A visita de Macron ao Brasil marca uma aproximação pautada pela temática nuclear, mas onde os interesses franceses parecem mais contemplados que os brasileiros.
Em 26 de março, o presidente francês Emmanuel Macron visitou o Brasil. Após a retórica agressiva sobre a possibilidade de enviar tropas francesas para a Ucrânia e a perda de influência em vários países africanos (o Senegal, onde a eleição presidencial terminou há pouco tempo, é o último da lista até agora), essa visita não foi apenas rotineira, mas pode ser vista como um teste para mudar a área da presença francesa. Não se pode descartar tentativas de forçar a saída dos interesses russos, pelo menos nas áreas em que eles podem servir como um concorrente genuíno de Paris.
Embora essa tenha sido uma visita de Estado de alto nível, o verdadeiro alvoroço foi causado pelas fotos dos dois presidentes que se tornaram memes instantaneamente. Nelas, Lula e Macron estavam de mãos dadas e sorrindo, de modo que um jornal brasileiro as chamou de “um casamento”. A foto de Macron com um xamã nativo realmente parecia um casamento gay em uma igreja anglicana. Macron também premiou o líder indígena, Raoni, com uma medalha por “proteger o meio ambiente”. O presidente francês rebateu os memes dizendo: “Sim, foi um casamento. O Brasil ama a França. E a França ama o Brasil”.
Enquanto isso, a situação real é muito menos cor-de-rosa do que parece nas fotos. Felipe Barros, um deputado brasileiro, por exemplo, apresentou um inquérito oficial sobre os acordos assinados com a França e se eles violam a soberania do país.
Na Guiana Francesa, visitada por Macron um dia antes, algumas autoridades também protestaram contra as ações tomadas pelo seu próprio presidente e pelo presidente francês. Dois dos parlamentares do país, Davy Rimane e Jean-Victor Castor, fizeram uma declaração na qual enfatizaram que questões como essa deveriam ser discutidas abertamente, e não a portas fechadas, e condenaram “as políticas sectárias do chefe de Estado: os programas publicados diferiam radicalmente de um convidado para outro, enquanto o governo se reservava o direito de convidar apenas um parlamentar, ou apenas o outro, oferecendo a eles conjuntos de questões completamente diferentes para considerar”.
Quanto às questões em pauta, todas elas estavam centradas na Amazônia, a região famosa por ser rica em recursos biológicos. A apresentação foi vagamente sinalizadora de virtude, defendendo a proteção do meio ambiente e a luta contra as mudanças climáticas.
Em 26 de março, Lula e Macron fizeram uma declaração conjunta e assinaram um roteiro referente à bioeconomia e à proteção das florestas tropicais. Embora o acordo contenha muitos chavões sobre a necessidade de reduzir as emissões e manter o compromisso com os tratados anteriores, há algumas disposições que têm a ver diretamente com o Brasil.
“O Brasil e a França estão comprometidos com a luta contra o desmatamento e reconhecem a importância da Amazônia e de outros biomas. Nesse contexto, os presidentes expressaram seu compromisso com a preservação, restauração e gestão sustentável das florestas tropicais do planeta e concordaram em continuar trabalhando em sua ambiciosa agenda, inclusive por meio do roteiro França-Brasil de bioeconomia e proteção de florestas tropicais, especialmente com o objetivo de desenvolver instrumentos financeiros inovadores, mecanismos de mercado e pagamentos de serviços ambientais que ajudariam a reunir a quantidade de recursos necessários para resolver o problema do desmatamento até 2030.”
Essa disposição começa com as florestas tropicais da Amazônia, mas termina com todas as florestas tropicais da Terra e alguns instrumentos de pagamento que devem ser desenvolvidos.
O assunto é detalhado mais adiante no acordo: “O Brasil e a França estão determinados a trabalhar juntos e com seus respectivos parceiros na criação de um novo sistema de governança para a arquitetura financeira internacional, a fim de apoiar um financiamento mais eficaz da luta contra a pobreza e a proteção do planeta: as duas condições essenciais para a transição ambiental justa. Essa mudança que sustenta o Acordo de Paris deve nos permitir mobilizar recursos financeiros públicos e privados em uma escala sem precedentes e em um ritmo sem precedentes, bem como reformar as instituições financeiras internacionais de forma justa.”
Enquanto o Brasil é um membro do BRICS com uma posição moderada sobre o desenvolvimento de soluções alternativas de qualquer tipo, especialmente quando se trata do Sul Global, a França faz parte do Ocidente coletivo que está comprometido com a preservação de todas as ferramentas de sua hegemonia, incluindo sistemas de pagamento e finanças. Então, como a França poderia ser útil para modernizar e transformar a arquitetura financeira internacional? O papel que Paris desempenha nela não seria realmente perturbador e divisivo, especialmente durante o ano em que a Rússia preside o BRICS? No momento, a opção de criar um sistema de pagamento internacional alternativo está sendo amplamente discutida.
Há também uma cláusula que diz que “os presidentes reconhecem a importância de uma ciência mais inclusiva sobre o clima e o desenvolvimento sustentável com uma participação mais ampla de pesquisadores de países em desenvolvimento, à luz dos estudos de gênero e do conhecimento tradicional, bem como do conhecimento fornecido por povos e comunidades indígenas e nativas”.
Os interesses de gênero de Macron não são segredo e, embora Lula tenha usado a retórica LGBT somente durante sua campanha eleitoral, a fim de garantir votos “progressistas”, esse flerte contínuo com questões de gênero parece suspeito.
A parte do plano relativa à bioeconomia e à proteção da floresta tropical é mais específica e tem a ver com a região amazônica. Desconsiderando o preâmbulo, ela trata de uma tentativa de elaborar um plano global de investimento em bioeconomia com base em recursos públicos e privados. Foi declarado um ambicioso programa de investimento em bioeconomia para o Brasil e a Amazônia guianense, com o objetivo de arrecadar 1 bilhão de euros nos próximos quatro anos.
O programa tem vários componentes principais:
- O diálogo entre as administrações francesa e brasileira sobre questões de bioeconomia;
- Parceria técnica e financeira entre bancos públicos brasileiros, incluindo o BASA e o BNDES, e a agência de desenvolvimento francesa, presente tanto no Brasil quanto na Guiana Francesa;
- Nomeação de coordenadores dedicados para as mais inovadoras empresas francesas e brasileiras de bioeconomia;
- A nova parceria científica franco-brasileira do CIRAD e da Embrapa, para estabelecer novos projetos de pesquisa em áreas sustentáveis, inclusive na Guiana Francesa;
- A criação de um novo Centro de Pesquisa, Investimento e Intercâmbio de Tecnologia em Bioeconomia, em apoio ao Centro Franco-Brasileiro de Biodiversidade Amazônica (CFBBA), e a criação de uma rede de universidades francesas e brasileiras que contribuiriam para essas questões.
Mais abaixo, são descritos os padrões de criação do mercado de carbono. Eles devem incentivar os países florestais a investir na restauração dos recursos naturais e na promoção conjunta de parcerias de inovação em todo o mundo para financiar a proteção das florestas tropicais e da biodiversidade.
Em geral, trata-se de estabelecer alguns campos de teste para determinadas medidas que poderiam ser ampliadas para outras partes do mundo.
Vale lembrar que o Brasil presidirá a cúpula climática da COP30 em 2025. Portanto, o momento de promover a agenda ambiental foi oportuno. Não há dúvida de que o governo Lula continuará a trabalhar com essa questão.
Outra questão realmente importante discutida foi relacionada a projetos conjuntos de energia nuclear.
Como afirmou o deputado Julio Lopez (membro da delegação brasileira), foi assinado um memorando de entendimento mútuo entre o Serviço Geológico do Brasil (SGB) e o Bureau de recherches géologiques et minières (BRGM) da França com relação a pesquisas de urânio. Atualmente, os depósitos de urânio do Brasil são os oitavos maiores do mundo: cerca de 280 mil toneladas. Seu valor estimado é de cerca de US$ 62 bilhões: o suficiente para cobrir todo o programa nuclear do Brasil. Atualmente, a empresa pública Indústrias Nucleares do Brasil, ligada ao Ministério de Minas, Indústria e Energia do país, é a monopolista da pesquisa de recursos naturais.
Várias seções do acordo indicam que os signatários pretendem aprofundar sua cooperação em energia nuclear e facilitar a troca de informações relativas a pesquisas importantes sobre recursos naturais. Há também disposições sobre o investimento francês em processamento de recursos naturais no Brasil, bem como em pesquisa e desenvolvimento de várias tecnologias inovadoras.
De acordo com Julio Lopez, a reconstrução da usina nuclear de Angra 1 está planejada, juntamente com a construção de Angra 3, como parte da “reestruturação das operações nucleares no Brasil”. O fato é que, no final de 2022, a Rosatom e as Indústrias Nucleares do Brasil assinaram um contrato de fornecimento de urânio enriquecido para os conjuntos de combustível de Angra 1. O contrato, assinado após um procedimento de licitação aberta, durará até 2027. A Rosatom também tem interesse em concluir a construção de Angra 3, embora seu início e aprovação no Brasil tenham sido repletos de dificuldades por uma série de razões. No entanto, em 2022, a empresa Eletronuclear (Brasil) reiniciou a construção da fundação da NPP. Prevista para ser inaugurada em 2028, Angra 3 gerará uma potência de 1.405 mW, ou 12 milhões de mWh por ano: o suficiente para fornecer eletricidade a 4,5 milhões de pessoas.
No momento, há conversas sobre a entrada da Framatome, uma produtora francesa de reatores nucleares, no Brasil.
Não podemos descartar a possibilidade de que a França veja o Brasil tanto como uma rede de segurança quanto como um mercado novo e promissor. Se os suprimentos de urânio do Níger forem cortados (o que é bem possível no clima atual), Paris usará o minério brasileiro para compensar. E, ao mesmo tempo, promoverá suas próprias tecnologias, fazendo lobby para expulsar as empresas russas. Esquemas de corrupção, um elemento básico da grande política ocidental, provavelmente serão usados lá. A agenda ambiental será um bom disfarce para manipular os ativos e as operações de pesquisa, além de estabelecer influência no nível da comunidade local. Dar mais algumas medalhas aos líderes tribais não é um problema para a França. Trocar contas de vidro por ouro é um velho truque que os colonizadores europeus usavam com frequência na América Latina.
Fonte: Geopolitika.ru