O Problema da Leitura Neoconservadora da Quarta Teoria Política

Recentemente, o jornal Gazeta do Povo veiculou um artigo neocon estadunidense denunciando Dugin como “relativista” por negar o exepcionalismo e o universalismo dos EUA. Quem tem razão nessa querela?

Recentemente, o portal conservador “Gazeta do Povo” publicou a tradução de um artigo chamado “O Problema com a Quarta Teoria Política de Dugin”, originalmente publicado na revista estadunidense National Review sob o nome “Alexander Dugin: Uma Defesa Equivocada do Homem conhecido como ‘Cérebro de Putin’” e escrito por Michael Lucchese. O artigo está repleto de problemas que merecem ser apontados e respondidos.

Não a título de ad hominem, mas como “nomeação de autoria” e para contextualizar os posicionamentos do artigo em questão, é importante indicar que o National Review é uma publicação enquadrada em um amplo espectro direitista estadunidense que abarca neoconservadorismo e libertarianismo. Ela segue a típica linha “conservador nos costumes, liberal na economia” (termos aqui usados em seu significado continental) que caracteriza o atlantismo contemporâneo. Representando a “ala direita do Sistema”, não surpreendentemente ela se opôs frontalmente a Donald Trump e, de modo geral, critica todo “populismo de direita”, preferindo lideranças que sigam o modelo reaganita. Uma nota importante é que nas primeiras décadas da revista ela também abria espaço para paleoconservadores, mas a maioria dos colaboradores paleocons foram expurgados da publicação entre os anos 80 e 90.

Entre as figuras “renomadas” que já passaram pela revista estão Ludwig von Mises, Murray Rothbard, Milton Friedman e Francis Fukuyama, sendo necessário também acrescentar aquele grupo particular de imigrantes judeus trotskistas virados “à direita” que fundaram o neoconservadorismo: Irving Kristol, Nathan Glazer e outros como eles.
Tendo em mente essa contextualização o conteúdo do texto se torna mais trivial. Ela é uma peça de propaganda voltada para o público conservador estadunidense por temor de que personagens como Michael Millerman, contra quem o artigo é também dirigido, consigam convencer este público a repensar sua adesão ao atlantismo. O autor parte, portanto, de um pressuposto inquestionável que opera inclusive como petição de princípio ao longo do texto: “Os conservadores que acreditam no excepcionalismo americano devem levar o duguinismo a sério apenas como uma ameaça à liberdade ordenada e procurar melhores teóricos políticos para orientação”.

Se você é um conservador estadunidense (ou mesmo simpático aos EUA) que não acredita no messianismo mundialista dos EUA como Nova Jerusalém, portanto, leia Dugin à vontade. Agora, sinceramente, se você é um crente no excepcionalismo estadunidense Dugin não é para você. O autor, portanto, já começa o artigo preso em um raciocínio circular e falacioso.

Mais adiante, Lucchese demonstra que não leu o material de Dugin antes de criticá-lo. Apesar da descrição resumida das três teorias políticas da modernidade, razoavelmente, precisa Lucchese afirma que Dugin propõe como “quarta teoria política” a fusão entre comunismo e fascismo, chamada “nacional-bolchevismo”. Esse é o tipo de conclusão que só se pode tirar a partir da Wikipedia ou dos ataques panfletários de Glenn Beck. O nacional-bolchevismo é a fusão entre comunismo e fascismo, mas a Quarta Teoria Política foi desenvolvida aproximadamente 6 anos depois que Dugin já havia deixado o nacional-bolchevismo para trás.

Não sendo este o escopo do artigo, já que já publicamos amplo material sobre o tema, a Quarta Teoria Política é construída pela reconexão de cada povo com suas próprias raízes. Ele pode abarcar alguns elementos positivos de ideologias do passado (inclusive, aliás, do liberalismo), e o nacional-bolchevismo operou como um protótipo, uma “versão beta”, mas a Quarta Teoria Política é muito simplesmente o Tradicionalismo político adaptado para o século XXI.

Acrescente-se, ainda, a noção estapafúrdia de que multipolaridade é caos geopolítico em oposição à “ordem” unipolar comandada pelos EUA. Trata-se de simples hipocrisia.

Primeiro, porque os EUA não estabilizaram “ordem” alguma, por incapacidade e por desígnio. Na prática, a unipolaridade é um momento na história geopolítica de nossa espécie, mas esse momento se sustenta em velhas instituições do mundo bipolar e nunca conseguiu consenso mundial e, por isso, não se pode falar em uma “ordem mundial unipolar”. De fato, considerando que para de fato inaugurar o Fim da História e alcançar esse consenso os EUA terão que destruir a Rússia sob sua forma estatal atual e que Putin já declarou estar disposto a usar armas nucleares caso a destruição da Rússia seja iminente, a unipolaridade a essa altura só poderia tornar-se “ordem mundial” em um futuro pós-apocalíptico, em que esse debate se torna simplesmente inútil.

Segundo, os EUA não produziram “ordem” também porque boa parte de sua estratégia geopolítica se baseia na produção dialética de “caos”. Os EUA e adjacências (o “Ocidente) não raro são pensados como um “enclave” onde imperaria a “ordem” (a chamada “Comunidade Internacional”) e o resto, a maior parte do planeta em todos os quesitos, a periferia em relação a esse centro, sofrem constantes intervenções que visam fragmentar politeias, promover mudanças de regime, fomentar insurgências, etc., táticas que garantem que amplas regiões do mundo estejam em caos permanente. Bastaríamos olhar para o Oriente Médio, por exemplo. Que legado de “ordem” os EUA deixaram para o Iraque?

A crítica seguinte apela ao superficialismo comum de considerar o pensamento de Dugin “relativista”. Segundo Lucchese, Dugin considera que não existiria verdade única, mas que os povos teriam experiências culturalmente condicionadas que poderiam ser consideradas, cada uma, “sua verdade”.

Nessa crítica, Lucchese apela ao pensador neoconservador (discípulo de Carl Schmitt, aliás) Leo Strauss, que é também um dos pensadores prediletos de Millerman. Leo Strauss, por exemplo, criticava o historicismo típico das doutrinas nascidas no século XIX e que considerava princípios de justiça como contingentes segundo as circunstâncias históricas.

Primeiramente Lucchese não entendeu (ou falsifica) a crítica straussiana. Resumidamente, o que Strauss critica é a reinterpretação do passado por cada geração sucessiva com base nos próprios valores, que levaria a uma contínua interpretação “militante” da história, sempre submetendo a história aos valores mutantes de cada geração e nublando, com isso, qualquer noção de transcendência. Dugin concordaria com esse ponto da crítica straussiana, considerando inclusive como “racismo” considerar o passado e as gerações passadas como “inferiores” ou mais ignorantes.
Não é possível aplicar o mesmo raciocínio, porém, às diferentes civilizações enquanto sistemas fechados que incluem as suas próprias tábuas de valores. Na verdade, a perspectiva multipolarista ou pluriversalista (se apelarmos a Schmitt, mestre de Strauss) restaura a dignidade da “Verdade”, puramente transcendente, como distinta das múltiplas verdades contingentes e parciais.

O que Lucchese ignora é que Dugin, enquanto tradicionalista platonista (e heideggeriano) critica a confusão entre Ser e ente típica da metafísica ocidental, que levou também a mistura e confusão entre Verdade e verdades. Cada Civilização é uma forma de experimentar a Verdade pelos “visores” da própria existência “lançada” no mundo já que não podemos sair de nossa condição existencial para abordarmos diretamente a Verdade. Toda nossa relação com a Verdade é sempre mediada por ritos, símbolos e mitos e as operações mundanas da razão são insuficientes para acessá-la.

A impressão que se tem é que o autor do artigo acredita que as Civilizações podem ser julgadas segundo “critérios de verdade” que não os da própria Civilização. Civilizações não são verdadeiras ou falsas. Elas apenas são. E querer “refutar” uma Civilização é como querer refutar o vento ou a chuva. Isso não significa que não possamos estranhar ou mesmo detestar determinadas manifestações culturais de outros povos. Ao contrário, o rechaço é tão saudável quanto a atração. Mas qualquer atitude nossa nesse sentido é sempre uma atitude situada e tomada a partir da tábua de valores de nossa Civilização e é, portanto, sempre opinião contingente.

O pensamento de Dugin, portanto, não é relativista e historicista, mas perspectivista e neoplatônico.

Lucchese ainda faz um muxoxo pelo fato de Dugin (e Millerman) simplesmente considerar o “pensamento estadunidense” como um “liberalismo qualquer”. Lucchese pede que o pensamento dos “Pais Fundadores” seja tratado como algo “especial” e “único”. Ele obviamente é único, como todo pensamento etnonacional, mas não deixa de poder ser enquadrado no esquema universal das quatro teorias políticas como uma variação de liberalismo.

Ademais, ele não possui nada de particularmente universal, ao contrário do defendido pelo autor do artigo. A mera declaração de universalidade não garante nenhum tipo de universalidade. É apenas opinião. O pensamento de Lucchese e dos neocons e liberal-conservadores em geral é circular e eles nem mesmo se tocam disso. Os valores estadunidenses são universais porque sim e como eles são universais então a sociedade construída com base nesses valores é a melhor e a mais filosófica. Desnecessário dizer que um juízo plenamente imparcial só pode ser emitido por um juiz que não é parte da controvérsia. Mas esse juiz, no âmbito das culturas e civilizações, não existe no mundo, porque no mundo somos todos humanos e, como humanos, sempre etnicizados e enraizados em uma existência política, nacional, comunitária.

Em outras palavras, a autodeclaração de superioridade civilizacional dada por um intelectual estadunidense tem tanto valor quanto uma autodeclaração equivalente por um russo, chinês, alemão ou brasileiro: o valor da relatividade e da parcialidade. E está bom assim. Não precisamos de qualquer coisa além.

Avançando, Alain de Benoist já alertou sobre essas pretensões à universalidade por parte do universalismo liberal-iluminista. Cada pilar do pensamento iluminista dos Pais Fundadores carece do aspecto da universalidade, começando pela mitologia dos “direitos subjetivos”, historicamente rastreável a um período histórico recente. Cada ponto das supostas “verdades autoevidentes” seria vista de forma distinta por cada uma das civilizações humanas e incapazes de retirar-se da própria condição enraizada, simplesmente não há como demonstrar que os Pais Fundadores estavam mais certos do que Confúcio ou qualquer outro grande pensador de outras civilizações. Pior: a insistência nisso culmina na reivindicação de representação da “humanidade” e onde quer que vejamos um líder, partido, governo ou nação reivindicando a “humanidade” estamos diante de uma força propensa ao imperialismo e ao genocídio “em boa consciência”, na medida em que do outro lado sempre só pode estar o mal absoluto, contra o qual não se leva em conta moderação, diálogo ou leis da guerra.

Ainda nesse ponto: Lucchese apela a Leo Strauss para dizer, em uma nova petição de princípio, que teria sido por seus princípios filosóficos mais verdadeiros e universais desde sua fundação que os EUA seriam a mais poderosa nação da Terra. A China está ultrapassando os EUA em todos os critérios de avaliação de poder. Significaria isso que, na verdade, os princípios fundacionais da China seriam mais verdadeiros e universais? A lógica neocon nos forçaria a essa conclusão.

Enfim, como não poderia deixar de ser, o autor recorre às típicas propagandas desacreditadas sobre o conflito na Ucrânia. De acusações de genocídio ao falatório pueril sobre o “heroísmo” de Zelensky, não podemos esperar muita coisa de diferente. Os EUA estão em guerra com a Rússia usando a Ucrânia como proxy e, portanto, tudo que Lucchese escreve sobre esse tema, como bom intelectual neoconservador, é apologética do atlantismo.

O resultado final é realçar nossa impressão de que, com poucas honrosas exceções, boa parte do que se produz hoje nos EUA nas publicações vinculadas a laboratórios de ideias não passa de propaganda. E, como com toda propaganda, você já precisa estar convertido para acreditar no que está lendo.

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Raphael Machado

Advogado, ativista, tradutor, membro fundador e presidente da Nova Resistência. Um dos principais divulgadores do pensamento e obra de Alexander Dugin e de temas relacionados a Quarta Teoria Política no Brasil.

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