O Processo Revolucionário Africano: O que a Nossa América pode fazer?

Uma série de eventos africanos iniciou uma onda de empolgação internacional entre as fileiras contra-hegemônicas.

Poderíamos singularizar esses eventos no golpe militar antiocidental no Níger, na demonstração de insubmissão africana aparente no comparecimento à Cúpula África-Rússia e, naturalmente, pela personalidade carismática do presidente interino de Burkina Faso, Ibrahim Traoré.

Ibrahim Traoré, que desperta comparações com o mártir pan-africanista Thomas Sankara, disse o seguinte nessa cúpula em São Petersburgo:

“As perguntas que minha geração está fazendo são as seguintes. Se eu puder resumir, é que não entendemos como a África, com tanta riqueza em nosso solo, com uma natureza generosa, água e sol em abundância – como a África é hoje o continente mais pobre. A África é um continente faminto. E como é possível que haja chefes de Estado em todo o mundo pedindo esmolas? Essas são as perguntas que estamos nos fazendo, e até agora não temos respostas.

[…]

Minha geração também me pede para dizer que, devido a essa pobreza, eles são forçados a atravessar o oceano para tentar chegar à Europa. Eles morrem no oceano, mas logo não precisarão mais atravessar, pois virão aos nossos palácios para buscar o pão de cada dia.

Quanto ao que diz respeito a Burkina Faso hoje, há mais de oito anos estamos sendo confrontados com a forma mais bárbara e mais violenta de neocolonialismo imperialista. A escravidão continua a se impor sobre nós. Nossos antecessores nos ensinaram uma coisa: um escravo que não consegue assumir sua própria revolta não merece pena. Não sentimos pena de nós mesmos, não pedimos a ninguém que sinta pena de nós. O povo de Burkina Faso decidiu lutar”.

Palavras profundas e que demonstram elevadíssimo grau de consciência nacional e civilizacional.

Infelizmente, porém, o processo revolucionário que tem se desdobrado no Sahel, com o protagonismo de forças militares (que aparentam, na África, constituir a classe com mais alto grau de consciência histórico-popular, tanto em si quanto para si, nos termos hegelianos), após o triunfo no Níger, despertou uma forte reação contrária.

Desviando de nosso percurso, explicamos as razões pelas quais as elites ocidentais ignoraram as revoltas no Mali, Burkina Faso e Guiné Conacri, mas não no Níger: 1) Trata-se de uma das mais importantes fontes de urânio do Ocidente; 2) É rota para o gasoduto transaariano; 3) Se o golpe no Níger não for revertido, o processo revolucionário regional, outrora incipiente, tende a se alastrar.

As reações contrárias envolvem dois eixos diferentes, um africano e um ocidental.

O eixo da reação ocidental envolve, até agora, o corte de cooperações econômicas por parte de vários países como França, Alemanha e EUA, o que pode impactar gravemente a sustentabilidade do governo e o bem-estar da população civil. Para além disso, recusando-se a retirar suas tropas ainda estacionadas no Níger, a França ameaça o país com intervenção militar.

Por sua vez, os países da Comunidade Econômica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) condenaram o golpe, impuseram duras sanções (cortaram relações comerciais, bem como o fornecimento de energia elétrica), além de ameaçar com uma intervenção militar. O Níger também teve seus fundos depositados em bancos africanos ocidentais congelados.

O impacto desses ataques à soberania nigerina é imenso. O Níger, sendo um país sem saída para o mar, extremamente pobre e com agricultura primitiva e pouco desenvolvida, depende de importações. Seus poucos produtos de exportação demandam os portos do Atlântico.

Mesmo que excluamos a hipótese de intervenção militar, visto que o Senado da Nigéria recusou a proposta de intervenção (possivelmente uma saída “honrosa” de um vexame inevitável, após a declaração de apoio por parte da Argélia ao Níger, bem como os rumores de contratação do Grupo Wagner), ainda assim o Níger está sob cerco. Os nigerinos são vítimas de uma guerra híbrida que tentará dobrar o país por todos os meios possíveis.

Nessas condições o que os nossos países podem fazer?

Em primeiro lugar, os países da América Latina devem se recusar a apoiar quaisquer condenações ou principalmente sanções que sejam propostas na ONU e em outros organismos transnacionais dos quais façamos parte. Os eventos no Níger e nos países vizinhos do Sahel constituem processos internos que, segundo tudo indica, possuem amplo apoio popular, não nos cabendo condenar os movimentos das amplas massas populares em luta por tomar as rédeas da própria história.

Em segundo lugar, os países da Nossa América devem se mobilizar, com destaque e protagonismo para o Brasil por sua posição geográfica favorável, para suplantar os laços comerciais perdidos pelo Níger. O caminho para isso envolve, no caso brasileiro, tirar proveito do fato de que a distância entre a cidade portuária nordestina de Natal e Conacri, capital da Guiné, país que também passou por um levante nacional-revolucionário e que apoia o Mali, Burkina Faso e o Níger, é igual à distância que separa Natal de São Paulo.

A partir de Conacri, é possível estabelecer uma rota comercial ligando as capitais das nações pertencentes ao Eixo da Resistência Africana: Conacri-Bamako- Ouagadougou-Niamei. Assim, o Brasil e outros países de Nossa América que também podem acessar Conacri, poderão romper o “cerco” imposto ao Níger, impedindo que eles sejam forçados a se dobrar pela fome.

Os países de Nossa América são agroexportadores, além de produtores de petróleos e de vários outros recursos importantes. Nesse sentido, países como Brasil e Venezuela também podem garantir combustível barato para a região.

Esses, porém, deveriam ser apenas os primeiros passos de uma projeção mais profunda e de longo prazo no continente africano. A ajuda russa ao Sahel é muito positiva, mas nós temos mais em comum com eles do que os russos e nossa ajuda despertará menos desconfiança ou acusações de imperialismo. Recordamos, aqui, que anos atrás, a Odebrecht (praticamente destruída pelo lawfare comandado pelo DOJ dos EUA) possuía inúmeros projetos de infraestrutura na África.

Nossos países devem se planejar para fortalecer a cooperação com esses países de novo, com enfoque no Sahel, rico em petróleo, urânio e outros recursos importantes, mas no espírito de relações ganha-ganha, cuja finalidade deve ser treinar técnicos, engenheiros e especialistas locais para que eles próprios participem no desenvolvimento da infraestrutura local tendo em vista a conquista da autonomia regional.

O Brasil, insisto, possui várias vantagens nessa perspectiva. Além da posição geográfica favorável, possuímos uma forte herança africana que facilita o diálogo com os países do continente vizinho.

Com ousadia, o que infelizmente estamos longe de ter nesses anos, poderíamos ir mais longe.

Por quê é o Grupo Wagner que está realizando a obra de antiterrorismo e aprimoramento militar na África? Por que o Brasil e os outros países de Nossa América não estruturam mecanismos de projeção de influência através de companhias militares formalmente privadas, mas teleguiadas por nossos Estados?

Infelizmente, a maior parte dessas ideias e sugestões (excetuando as mais básicas) exigiria de nossos Estados um pensamento estratégico geopolítico de longo prazo, o que ou eles não têm ou, quando têm, não é posto em prática pela classe política.

As relações América-África são geopoliticamente essenciais para contrapor ao chamado “Midland Ocean”, teorizado por Halford Mackinder, como contraparte talassocrática ao Heartland eurasiático. Através dessas relações, podemos transformar o Atlântico Sul em uma área de segurança estratégica comum entre nossos países, protegendo os Rimlands dos dois continentes e impondo uma pressão crescente às possessões ocidentais na região, incluindo as Malvinas.

Em suma, ajudar no processo de libertação africana acelerará no processo de libertação latino-americana.

Falta a vontade e a ousadia.

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Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

Artigos: 596

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