Gilberto Freyre: Manifesto Regionalista [excertos]

Fragmentos do texto de 1926.

Fragmentos do texto de 1926.

A maior injustiça que se poderia fazer a um regionalismo como o nosso seria confundí-lo com separatismo ou com bairrismo. Com anti-internacionalismo, anti-universalismo ou antinacionalismo. Ele é tão contrário a qualquer espécie de separatismo que, mais unionista que o atual e precário unionismo brasileiro, visa a superação do estadualismo, lamentavelmente desenvolvido aqui pela República – este sim, separatista – para substituí-lo por novo e flexível sistema em que as regiões, mais importantes que os Estados, se completem e se integrem ativa e criadoramente numa verdadeira organização nacional. Pois são modos de ser – os caracterizados no brasileiro por suas formas regionais de expressão – que pedem estudos ou indagações dentro de um critério de interrelação que ao mesmo tempo que amplie, no nosso caso, o que é pernambucano, paraibano, norte-riograndense, piauiense e até maranhense, ou alagoano ou cearense em nordestino, articule o que é nordestino em conjunto com o que é geral e difusamente brasileiro ou vagamente americano.


Dizendo sistema não sei se emprego a expressão exata. Nosso movimento não pretende senão inspirar uma nova organização do Brasil. Uma nova organização em que as vestes em que anda metida a República – roupas feitas, roupagens exóticas, veludos para frios, peles para gelos que não existem por aqui – sejam substituídas não por outras roupas feitas por modista estrangeira mas por vestido ou simplesmente túnica costurada pachorrentamente em casa: aos poucos e toda sob medida.

Daí ser perigoso falar-se precipitadamente num novo “sistema” quando o caminho indicado pelo bom senso para a reorganização nacional parece ser o de dar-se, antes de tudo, atenção ao corpo do Brasil, vítima, desde que é nação, das estrangeirices que lhe têm sido impostas, sem nenhum respeito pelas peculiaridades e desigualdades da sua configuração física e social; e com uma outra pena de índio ou um ou outro papo de tucano a disfarçar o exotismo norte-europeu do trajo. Primeiro, sacrificaram-se as Províncias ao imperialismo da Corte: uma Corte afrancesada ou anglicizada. Com a República – esta ianquizada – as Províncias foram substituídas por Estados grandes e ricos, nem policiar as turbulências balcânicas de alguns dos pequenos em população e que deviam ser ainda Territórios e não, prematuramente, Estados.

Essa desorganização constante parece resultar principalmente do fato de que as regiões vêm sendo esquecidas pelos estadistas e legisladores brasileiros, uns preocupados com os “direitos dos Estados”, outros, com as “necessidades de união nacional”, quando a preocupação máxima de todos deveria ser a de articulação inter-regional. Pois de regiões é que o Brasil, sociologicamente, é feito, desde os seus primeiros dias. Regiões naturais a que se sobrepuseram regiões sociais.

De modo que sendo essa a sua configuração, o que se impõe aos estadistas e legisladores nacionais é pensarem e agirem inter-regionalmente. E lembrarem-se sempre de que governam regiões e de que legislam para regiões interdependentes, cuja realidade não deve ser esquecida nunca pelas ficções necessárias, dentro dos seus limites, de “União” e de “Estado”. O conjunto de regiões é que forma verdadeiramente o Brasil. Somos um conjunto de regiões antes de sermos uma coleção arbitrária de “Estados”, uns grandes, outros pequenos, a se guerrearem economicamente como outras tantas Bulgárias, Sérvias e Montenegros e a fazerem às vezes de partidos políticos – São Paulo contra Minas, Minas contra o Rio Grande do Sul – num jogo perigosíssimo para a unidade nacional.


Regionalmente é que deve o Brasil ser administrado. É claro que administrado sob uma só bandeira e um só governo, pois regionalismo não quer dizer separatismo, ao contrário do que disseram ao Presidente Artur Bernardes. Regionalmente deve ser estudada, sem sacrifício do sentido de sua unidade, a cultura brasileira, do mesmo modo que a natureza; o homem da mesma forma que a paisagem. Regionalmente
devem ser considerados os problemas de economia nacional e os de trabalho. Como me aventuro a dizer num arremedo de poema que acabo de entregar ao pintor Luís Jardim, para que ele o ilustre com seu traço admirável:


“O mapa do Brasil em vez das cores dos Estados terá as cores das produções e dos trabalhos.”


Procurando reabilitar valores e tradições do Nordeste, repito que não julgamos estas terras, em grande parte áridas e heroicamente pobres, devastadas pelo cangaço, pela malária e até pela fome, as Terras Santas ou a Cocagne do Brasil. Procuramos defender esses valores e essas tradições, isto sim, do perigo de serem de todo abandonadas, tal o furor neófilo de dirigentes que, entre nós, passam por adiantados e “progressistas” pelo fato de imitarem cega e desbragadamente a novidade estrangeira. A novidade estrangeira de modo geral. De modo particular, nos Estados ou nas Províncias, o que o Rio ou São Paulo consagram como “elegante” e como “moderno”: inclusive esse carnavalesco Papai Noel que, esmagando com suas botas de andar em trenó e pisar em neve, as velhas lapinhas brasileiras, verdes, cheirosas, de tempo de verão, está dando uma nota de ridículo aos nossos natais de família, também enfeitados agora com arvorezinhas estrangeiras mandadas vir da Europa ou dos Estados Unidos pelos burgueses mais cheios de requififes e de dinheiro.

Talvez não haja região no Brasil que exceda o Nordeste em riqueza de tradições ilustres e em nitidez de caráter. Vários dos seus valores regionais tornaram-se nacionais depois de impostos aos outros brasileiros menos pela superioridade econômica que o açúcar deu ao Nordeste durante mais de um século do que pela sedução moral e pela fascinação estética dos mesmos valores. Alguns até ganharam renome internacional como o mascavo dos velhos engenhos, a Pau-Brasil das velhas matas, a faca de ponta de Pasmado ou de Olinda, a rede do Ceará, o vermelho conhecido entre pintores europeus antigos por “Pernambuco”, a goiabada de Pesqueira, o fervor católico de Dom Vital, o algodão de Seridó, os cavalos de corrida de Paulista, os abacaxis de Goiana, o balão de Augusto Severo, as telas de Rosalvo Ribeiro, o talento diplomático do Barão de Penedo – doutor “honoris causa” de Oxford – e o literário de Joaquim Nabuco – doutor “honoris causa” de universidades anglo-americanas. Como se explicaria, então, que nós, filhos de região tão criadora, é que fôssemos agora abandonar as fontes ou as raízes de valores e tradições de que o Brasil inteiro se orgulha ou de que se vem beneficiando como de valores basicamente nacionais?

Sem se julgar estultamente o sal do Brasil, mas apenas o seu maior e melhor produtor de açúcar nos tempos coloniais – açúcar que está à base de uma doçaria rica como nenhuma, do lmpério, e à base, também, de uma doce aristocracia de maneiras de gostos, de modos de viver e de sentir, tornada possível pela produção e exportação de um mascavo tão internacionalmente famoso como, depois, o café de São Paulo – o Nordeste tem o direito de considerar-se uma região que já grandemente contribuiu para dar a cultura ou à civilização brasileira autenticidade e originalidade e não apenas doçura ou tempero. Com Duarte Coelho madrugaram na Nova Lusitânia valores europeus, asiáticos, africanos que só depois se estenderam a outras regiões da América Portuguesa. Durante a ocupação holandesa, outros valores aqui surgiram ou foram aqui recriados para benefício do Brasil inteiro. Apenas nos últimos decênios é que o Nordeste vem perdendo a tradição de criador ou recriador de valores para tornar-se uma população quase parasitária ou uma terra apenas de relíquias: o paraíso brasileiro de antiquários e de arqueólogos. Ou o refúgio daqueles patriotas meio necrófilos cujo patriotismo se comenta em poder evocar, nos dias de festas nacionais, glórias remotas e antecipações gloriosas, exagerando-as, nos discursos, dourando-as nos elogios históricos com brilhos falsos, revestindo-as nas composições genealógicas de azuis também excessivamente heráldicos.

[…]

De modo que, no Nordeste, quem se aproxima do povo desce a raízes e a fontes de vida, de cultura e de arte regionais. Quem se chega ao povo está entre mestres e se torna aprendiz, por mais bacharel em artes que seja ou por mais doutor em medicina. A força de Joaquim Nabuco, de Sílvio Romero, de José de Alencar, de Floriano, do Padre Ibiapina, de Telles Júnior, de Capistrano, de Augusto dos Anjos, de Rosalvo Ribeiro, de Augusto Severo, de Auta de Sousa, de outras grandes expressões nordestinas da cultura ou do espírito brasileiro, veio principalmente do contato que tiveram, quando meninos de engenho ou de cidade, ou já depois de homens feitos, com a gente do povo, com as tradições populares, com a plebe regional e não apenas com as águas, as árvores, os animais da região.

É um contato que não deve ser perdido em nenhuma atividade de cultura regional. E dessas atividades não deve ser excluída nunca a arte do quitute, do doce, do bolo que, no Nordeste, é um equilíbrio de tradições africanas e indígenas com européias; de sobrevivências portuguesas com a arte das negras de tabuleiro e das pretas e pardas do fogareiro. Por conseguinte, brasileiríssima.


Pois o Brasil é isto: combinação, fusão, mistura. E o Nordeste, talvez a principal bacia em que se vêm processando essas combinações, essa fusão, essa mistura de sangue e valores que ainda fervem: portugueses, indígenas, espanhóis, franceses, africanos, holandeses, judeus, ingleses, alemães, italianos.


Daí a riqueza de sabores ainda contraditórios de sua cozinha no extremo Nordeste talvez mais complexa e mais compreensiva que a chamada “Baiana”, isto é, a de Salvador, da Bahia, sua parenta em tanta coisa. Por isso mesmo, são as duas dignas – e também paraense ou amazônica – da melhor atenção brasileira.
Saliente-se em conclusão, que há no Nordeste – neste Nordeste em que vêm se transformando em valores brasileiros, valores por algum tempo apenas subnacionais ou mesmo exóticos – uma espécie de franciscanismo, herdado dos portugueses, que aproxima dos homens, árvores e animais. Não só os da região como os importados. Todos se tornam aqui irmãos, tios, compadres das pessoas. Conheci uma negra velha que toda tarde conversava com uma jaqueira como se conversasse com uma pessoa íntima: “minha nega”. “meu bem”, “meu benzinho”. Por que os poetas não surpreendem esses idílios?

[…]

Hoje precisamos de Joões Ramos, continuadores de Joaquins Nabucos e cujas vozes se ergam não só
a favor dos homens ainda cativos de homens ou dos animais ainda maltratados e explorados pelos donos ou
das matas roubadas de seus bichos mais preciosos por caçadores a serviço de comerciantes gulosos de
dinheiro fácil, mas a favor das árvores, das plantas, dos frutos da região, dos seus doces e dos seus
quitutes, que tanto quanto as artes populares e os estilos tradicionais de casa e de móvel, vêm sendo desprezados, abandonados e substituídos pelas conservas estrangeiras, por drogas suíças, remédios
europeus e pelas novidades norte-americanas. Donde a necessidade deste Congresso de Regionalismo
definir-se a favor de valores assim negligenciados e não apenas em prol das igrejas maltratadas e dos
jacarandás e vinháticos, das pratas e ouros de família e de igreja vendidos aos estrangeiros, por brasileiros
em quem a consciência regional e o sentido tradicional do Brasil vem desaparecendo sob uma onda de mau cosmopolitismo e de falso modernismo. É todo o conjunto da cultura regional que precisa ser defendido e desenvolvido.

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Gilberto Freyre

Polímata brasileiro, dedicou-se à ensaística da interpretação do Brasil sob ângulos da sociologia, antropologia e história. Foi também autor de ficção, jornalista, poeta e pintor. É um dos mais importantes sociólogos do século XX.

Artigos: 26

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