente, enquanto os EUA tentam militarizar a Guiana e a China busca construir uma alternativa ao Canal do Panamá através da Nicarágua.
África
A grande transformação africana é a construção da Confederação do Sahel entre Mali, Burkina Faso e Níger. A Confederação do Sahel promete se tornar futuramente algo semelhante à União Eurasiática, mas já com uma dimensão militar razoavelmente bem desenvolvida. Ali nos arredores, o Senegal passou por uma transição democrática em prol de uma liderança multipolarista e antiocidental.
Em outras partes da África, avançam os projetos logísticos e energéticos da Rússia e da China, com a construção de portos, ferrovias e usinas nucleares.
Europa
Na Europa, tivemos um ano de colapsos governamentais. O governo britânico colapsou uma vez mais, e os trabalhistas retornaram ao poder. Macron foi derrotado em todas as eleições e viu seu governo cair três vezes. O governo de Scholz também acaba de colapsar. O governo holandês também colapsou.
Em cada uma dessas crises políticas que resultaram na necessidade de eleições, as forças nacionalistas antiliberais avançaram posições rumo ao poder.
A crise política, por sua vez, é causada por uma longa crise civilizacional que principia pelo esquecimento de si mesmo, na aurora da Modernidade, agravada ao fim da Segunda Guerra Mundial. Desde então, os europeus vieram o esvaziamento de seus valores, o apagamento de sua cultura e, eventualmente, o início de sua substituição demográfica por imigrantes.
Países como a Eslováquia conseguiram se rebelar com sucesso, erguendo ao poder um líder como Robert Fico. Enquanto isso, a Romênia que caminhava para também se libertar sofreu um golpe de Estado judicial.
Somado a isso, como fenômenos recentes, temos a corrosão da democracia, na medida em que os políticos passaram a atropelar a população com medidas contramajoritárias, do ingresso na UE às políticas de austeridade. E de forma ainda mais recente, a crise energética por causa da loucura ecoglobalista e, agora, por causa das sanções russofóbicas e da destruição do Nordstream.
Enquanto isso, o ano de 2024 é também o ano em que os governos europeus adotaram um tom mais belicista contra a Rússia, praticamente prometendo enviar seus cidadãos para a morte.
Eurásia
No que concerne o espaço eurasiático, a grande questão permanece sendo a operação militar especial russa na Ucrânia, que avança gradualmente aproximando-se já de Dnepropetrovsk e já se lançando sobre Kharkov, além de estar perto de finalizar a libertação de Donetsk.
Não obstante, a Ucrânia não perdeu iniciativa tática completamente, tendo sido capaz de lançar uma ofensiva em Kursk, por desatenção russa. Ainda assim, essa ofensiva transformou-se em um moedor de carne para os ucranianos. Restou, para os ucranianos, o terrorismo, bem como buscar a autorização para ataques com mísseis de longo alcance contra o território russo.
Em resposta, os russos usaram o míssil Oreshnik, um míssil hipersônico que, por enquanto, é indefensável, além de ter o potencial de destruição praticamente equivalente ao de uma arma nuclear.
Nas margens eurasiáticas, a Geórgia triunfa sobre uma tentativa de revolução colorida e reafirma sua soberania, na mesma medida em que a Armênia desliza para a submissão total ao Ocidente.
Oriente Médio
O Oriente Médio é a região que passou pelas mudanças mais brutas e violentas. As operações militares de Israel contra Gaza continuam, sem que Israel tenha conseguido alcançar qualquer objetivo estratégico. Ao contrário, sofre baixas diárias quanto só consegue basicamente matar civis. No flanco norte, por sua vez, Israel tentou invadir o Líbano por terra, fracassando em seu objetivo e sendo forçado a recuar, mas em compensação conseguiu matar com ataques aéreos boa parte da liderança do Hezbollah.
Na vizinha Síria, já estraçalhada por sanções e por uma incapacidade da liderança de fazer escolhas geopolíticas razoáveis, além de prejudicada por um cessarfogo inadequado, colapsou o governo de Bashar Al-Assad, impondo à Rússia e ao Irã uma derrota estratégica importante, e forçando os atores em questão a adaptar sua estratégia para o Oriente Médio. Particularmente o Irã, agora, terá que reforçar sua influência no Iraque e buscando maneiras alternativas de apoiar o Hezbollah e a Resistência Palestina.
Particularmente no que concerne o Irã, o mesmo sofreu uma misteriosa morte do presidente Ebrahim Raisi, e sua substituição por Masoud Pezeshkian, um reformista com preocupantes tendências atlantistas. Não obstante, o Irã foi capaz de impor algum grau de dissuasão por meio das operações Promessa Verdadeira 1 e 2, os quais expuseram a fraqueza de Israel.
Enquanto isso, a Turquia busca desviar os olhos de suas crises políticas e econômicas internas com uma geopolítica simultaneamente pan-turânica e neo-otomana megalomaníaca que tende a colocá-la em rota de colisão tanto com o Irã quanto com a Rússia.
Ásia
O evento fundamental da Ásia é o reforço do poder de Narendra Modi na Índia e a reaproximação histórica entre Índia e China, mediada pela Rússia. Essa reaproximação vem também no esteio de um afastamento da Índia em relação ao Ocidente, após tentativas de desestabilização no período eleitoral, após o Canadá abrigar terroristas separatistas anti-Índia e após o Ocidente derrubar o principal aliado regional da Índia, o Bangladesh.
Também perto dali, o Paquistão parece estar deslizando na direção do caos absoluto, com insurgências no Balochistão, caos político por causa da situação de Imran Khan, tensões violentas entre wahhabis e xiitas e, agora, um conflito fronteiriço com o Afeganistão.
A China, por sua vez, concentrada em seus assuntos internos dá grandes saltos militares e estende seu poder e influência pela Iniciativa Cinturão & Rota. A China não tem pressa para tomar Taiwan porque considera a sua reintegração uma inevitabilidade. A Coreia do Sul, por sua vez, afunda na instabilidade política e bem pode acabar sofrendo um golpe de Estado em 2025. O Japão, por outro lado, começa a assumir uma postura mais ambígua em relação ao Ocidente.
Para o Ocidente, o objetivo principal no Pacífico é construir uma “OTAN do Pacífico” e uma rede de bases navais que imponha um cerco naval prático à China, com articulando sua presença nas Filipinas e nos outros países da região, enquanto tenta, também, derrubar o governo do Myanmar pelo financiamento de dúzias de grupos terroristas e separatistas.
Esses são os principais eventos, padrões e tendências de 2024, demonstrando que vivemos, de fato, em um mundo perigoso e que a História definitivamente não findou.