Musk, Thiel, Vance, Ramaswamy e outros trumpistas ligados à Big Tech traíram as expectativas dos trumpistas nativistas e estão, agora, defendendo a imigração em massa para fins “meritocráticos”.
Tem sido particularmente curioso acompanhar nos últimos dias a ruptura pública dentro do trumpismo entre os setores mais nativistas e identitários, da base militante do trumpismo, e os setores ligados à Big Tech que apoiaram financeiramente e logisticamente a eleição de Donald Trump.
O destaque vai para figuras como Elon Musk, Vivek Ramaswamy e outros influenciadores ligados ao setor tecnológico ou de origem imigrante, em debates virtuais sobre a importação de “mão-de-obra especializada” pelo visto H-1B.
A posição dos tecnotrumpistas é a favor da importação em massa de “mão-de-obra especializada”, enquanto a posição dos trumpistas identitários é contrária, defendendo que os EUA possuem gente suficientemente inteligente para ocupar qualquer vaga de trabalho, bem como apontando que os imigrantes em questão (como os indianos) tendem ao nepotismo étnico.
Diante de acusações de “traição”, já que a pauta anti-imigração não distingue entre “tipos” de imigração, Musk e os seus cerraram fileiras com dureza, declarando que eles veem os EUA simplesmente como uma “meritocracia” definida pura e simplesmente pela possibilidade de “qualquer um” vencer na vida.
Alguns influenciadores que seguem a mesma linha, inclusive, acusaram de “comunismo” e “stalinismo” os trumpistas que defendem que os EUA deveriam ter, enquanto nação, uma raiz histórica, linguística e psicológica específica, organizada em uma cultura comum, reproduzida de forma estável entre as gerações.
Trump e Vance apoiaram a posição de Musk e o conflito deixou várias pessoas chocadas ou surpresas.
Para mim, porém, não há qualquer surpresa.
Em primeiro lugar, em um sentido mais geral, pelo fato de que o imigracionismo sempre foi um elemento ideológico central da ideologia das classes dominantes (ou seja, dos bilionários). Os bilionários não têm pátria, eles pertencem a uma realidade pós-nacional e transfronteiriça, com negócios espalhados pelo mundo, esposa estrangeira (usualmente “exótica”) e casas por todos os lados.
Eles, objetivamente, não tem interesse, tempo ou paciência para os “hobbits” (nos termos de Yarvin/Moldbug) e suas preocupações com enraizamento, tradição, cultura, espiritualidade, etc. Ao contrário, eles acreditam no caráter “libertário” do capitalismo precisamente por sua capacidade de “libertar” o homem em relação às suas “amarras”, materiais ou mentais.
Não casualmente, tal como os bilionários, especialmente os da tecnologia, são nômades, eles pensam o nomadismo como uma condição desejável para o mundo do trabalho. Já Marx apontava, de forma crítica, que a imigração alemã e irlandesa era utilizada pela burguesia britânica para rebaixar salários pela criação de um exército de reserva.
Pois personagens como Musk, Thiel e outros bilionários “conservadores”, defendem o nomadismo humano em escala planetária como condição permanente da humanidade, com cada cidadão “livremente” cruzando fronteiras para oferecer seu trabalho onde ele possa ser suficientemente valorizado. Musk só não é tão favorável à livre migração (para os EUA) de mão-de-obra desqualificada. Mas já vimos, por exemplo, como outros bilionários como Bezos defendem também a imigração de baixa qualificação para alimentar a própria máquina econômica e garantir salários baixos.
Especificamente no que concerne Musk, o que nunca se deveria ter esquecido é que o seu projeto “Neuralink” não é outra coisa que o propósito de fundir o homem a máquinas com o objetivo de “superar seus limites” e como solução para o “problema da IA”. O “Neuralink” prevê, ademais, inclusive a “hackeabilidade” do homem por impulsos externos; de modo que não se trata aí de “salvar” o homem, mas de aniquilá-lo em vista de uma suposta “inevitabilidade” do avanço tecnológico.
Não é casual que Musk é um entusiasta do Grande Reset e de vários outros projetos do Fórum Econômico Mundial. Ele simplesmente discorda de vários detalhes desses projetos e, para ele, o Grande Reset representa fundamentalmente um salto tecnológico transumanista para “libertar” o homem da carne, da Forma, ou seja, de sua “imago Dei”, transformando-o em objeto absoluto.
A minha referência aqui à absolutização do objeto-homem, ou seja, sua derradeira coisificação, é intencional porque me permite fazer a necessária ponte com a linha neorreacionária do trumpismo, organizada teoricamente em torno de Curtis Yarvin e Nick Land e, praticamente, em torno de Peter Thiel e J.D. Vance – todos eles radicalmente anti-identitários.
Ao contrário, a leitura política dessas figuras é uma na qual, diante da contradição entre liberalismo e democracia, é necessário dar um salto para um capitalismo autoritário, que rompa com as expectativas democráticas e os mitos liberais para impor um Estado Policial de vigilância permanente, fortemente hierarquizado, com o topo da pirâmide ocupado por CEOs e o país autogerenciado por tecnocratas quase como uma megacorporação.
Essas figuras desprezam o “caos” da criminalidade urbana e da imigração desenfreada de pessoas de baixa qualificação, simplesmente por isso afetar a eficiência do gerenciamento tecnocrático do país-empresa, não por qualquer afiliação ou adesão identitária à cultura, ao idioma, à religião ou à etnia da própria nação. É por isso que eles querem limitar a entrada de mexicanos ou árabes, mas aumentar a entrada de indianos e chineses.
Na prática, o “neocameralismo” e essas outras geringonças teóricas dos neorreacionários não são senão os fundamentos metapolíticos da reestruturação dos EUA em uma Tecnocracia cosmopolita e transumanista; autoritária na linha panóptica de um Estado policial pós-liberal; monárquica na mesma medida em que se poderia dizer que a Amazon é uma “monarquia”.
É como o próprio Peter Thiel, literalmente, enquadra o seu projeto. “Salvar” o Ocidente moderno por meio de um “congelamento” das politeias decadentes liberal-democráticas através de mecanismos autoritários, policialescos e de vigilância permanente a serviço do capitalismo das grandes empresas. Não é casual que o mesmo Thiel, da Palantir, tem sido responsável pela ampliação e universalização da espionagem dos cidadãos dos EUA pelo próprio Estado (através da terceirização privatista das atividades da CIA).
A noção de que algumas pessoas consigam ter expectativas em relação a isso – exceto como o meio para a transformação dos EUA na perfeita antítese e, portanto, no inimigo absoluto do Império da Tradição (o “Império do Fim”), necessário para o clímax da Guerra Eterna – ou mesmo que consigam misturar NRx com Tradicionalismo Católico, Tradicionalismo Evoliano (ou que confundam NRx com Arqueofuturismo, por exemplo), é espantoso, porque daí não sairá absolutamente nada de positivo, exceto o aperfeiçoamento do Inimigo, para facilitar a própria absolutização como sua antítese.
Agora, na medida em que Trump e Vance abraçaram essas bandeiras do turbocapitalismo tecnocrático, cosmopolita e transumanista, para os nativistas estadunidenses (que ainda tem em Steve Bannon uma de suas principais lideranças) não sobram muitas opções políticas, exceto ver o seu Presidente trair todas as suas promessas.