1 Ano da Operação Militar Especial na Ucrânia

O aniversário de 1 ano do início da operação militar especial na Ucrânia, quando a Rússia reagiu preventivamente ao plano de ataque ucraniano ao Donbass e ao projeto de implantação de mísseis ocidentais em Kiev. E de uma operação modesta o evento se converteu verdadeiramente em uma guerra popular pela existência da própria Rússia, provocando grandes transformações na economia, na cultura e na própria mentalidade da liderança russa. O filósofo Alexander Dugin analisa a condução da guerra e as várias transformações que foram se sucedendo nesse período.

De Operação Especial a Guerra em larga escala

Um ano se passou desde o início da Operação Militar Especial Russa na Ucrânia. Começou precisamente como uma Operação Militar Especial, é claro hoje que a Rússia se viu em uma guerra difícil e de pleno direito. A guerra não tanto com a Ucrânia – enquanto regime, não enquanto povo (daí a exigência de desnazificação política foi apresentada inicialmente), mas antes de tudo com o “Ocidente coletivo”, ou seja, de fato, com o bloco da OTAN (exceto pela posição especial da Turquia e da Hungria, procurando permanecer neutros no conflito – os demais países da OTAN participam da guerra do lado da Ucrânia de uma forma ou de outra).

Este ano de guerra abalou muitas ilusões que todos os lados do conflito tinham.

O Ocidente estava errado em seus cálculos

O Ocidente, esperando a eficácia de uma avalanche de sanções contra a Rússia e seu corte quase completo da parte da economia, política e diplomacia mundiais controlada pelos Estados Unidos e seus aliados, não teve sucesso. A economia russa se manteve, não houve protestos internos, e a posição de Putin não só não vacilou, mas apenas se fortaleceu. A Rússia não pôde ser coagida a parar as operações militares, os ataques a infraestrutura técnico-militar da Ucrânia ou a retirar decisões de anexar novas entidades. Também não houve revolta dos oligarcas, cujos bens foram apreendidos no Ocidente. A Rússia sobreviveu, mesmo que o Ocidente acreditasse seriamente que ela iria cair.

Desde o início do conflito, a Rússia, percebendo que as relações com o Ocidente estavam se desmoronando, deu uma guinada brusca em direção aos países não ocidentais – especialmente China, Irã, países islâmicos, mas também Índia, América Latina e África – declarando de forma clara e contrastante sua determinação de construir um mundo multipolar. Em parte, a Rússia antes já tentava fortalecer sua soberania, mas com hesitação, não consistentemente, voltando constantemente às tentativas de se integrar ao Ocidente global. Agora esta ilusão finalmente se dissipou, e Moscou simplesmente não tem outra saída senão mergulhar de cabeça na construção de uma ordem mundial multipolar. Já alcançou certos resultados, mas aqui estamos no início do caminho.

Os planos russos foram drasticamente alterados

No entanto, na própria Rússia, tudo não correu como deveria. Aparentemente, o plano era não esperar que a Ucrânia atacasse o Donbass e depois a Crimeia, o que estava sendo preparado durante os Acordos de Minsk com o apoio ativo das elites globalistas do Ocidente – Soros, Nuland, o próprio Biden e seu gabinete – mas sim dar um rápido e mortal golpe preventivo contra a Ucrânia, apressar-se para sitiar Kiev e forçar o regime de Zelensky a capitular. Depois disso, Moscou planejou trazer um político moderado (alguém como Medvedchuk) ao poder, e começar a restaurar as relações com o Ocidente (como aconteceu após a reunificação com a Crimeia). Nenhuma reforma econômica, política ou social significativa foi planejada. Tudo deveria permanecer exatamente como antes.

No entanto, tudo deu muito errado. Após os primeiros sucessos reais, enormes erros de cálculo no planejamento estratégico de toda a operação se tornaram aparentes. O clima de paz do exército, da elite e da sociedade, despreparados para um sério confronto – nem com o regime ucraniano, nem com o Ocidente coletivo, teve seu impacto sobre o desenvolvimento da situação. A ofensiva parou, encontrando a resistência desesperada e feroz de um adversário com um apoio sem precedentes da máquina militar da OTAN. O Kremlin provavelmente não levou em conta nem a prontidão psicológica dos neonazistas ucranianos de lutar até o último ucraniano, nem a escala da ajuda militar ocidental.

Além disso, não levamos em conta os efeitos de oito anos de propaganda intensiva, que inculcaram à força a russofobia e o nacionalismo histérico extremado na sociedade ucraniana, dia após dia. Enquanto em 2014 a esmagadora maioria da Ucrânia Oriental (Novorossiya) e metade da Ucrânia Central estavam dispostas positivamente em relação à Rússia, embora não tão radicalmente quanto os residentes da Crimeia e Donbass, em 2022 este equilíbrio mudou – o nível de ódio contra os russos aumentou significativamente, e as simpatias pró-russas foram violentamente reprimidas – frequentemente através de repressão direta, violência, tortura e espancamentos. Em qualquer caso, os apoiadores ativos de Moscou na Ucrânia se tornaram passivos e intimidados, enquanto aqueles que hesitavam antes se colocavam do lado do neonazismo ucraniano, encorajado de todas as maneiras possíveis pelo Ocidente (penso que com propósitos puramente pragmáticos e geopolíticos).

Apenas um ano depois, Moscou finalmente percebeu que esta não era uma Operação Militar Especial, mas uma guerra de pleno direito.

A Ucrânia teve um desempenho relativamente bom

A Ucrânia estava mais preparada para as ações da Rússia do que qualquer outra nação, pauta já tematizada desde 2014, quando Moscou não tinha sequer a remota intenção de expandir o conflito, e a reunificação com a Crimeia parecia bastante suficiente. Se o regime de Kiev foi surpreendido por alguma coisa, foram precisamente os fracassos militares da Rússia que se seguiram a seus sucessos iniciais. Isto impulsionou muito a moral de uma sociedade já saturada de russofobia raivosa e de nacionalismo exaltado. Em algum momento, a Ucrânia decidiu combater a Rússia com seriedade até o fim. Kiev, dada a enorme ajuda militar do Ocidente, acreditava na possibilidade de vitória, e isto se tornou um fator muito significativo para a psicologia ucraniana.

O grande desastre para a elite pró-ocidental da Rússia

Mas a maior surpresa de todas foi o próprio início da Operação Militar Especial para a elite liberal pró-ocidental russa. Esta elite estava profundamente integrada no mundo ocidental em nível individual, a maioria mantinha suas economias (às vezes gigantescas) no Ocidente e participava ativamente de transações de títulos e jogos de mercado de ações. A Operação Militar Especial realmente colocou esta elite sob uma ameaça direta de ruína total. E na própria Rússia, esta prática habitual começou a ser percebida como uma traição aos interesses nacionais. Portanto, os liberais russos até o último momento não acreditavam que a Operação Militar Especial começaria, e quando ela começou, contavam os dias em que ela terminaria. Tendo se transformado em uma guerra longa e prolongada com um resultado incerto, a Operação Militar Especial foi um desastre para todo o segmento liberal da classe dominante. Até agora, alguns estão fazendo tentativas desesperadas de parar a guerra (em quaisquer condições), mas nem Putin, nem as massas, nem Kiev, nem mesmo o Ocidente, o aceitariam. O Ocidente notou a fraqueza da Rússia, um pouco atolada no conflito, e junto com Kiev irá até o fim em sua suposta desestabilização.

Aliados hesitantes e a solidão russa

Os amigos e aliados da Rússia também ficaram parcialmente desapontados com o primeiro ano da Operação Militar Especial. Muitos provavelmente pensaram que nossas capacidades militares eram tão substanciais e bem ajustadas que o conflito com a Ucrânia deveria ter sido resolvido com relativa facilidade. E a transição para um mundo multipolar parecia para muitos já irreversível e natural, enquanto os problemas que a Rússia enfrentou pelo caminho trouxeram todos de volta a um cenário mais problemático e sangrento.

Aconteceu que as elites liberais do Ocidente estavam prontas para lutar seriamente e desesperadamente para preservar sua hegemonia unipolar, até a probabilidade de uma guerra em larga escala com participação direta da OTAN e até mesmo um conflito nuclear de pleno direito. A China, a Índia, a Turquia e outros países islâmicos, assim como os Estados africanos e latino-americanos, dificilmente estavam prontos para tal reviravolta. Uma coisa é se aproximar de uma Rússia pacífica, fortalecendo silenciosamente sua soberania e construindo estruturas regionais e interregionais não ocidentais (mas também não antiocidentais!). E outra coisa é entrar em um conflito frontal com o Ocidente. Portanto, com todo o apoio tácito dos partidários da multipolaridade (e sobretudo graças à política amigável da grande China), a Rússia foi deixada nesta guerra com o Ocidente, de fato, sozinha.

Tudo isso se tornou óbvio um ano após o início da Operação Militar Especial.

As fases da guerra

1ª fase: início

O primeiro ano desta guerra teve várias fases. Em cada uma delas, muitas coisas mudaram na Rússia, na Ucrânia e na comunidade mundial.

A primeira fase abrupta do sucesso russo, durante a qual as tropas russas atravessaram Sumy e Chernihov pelo norte e chegaram a Kiev, foi recebida com uma barragem de fúria no Ocidente. A Rússia provou sua seriedade ao libertar o Donbass, e com uma rápida corrida partindo da Crimeia estabeleceu controle sobre mais duas regiões, Kherson e Zaporozhye. Esta fase durou os dois primeiros meses. Em uma situação de êxitos demonstráveis, Moscou estava pronta para negociações que consolidariam os ganhos militares com ganhos políticos. Kiev também concordava relutantemente com as negociações.

2ª fase: o fracasso das impossíveis conversações de paz

Mas então começou a segunda fase. Aqui os erros de cálculo militares e estratégicos no planejamento da operação se fizeram sentir em plena medida. A ofensiva parou, e em algumas direções a Rússia foi forçada a recuar de suas posições. A Rússia tentou ganhar algo com as conversações de paz na Turquia. Mas fracassou.

As negociações ficaram sem sentido porque Kiev sentiu que poderia resolver o conflito com ferramentas militares a seu favor. A partir de então, o Ocidente, tendo preparado a opinião pública com a furiosa russofobia da primeira fase, começou a fornecer à Ucrânia todas as formas de armas letais em uma escala sem precedentes.

3ª fase: impasse № 1

No verão de 2022, a situação começou a estagnar, embora a Rússia tenha tido algum sucesso em algumas áreas. A segunda fase durou até agosto. Durante este período, a contradição entre a ideia inicial da Operação Militar Especial como um rápido conjunto de ataques militares precisos, que logo deveria ter entrado na fase política, e a necessidade de conduzir operações de combate contra um inimigo fortemente armado, que tinha apoio logístico, de inteligência, tecnológico, de comunicações e político de todo o Ocidente, tornou-se evidente em sua totalidade. E agora a frente era de enorme extensão.

Enquanto isso, Moscou tentou continuar a conduzir a Operação Militar Especial de acordo com o cenário original, sem querer perturbar a sociedade como um todo ou se dirigir diretamente ao povo. Isto criou uma contradição nos sentimentos da frente e do lar, e levou a desacordos no comando militar. A liderança russa não queria permitir que a guerra penetrasse a sociedade, adiando de todas as maneiras o imperativo da mobilização parcial, que já estava atrasada naquela época.

Durante este período, Kiev e o Ocidente em geral voltaram-se para táticas terroristas – matando civis na própria Rússia, explodindo a ponte da Crimeia e explodindo os gasodutos do Nord Stream.

4ª fase: contra-ataques ucranianos

Assim, entramos na Fase 4, que foi marcada por uma contraofensiva das Forças Armadas ucranianas na região de Kharkov, que até então já havia passado parcialmente sob controle russo. Os ataques dos ucranianos ao resto da frente também se intensificaram, e a entrega em massa de unidades HIMARS e o fornecimento do sistema de comunicações via satélite Starlink às tropas ucranianas em combinação com uma série de outros meios militares e técnicos criou sérios problemas para o exército russo, para os quais ele não estava preparado. A retirada na região de Kharkov, a perda de Kupyansk e mesmo da cidade de Krasnyy Liman na República de Donetsk foi o resultado da “meia guerra” inicial. Foi neste ponto que a Operação Militar Especial se transformou em uma guerra de pleno direito. Mais precisamente, esta transformação foi finalmente percebida com seriedade nos escalões superiores da Rússia.

5ª fase: o despertar parcial da Rússia

Estas falhas foram seguidas pela quinta fase, que mudou o curso dos eventos. O anúncio da mobilização parcial, a remodelação da liderança militar, a criação do Conselho Coordenador de Operações Especiais, a transferência da indústria militar para um regime mais duro, o endurecimento das penalidades pelo não cumprimento da ordem de defesa do Estado, e assim por diante. O ponto culminante desta fase foi o referendo de adesão à Rússia em quatro territórios – a República de Donetsk, a República de Lugansk e as regiões Kherson e Zaporozhye, a decisão de Putin de deixá-los aderir à Rússia, e seu discurso ideológico fundamental nesta ocasião, em 30 de setembro, no qual ele declarou, pela primeira vez, com toda franqueza, a oposição da Rússia à hegemonia liberal ocidental, sua completa e irreversível determinação de construir um mundo multipolar e o início da fase aguda da guerra das civilizações, na qual a civilização moderna do Ocidente foi declarada “satânica”. Em seu posterior discurso de Valdai, Putin reiterou e desenvolveu as principais teses. Embora a Rússia já tivesse sido forçada a render Kherson depois disso, enquanto ainda em retirada, os ataques das Forças Armadas ucranianas foram interrompidos, a defesa das fronteiras controladas foi reforçada e a guerra entrou em uma nova fase. Como próximo passo da escalada, a Rússia começou a destruir regularmente a infraestrutura técnico-militar e às vezes até energética da Ucrânia com ataques imparáveis de bombardeios missilísticos.

6ª fase: novo equilíbrio — impasse № 2

Mas gradualmente a frente se estabilizou e um novo impasse se desenvolveu. Agora nenhum dos adversários conseguia inverter a maré. A Rússia se reforçou com uma reserva mobilizada. Moscou apoiou os voluntários e especialmente o “grupo” Wagner, que conseguiu um sucesso significativo na virada da maré nos teatros de guerra locais.

Esta fase durou até agora. Ela é caracterizada por um relativo equilíbrio de poder. Ambos os lados não podem alcançar êxitos decisivos e neste estado. Mas Moscou, Kiev e Washington estão prontos para continuar o confronto pelo tempo que for necessário.

Uso de armas nucleares: últimos argumentos

A seriedade do confronto da Rússia com o Ocidente levantou a questão da probabilidade de este conflito se transformar em um conflito nuclear. O uso de Armas Nucleares Táticas e Armas Nucleares Estratégicas foi discutido em todos os níveis, desde os governos até a mídia. Como já estávamos falando de uma guerra plena entre a Rússia e o Ocidente, tal perspectiva deixou de ser puramente teórica e se tornou um argumento cada vez mais mencionado por várias partes do conflito.

Alguns comentários devem ser feitos a este respeito.

Apesar do fato de que a situação atual da tecnologia nuclear é profundamente confidencial, e ninguém pode ter certeza absoluta de como as coisas realmente são nesta área, acredita-se (e provavelmente não sem razão) que as capacidades nucleares da Rússia, assim como os meios para utilizá-las através de mísseis, submarinos e outras formas, são suficientes para destruir os Estados Unidos e os países da OTAN. No momento, a OTAN não tem meios suficientes para se proteger de um potencial ataque nuclear russo. Portanto, no caso de uma emergência, a Rússia pode recorrer a este último argumento. Putin esboçou o que quis dizer com isto: essencialmente, se a Rússia enfrentar uma derrota militar direta nas mãos dos países da OTAN e seus aliados, seguida por ocupação e ameaça de perda de soberania, a Rússia pode utilizar armas nucleares.

Soberania nuclear: apenas duas instâncias

Ao mesmo tempo, a Rússia também não possui equipamentos de defesa aérea que o protegeriam de forma confiável de um ataque nuclear americano. Consequentemente, a eclosão de um conflito nuclear em larga escala, não importa quem atacar primeiro, será quase certamente um apocalipse nuclear e a destruição da humanidade, e possivelmente de todo o planeta. As armas nucleares – especialmente em vista das armas nucleares estratégicas – não podem ser utilizadas efetivamente por apenas uma das partes. A segunda responderia, e seria suficiente para que a humanidade ardesse em fogo nuclear. Obviamente, o próprio fato de possuir armas nucleares significa que em uma situação crítica elas podem ser usadas por governantes soberanos – ou seja, pelas mais altas autoridades dos Estados Unidos e da Rússia. Quase ninguém mais é capaz de influenciar tal decisão sobre o suicídio global. Este é o ponto da soberania nuclear. Putin tem sido bastante franco sobre os termos do uso de armas nucleares. Obviamente, Washington tem suas próprias opiniões sobre o problema, mas é claro que em resposta a um hipotético ataque da Rússia, ele também terá que responder simetricamente.

Será que poderia chegar a isso? Eu acho que sim.

Linhas Vermelhas Nucleares

Se o uso de armas nucleares estratégicas é quase certamente o fim da humanidade, elas só serão usadas se as linhas vermelhas forem cruzadas. Desta vez, linhas muito sérias. O Ocidente ignorou as primeiras linhas vermelhas que a Rússia identificou antes do início da Operação Militar Especial, estando convencido de que Putin estava blefando. O Ocidente estava convencido disso estando parcialmente desinformada pela elite liberal russa, que se recusava a acreditar na seriedade das intenções de Putin. Mas estas intenções devem ser tratadas com muito cuidado.

Assim, para Moscou, as linhas vermelhas, que cruzariam com o início de uma guerra nuclear, são bastante óbvias. E soam assim: uma derrota crítica na guerra da Ucrânia com o envolvimento direto e intensivo dos Estados Unidos e dos países da OTAN no conflito. Estávamos no limiar disso na 4ª fase da Operação Militar Especial, quando, na verdade, todos falavam de armas nucleares táticas e armas nucleares estratégicas. Apenas alguns sucessos do exército russo, confiando nos meios convencionais de armas e de guerra, desarmaram a situação até certo ponto. Mas, é claro, eles não a removeram completamente. Para a Rússia, a questão do confronto nuclear só será retirada definitivamente da agenda depois que ela alcançar a vitória total. Falaremos um pouco mais tarde sobre em que consistirá essa vitória.

O Ocidente não tem nenhuma razão para usar armas nucleares

Para os Estados Unidos e a OTAN, na situação em que se encontram, não há motivação alguma para utilizar armas nucleares num futuro próximo. Elas só seriam utilizadas em resposta a um ataque nuclear russo, o que não aconteceria sem uma razão fundamental (ou seja, sem uma ameaça séria – ou mesmo fatal – de um ataque militar). Mesmo que se imagine que a Rússia assumiria o controle de toda a Ucrânia, isso não aproximaria os Estados Unidos das linhas vermelhas. Em certo sentido, os EUA já conseguiram muito em seu confronto com a Rússia – descarrilaram uma transição pacífica e suave para a multipolaridade, cortaram a Rússia do mundo ocidental e a condenaram ao isolamento parcial, conseguiram demonstrar uma certa fraqueza da Rússia na esfera militar e técnica, impuseram sérias sanções, contribuíram para a deterioração da imagem da Rússia entre aqueles que eram seus aliados reais ou potenciais, atualizaram seu próprio arsenal militar e técnico e experimentaram novas tecnologias em situações da vida real. Se a Rússia puder ser vencida por outros meios, e não pelo extermínio mútuo, o Ocidente coletivo ficará mais do que feliz em fazê-lo. Por qualquer meio, exceto o nuclear. Em outras palavras, a posição do Ocidente é tal que eles não têm motivos para serem os primeiros a usar armas nucleares contra a Rússia, mesmo em um futuro distante. Mas a Rússia tem.

Mas aqui tudo depende do Ocidente. Se a Rússia não for levada a um beco sem saída, isto pode ser facilmente evitado. A Rússia só destruirá a humanidade se a própria Rússia for levada à beira da destruição.

Kiev: esta figura está condenada em qualquer caso

Finalmente, há Kiev. Kiev se encontra em uma situação muito difícil. Zelensky já uma vez pediu a seus parceiros e patronos ocidentais que lançassem um ataque nuclear contra a Rússia depois que um míssil ucraniano caiu em território polonês. Qual era sua ideia?

O fato é que a Ucrânia está condenada nesta guerra de todos os pontos de vista. A Rússia não pode perder, porque sua linha vermelha é sua derrota. Então, todos perderão.

O Ocidente coletivo, mesmo que perca algo, já ganhou muito, e nenhuma ameaça crítica aos países europeus da OTAN, muito menos aos próprios Estados Unidos, vem da Rússia. Tudo o mais que é dito a este respeito é pura propaganda.

Mas a Ucrânia nesta situação – na qual se viu várias vezes em sua história, entre o martelo e a bigorna, entre o Império (branco ou vermelho) e o Ocidente – está condenada. Afinal, os russos não farão nenhuma concessão e permanecerão de pé até a vitória. Uma vitória para Moscou significaria a completa derrota do regime nazista pró-ocidental de Kiev. E como um Estado soberano nacional, não haverá Ucrânia mesmo num futuro distante. E é nesta situação que Zelensky, em imitação parcial de Putin, está pronto para “apertar o botão nuclear”. Como não haverá Ucrânia, é necessário destruir a humanidade. Em princípio, está na moda entender isto, está bem na lógica do pensamento terrorista. A única coisa é que ele não tem um botão vermelho. Porque ele não tem soberania – nem nuclear nem qualquer outra.

Pedir aos EUA e à OTAN que cometam suicídio global em nome da “nezalezhnost” da Ucrânia, ou seja, sua “independência” (que nada mais é do que uma ficção) é no mínimo ingênuo. Armas sim, dinheiro sim, apoio da mídia sim, é claro, apoio político sim. Mas nuclear?

A resposta é óbvia demais para ser dada. Como se pode acreditar seriamente que Washington, por mais fanáticos que os partidários do globalismo, da unipolaridade e da manutenção da hegemonia a qualquer custo, estejam governando lá hoje, avançará à destruição da humanidade em nome do grito de guerra neonazista ucraniano “Glória aos Heróis!” Mesmo perdendo toda a Ucrânia, o Ocidente não perde muito. E o regime neonazista de Kiev e seus sonhos de grandeza mundial irão, é claro, desmoronar.

Em outras palavras, as linhas vermelhas de Kiev não devem ser levadas a sério. Embora Zelensky aja como um verdadeiro terrorista. Ele tomou todo um país como refém e ameaça destruir a humanidade.

O fim da guerra: os objetivos da Rússia

Depois de um ano de guerra na Ucrânia, é absolutamente claro que a Rússia não pode perder. Este é um desafio existencial: ser ou não ser um país, um Estado, um povo? Não se trata de adquirir territórios disputados ou do equilíbrio de segurança. Era isso há um ano. As coisas estão muito mais agudas agora. A Rússia não pode perder, e cruzar esta linha vermelha nos remete novamente à aurora do apocalipse nuclear. E sobre esta questão todos devem ser claros: esta não é apenas a decisão de Putin, mas a lógica de todo o caminho histórico da Rússia, que em todas as etapas lutou contra cair na dependência do Ocidente – seja a Ordem Teutônica, a Polônia católica, o burguês Napoleão, o racista Hitler ou os globalistas modernos. A Rússia ou será livre ou não será nada.

Vitória mínima

Agora temos que considerar o que é a vitória para a Rússia? Há três opções aqui.
A escala mínima de vitória para a Rússia poderia, sob certas circunstâncias, consistir em colocar todos os territórios das 4 novas entidades – as regiões de Donetsk, Lugansk, Kherson e Zaporozhye – sob total controle russo. Paralelamente a isto, o desarmamento da Ucrânia e garantias plenas de seu status neutro para o futuro previsível. Enquanto isso, Kiev tem que reconhecer e aceitar o estado atual das coisas. Com isso, o processo de paz pode começar.

Entretanto, tal cenário é muito improvável. Os relativos sucessos do regime de Kiev na região de Kharkov deram aos nacionalistas ucranianos a esperança de que eles podem derrotar a Rússia. Sua feroz resistência no Donbass demonstra sua intenção de permanecer até o final, reverter o curso da campanha e entrar novamente em uma contraofensiva – contra todos os novos membros da Federação Russa, incluindo a Crimeia. E não há quase nenhuma chance de que as autoridades atuais em Kiev concordem com tal fixação do status quo.

Para o Ocidente, porém, esta seria a melhor solução, pois uma pausa nas hostilidades poderia ser usada como os Acordos de Minsk para militarizar ainda mais a Ucrânia. A própria Ucrânia – mesmo sem estas áreas – continua sendo um território enorme, e a questão do status neutro seria confundida em termos ambíguos.

Moscou entende tudo isso; Washington o entende um pouco pior. E a atual liderança de Kiev não quer entendê-lo de forma alguma.

Vitória média: libertação da Novorrússia

A versão intermediária da vitória da Rússia seria a libertação de todo o território da histórica Novorrússia, que inclui a Crimeia, o 4 novos membros da Federação Russa e mais três regiões – Kharkov, Odessa e Nikolaev (com partes de Dnepropetrovsk e Poltava). Isto completaria a divisão lógica da Ucrânia em partes orientais e ocidentais, que têm diferentes histórias, identidades e orientações geopolíticas. Tal solução seria aceitável para a Rússia e certamente seria percebida como uma vitória muito real, completando o que foi iniciado, e depois interrompido, em 2014.

Também se adequaria ao Ocidente, cujos planos estratégicos seriam mais sensíveis à perda da cidade portuária de Odessa. Mas mesmo isso não é tão crucial, devido à presença de outros portos do Mar Negro – Romênia, Bulgária e Turquia, três países da OTAN (não potenciais, mas membros atuais da Aliança).

É claro que tal cenário é categoricamente inaceitável para Kiev, embora uma advertência deva ser feita aqui. É categoricamente inaceitável para o atual regime e para a atual situação estratégico-militar. Se chegar à plena libertação bem sucedida dos quatro novos membros da Federação e a subsequente expansão das tropas russas para as fronteiras das três novas regiões, tanto o exército ucraniano quanto o estado psicológico da população, o potencial econômico e o próprio regime político de Zelensky estarão em um estado muito diferente. A infraestrutura da economia continuará a ser destruída pelos ataques russos e as derrotas nas frentes levarão uma sociedade, já exausta e sangrando da guerra, ao completo desânimo. Talvez haja um governo diferente em Kiev, e não se pode descartar que haja também uma mudança de governo em Washington, onde qualquer governante realista certamente reduzirá a escala de apoio à Ucrânia, simplesmente calculando sobriamente os interesses nacionais dos Estados Unidos sem uma crença fanática na globalização. Trump é um exemplo vivo de que isto é bem possível e não muito além do reino das probabilidades.

Em uma situação de vitória mediana, ou seja, a libertação completa da Novorrússia, seria extremamente benéfico para Kiev e para o Ocidente avançar para acordos de paz a fim de preservar o resto da Ucrânia. Um novo Estado poderia ser estabelecido que não teria as restrições e obrigações atuais, e poderia tornar-se – gradualmente – um baluarte para cercar a Rússia. Para salvar pelo menos o resto da Ucrânia, o projeto Novorrússia seria bastante aceitável e, a longo prazo, seria bastante benéfico para o Ocidente coletivo – inclusive para o futuro confronto com a Rússia soberana.

Vitória completa: libertação completa da Ucrânia

Finalmente, uma vitória completa para a Rússia seria libertar todo o território da Ucrânia do controle do regime pró-ocidental neonazista e recriar a unidade histórica tanto do Estado dos eslavos orientais quanto da grande potência eurasiática. Então a multipolaridade teria sido irreversivelmente estabelecida, e teríamos virado a história humana de cabeça para baixo.

Além disso, somente uma tal vitória permitiria implementar plenamente as metas estabelecidas no início – desnazificação e desmilitarização, pois sem o controle total do território militarizado e neonazista, isto não pode ser alcançado.

Mas mesmo sob esta opção, o Ocidente não teria sofrido danos críticos em um sentido militar-estratégico e ainda mais em um sentido econômico. A Rússia teria permanecido isolada do Ocidente e demonizada. Sua influência sobre a Europa seria reduzida a zero para não dizer que seria negativa. A comunidade atlântica teria se consolidado mais do que nunca diante de um inimigo tão perigoso. E a Rússia, excluída do Ocidente coletivo e separada da tecnologia e das novas redes, teria dentro de si uma enorme massa de população que não seria inteiramente leal, se não hostil, e cuja integração em uma única estrutura social exigiria um esforço extraordinário de um país já desgastado pela guerra.

E a própria Ucrânia não estaria sob ocupação, mas como parte de um único povo, sem qualquer violação por motivos étnicos e aberta a qualquer perspectiva de ocupação de cargos de governo de todo tipo e de livre circulação em todo o território da Grande Rússia. Se quiséssemos, isto poderia ser visto como “anexação da Rússia à Ucrânia”, e a antiga capital do Estado russo estaria novamente no centro do mundo russo, e não em sua periferia.

Naturalmente, neste caso, a paz viria por si só, e não haveria nenhum sentido em negociar seus termos com ninguém.

É assim que se deve pensar em uma análise equilibrada e objetiva, livre de qualquer propaganda.

Mudando a fórmula das relações internacionais russas: do realismo ao conflito de civilizações

A última coisa que vale a pena considerar, ao analisar o primeiro ano da Operação Militar Especial. Desta vez, é uma avaliação teórica da transformação que a guerra na Ucrânia causou no espaço das Relações Internacionais.

Aqui temos a seguinte imagem. A administração Joe Biden exatamente como Bill Clinton, o neocon George Bush Jr e Barak Obama está rigidamente do lado do liberalismo nas Relações Internacionais. Eles vêem o mundo como global e governado pelo Governo Mundial acima das cabeças de todos os Estados-nações. Mesmo os próprios Estados Unidos não são, aos seus olhos, mais do que uma ferramenta temporária nas mãos de uma elite mundial cosmopolita. Daí a antipatia e até mesmo o ódio dos democratas e globalistas por qualquer forma de patriotismo americano e pela identidade muito tradicional dos americanos.

Para os defensores do liberalismo nas relações internacionais, qualquer Estado Nacional é um obstáculo ao Governo Mundial, e um Estado Nacional forte e soberano, desafiando abertamente a elite liberal, é o verdadeiro inimigo, que deve ser destruído.

Após a queda da URSS, o mundo deixou de ser bipolar e tornou-se unipolar, e a elite globalista, os adeptos do liberalismo nas relações internacionais apreenderam as principais alavancas de gestão da humanidade.

Os derrotados desmembraram a Rússia, como remanescente do segundo pólo, sob o governo de Iéltsin aceitaram estas regras do jogo e concordaram com a lógica dos liberais nas relações internacionais. Moscou só tinha que se integrar ao mundo ocidental, participar com sua soberania e começar a jogar de acordo com suas regras. O objetivo era obter pelo menos algum status no futuro Governo Mundial, e a nova elite oligárquica fez tudo o que era possível para se encaixar no mundo ocidental a qualquer custo – mesmo individualmente.

Todas as universidades na Rússia tomaram desde então o lado do liberalismo na questão das Relações Internacionais. O realismo nas relações internacionais foi esquecido (mesmo quando o conheciam), equiparado ao “nacionalismo”, e a palavra “soberania” não era proferida de forma alguma.

Tudo mudou na política real (mas não na educação) com a chegada de Putin. Putin era um realista convicto nas Relações Internacionais e um radical defensor da soberania. Ao mesmo tempo, ele compartilhava plenamente a opinião da universalidade dos valores ocidentais e considerava o progresso social e científico-tecnológico do Ocidente a única maneira de desenvolver a civilização. A única coisa em que ele insistia era na soberania. Daí o mito de sua influência sobre Trump. Foi o realismo que uniu Putin e Trump. De outra forma, eles são muito diferentes. O realismo não é contra o Ocidente, é contra o liberalismo nas Relações Internacionais e contra o Governo Mundial. Tal é o realismo americano, o realismo chinês, o realismo europeu, o realismo russo e assim por diante.
Mas a unipolaridade que se desenvolveu desde o início da década de 90 virou a cabeça dos liberais nas Relações Internacionais. Eles acreditavam que o momento crucial havia chegado, a história como confronto de paradigmas ideológicos havia terminado (tese de Fukuyama) e chegou o momento de iniciar com nova força o processo de unificação da humanidade sob o governo mundial. Mas para fazer isso, a soberania residual teve que ser abolida.

Esta linha estava em estrita contradição com o realismo de Putin. No entanto, Putin tentou equilibrar-se no limite e manter relações com o Ocidente a todo custo. Isto foi muito fácil de fazer com o Trump realista, que compreendeu a vontade de Putin por soberania, mas se tornou bastante impossível com a chegada de Biden à Casa Branca. Então Putin, como realista, chegou ao limite de um possível compromisso. O Ocidente coletivo, liderado pelos liberais em relações internacionais, pressionou cada vez mais a Rússia a começar finalmente a desmantelar sua soberania, em vez de reforçá-la.

O auge deste conflito foi o início da Operação Militar Especial. Os globalistas apoiaram ativamente a militarização e a nazificação da Ucrânia. Putin se rebelou contra isso porque entendeu que o Ocidente coletivo estava se preparando para uma campanha simétrica – para “desmilitarizar” e “desnazificar” a própria Rússia. Os liberais fecharam os olhos para o rápido florescimento do neonazismo russofóbico na própria Ucrânia e, além disso, o promoveram ativamente, contribuindo para sua militarização o máximo possível, enquanto a própria Rússia era acusada da mesma coisa – “militarismo” e “nazismo”, tentando equiparar Putin a Hitler.

Putin iniciou a Operação Militar Especial como um realista. Não mais do que isso. Mas, um ano depois, a situação mudou. Ficou claro que a Rússia está em guerra com a moderna civilização liberal ocidental como um todo, com o globalismo e os valores que o Ocidente tenta impor a todos os outros. Esta mudança na consciência da Rússia sobre a situação mundial é talvez o resultado mais importante da Operação Militar Especial. A partir da defesa da soberania, a guerra se transformou em um choque de civilizações (a propósito corretamente previsto por Samuel Huntington). E a Rússia não insiste mais simplesmente na governança independente, compartilhando atitudes, critérios, normas, regras e valores ocidentais, mas age como uma civilização independente – com suas próprias atitudes, critérios, normas, regras e valores. A Rússia não é mais o Ocidente. Não é um país europeu, mas uma civilização eurasiática ortodoxa. Isto é exatamente o que Putin declarou em seu discurso de 30 de setembro por ocasião da recepção dos quatro novos membros da Federação, depois no discurso de Valdai, e repetiu muitas vezes em outros discursos. E finalmente, no Édito 809, Putin aprovou os fundamentos de uma política estatal para proteger os valores tradicionais russos, um conjunto que não só difere significativamente do liberalismo, mas em alguns pontos é exatamente o oposto dele.

A Rússia mudou seu paradigma de realismo para a Teoria de um Mundo Multipolar, rejeitou diretamente o liberalismo em todas as suas formas, e desafiou diretamente a civilização ocidental moderna – negando-lhe abertamente o direito de ser universal.

Putin não acredita mais no Ocidente. E ele explicitamente chama a civilização ocidental moderna de “satânica”. Nesse uso de termos pode-se facilmente identificar um apelo direto à escatologia e teologia ortodoxa, bem como uma pitada de confronto entre os sistemas capitalistas e socialistas da era Stalin. Hoje, é verdade, a Rússia não é um Estado socialista. Mas este é o resultado da derrota sofrida pela URSS no início dos anos 90, e a Rússia e outros países pós-soviéticos se encontraram na posição de colônias ideológicas e econômicas do Ocidente global.

Todo o reinado de Putin até 24 de fevereiro de 2022 foi uma preparação para este momento decisivo. Mas ele costumava permanecer dentro do quadro do realismo. Ou seja, a forma ocidental de desenvolvimento + soberania. Agora, após um ano de severas provações e terríveis sacrifícios que a Rússia sofreu, a fórmula mudou: soberania + identidade civilizacional, ou seja, a maneira russa.

Fonte: Geopolitica.ru

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Aleksandr Dugin

Filósofo e cientista político, ex-docente da Universidade Estatal de Moscou, formulador das chamadas Quarta Teoria Política e Teoria do Mundo Multipolar, é um dos principais nomes da escola moderna de geopolítica russa, bem como um dos mais importantes pensadores de nosso tempo.

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