Raphael Machado explora, através das ideias do filósofo Alberto Buela, o conceito de “sentido hierárquico da vida” como um pilar da identidade ibero-americana, destacando a natural inclinação do brasileiro para a ordem hierárquica e o anseio por lideranças carismáticas.
O filósofo argentino Alberto Buela identifica um dos elementos fundamentais de um Ser ibero-americano (ou seja, um fundamento do nosso essenciamento enquanto civilização) naquilo que ele chama de “sentido hierárquico da vida”.
Ele descreve esse fator como uma espécie de intuição da realidade como uma totalidade fundada em valores absolutos que dispõem os entes de maneira piramidal, com o inferior em uma posição de necessidade em relação ao superior. Uma frase do Quixote, recordada pelo filósofo Carlos Xavier Blanco, chama aí a atenção: “Que bom vassalo seria se tivesse um bom senhor!”
Buela não costuma escrever muito sobre o Brasil; ele tem um imenso conhecimento da filosofia argentina, e usualmente oferece alguns bons comentários sobre outros elementos ibero-americanos. Mas acho que essa percepção certeira se aplica perfeitamente também ao Brasil, e me parece reforçar, para além de divagações históricas sobre conflitos que ninguém mais recorda, o pertencimento do Brasil à América Ibérica enquanto civilização.
O povo brasileiro é um povo que, por natureza (o que significa, também, que quando não é “ocidentalizado”), tem um forte senso de hierarquia, inclusive aceitando muito bem o ter que obedecer e seguir. O “igualitarismo” é um fetiche das nossas classes letradas cosmopolitas. O brasileiro não acredita em igualdade.
Naturalmente, não é por saber seguir e até mesmo ansiar por um “senhor” que o brasileiro será sempre ou usualmente um “bom servo”, porque o brasileiro também é desobediente. Mas não por achar que não deveria servir, e sim por preguiça ou negligência.
É claro, como nem todo mundo está na base, “mandar” também é algo que vem muito naturalmente para os brasileiros que intuem corretamente estarem acima na pirâmide. Existem homens que estão em determinadas posições e que esperam uma deferência que corresponde a essa posição, mesmo que não tenham cargo público – e esperam e recebem isso com naturalidade.
Hoje em dia, no Brasil, ainda existem “senhores” cujas mãos são beijadas por seus inferiores (que não o fazem diante de câmeras), e esses “senhores” não se acanham – como se acanharia alguém que, por natureza, é subalterno diante de uma “dignidade” da qual sente ser indigno.
Para quem não está conseguindo “situar” bem aquilo que estou descrevendo, basta recordar certos “barões” do Centrão político, especialmente aqueles que são “fidalgos” (no sentido literal do termo, ou seja, “filhos de alguém”).
Quando se fala no “caudilhismo” como parte da identidade política brasileira e ibero-americana é disso que se está falando. Em determinadas circunstâncias, quando há uma sincronia interior entre uma liderança carismática e uma parte das massas, a obediência, que em outras circunstâncias era preguiçosa e negligente, torna-se obediência fanática, culto sebastianista a um messias político, não raro visto como dotado de poderes alquímicos e taumatúrgicos.
O “chefe” é puro, mas cercado de inimigos; por sua vontade (e apenas por sua vontade – não por um “sistema”, “plano”, “projeto”, “equipe técnica”, etc.), tudo aquilo que é maligno, vil e corrupto será tornado bom. É quase como o “Rei Pescador” do mito europeu, cuja doença significa pobreza e infertilidade, e cuja recuperação significa colheitas fartas, ventres férteis, clima benéfico, harmonia social, etc.
Essa sincronia é, às vezes, tão profunda que se torna praticamente ritualística e extática durante os comícios, em que comparecem precisamente aqueles seguidores mais “possuídos”, mais “preenchidos” pela mística carismática do caudilho.
O que isso tudo significa é que discursos anarquistas sobre “povo salvando a si mesmo”, ou “não precisamos de líderes, mas de educação”, cairão em ouvidos surdos e só terão ressonância por aqui nas condições em que se opere uma imensa engenharia social que “desnature” o brasileiro por meio de sua ocidentalização.
O brasileiro continuará esperando a figura do “líder”, do “chefe messiânico”, o único homem apto a solucionar todos os nossos problemas e a afastar o “Diabo”. Mesmo quando Lula e Bolsonaro estiverem mortos, o máximo que acontecerá é um período em que o brasileiro verá a política de maneira morna ou se despolitizará temporariamente – enquanto aguarda um novo Dom Sebastião.
Isso significa que a única tarefa política relevante para o futuro é a capacidade de “captar”, “perceber” a emergência desse tipo de figura para ajudar a prepará-la para que ela possa, efetivamente, cumprir a sua missão histórica. Não se pode brigar com o fluxo do rio, deve-se tentar canalizá-lo.
Institucionalmente, ademais, isso significa que o Brasil precisa de uma reforma que transforme o nosso sistema de um arremedo de “sistema político autorregulatório franco-britânico de pesos e contrapesos”, resgatando o Poder Moderador como encarnação político-jurídica desse anseio brasileiro (e ibero-americano) por um líder dotado de poderes milagrosos.
E o “milagre”, no âmbito político-jurídico, consiste precisamente na possibilidade de tomar decisões autônomas supralegais.