Pequeno trecho da obra do renomado antropólogo brasileiro
A etnicidade supõe, necessariamente, uma trajetória (que é histórica e determinada por múltiplos fatores) e uma origem (que é uma experiência primária, individual, mas que também está traduzida em saberes e narrativas aos quais vem a se acoplar). O que seria próprio das identidades étnicas é que nelas a atualização histórica não anula o sentimento de referência à origem, mas até mesmo o reforça. É da resolução simbólica e coletiva dessa contradição que decorre a força política e emocional da etnicidade.
Na imagem de “viagem da volta” [“desde que saí de casa, trouxe a viagem da volta gravada na minha mão, enterrada no umbigo, dentro e fora assim comigo, minha própria condução”] há dois aspectos que explicitam, respectivamente, a relação entre etnicidade e território e entre etnicidade e características físicas dos indivíduos, que é preciso esclarecer e elaborar melhor. A expressão “enterrada no umbigo” traz para os nordestinos uma associação muito particular. Nas áreas rurais há um costume de as mães enterrarem o umbigo dos recém-nascidos para que eles se mantenham emocionalmente ligados a ela e à sua terra de origem. Como é freqüente nessas regiões a migração em busca de melhores oportunidades de trabalho, tal ato mágico (uma “simpatia”) aumentaria as chances de a criança retornar um dia à sua terra natal. O que a figura poética sugere é uma poderosa conexão entre o sentimento de pertencimento étnico e um lugar de origem específico, onde o indivíduo e seus componentes mágicos se unem e identificam com a própria terra, passando a integrar um destino comum. A relação entre a pessoa e o grupo étnico seria mediada pelo território e a sua representação poderia remeter não só a uma recuperação mais primária da memória, mas também às imagens mais expressivas da autoctonia.
— João Pacheco de Oliveira